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A Liberdade a partir da Obra de Saramago

Após a breve exposição sobre o conceito de liberdade por alguns filósofos, passa-se a buscar o conceito de liberdade na obra de Saramago. Como já afirmado, não há um conceito exarado na obra, sendo necessária a interpretação, extraindo-se elementos e buscando um possível conceito. Inicialmente, pode-se afirmar que se extrai do livro uma busca do direito à liberdade pela não-dominação, uma busca do indivíduo para não ser submetido ao poder que outro tem de prejudicá-lo, ao fato de não ser dominado pelo outro.

A primeira situação a ser analisada é o momento em que o Governo infiltra agentes secretos no meio da população da capital, para interrogá- los na tentativa de descobrir as razões dos acontecimentos, dos votos em branco, questionando diretamente em quem votou, e a resposta sempre é a mesma, a negativa de ter votado em branco. Extrai-se o trecho do livro:

[...] Quer dizer-me, por favor, em quem votou, a resposta que lhe davam, como um recado bem aprendido, era, pala- vra por palavra, o que se encontra expresso na lei, Nin- guém pode ser, sob qualquer pretexto, obrigado a revelar o seu voto nem ser perguntado sobre o mesmo por qualquer autoridade. E quando, em tom de quem não dá demasiada importância ao assunto, fazia a segunda pergunta, Descul- pe esta minha curiosidade, por acaso não terá votado em branco, a resposta que ouvia restringia habilmente o âmbito da questão a uma simples questão acadêmica, Não senhor, não votei em branco, mas se o tivesse feito estaria tanto den- tro da lei como se tivesse votado em qualquer das listas apresentadas ou anulado o voto com a caricatura do presi- dente, votar em branco, senhor da perguntas, é um direito sem restrições, que a lei não teve outro remédio que reco- nhecer aos eleitores, está lá escrito com todas as letras, nin- guém pode ser perseguido por ter votado em branco, em todo o caso, para sua tranquilidade, torno a dizer-lhe que não sou dos que votaram em branco, isto foi um falar por falar, uma hipótese académica, nada mais.(SARAMAGO, 2007, p. 49-50).

Nesse trecho do livro percebe-se claramente a violação do direito do voto por parte do Estado, ao questionar ao eleitor se havia votado em branco, e o mesmo responde que se tivesse votado em branco, o teria feito conforme a lei, por ser um direito seu. No Estado Democrático um dos

fundamentos é a supremacia da vontade popular, é o autogoverno do povo. Contudo, não há possibilidade de todos governarem, e nem de confiar nos atos de governo praticado por todos, necessitando-se, portanto, a escolha daqueles que irão praticar atos de governo em nome do povo, logo, a ne- cessidade das eleições. As eleições são característica de um Estado Demo-

crático, e é a que se aproxima com a vontade popular.(DALLARI, 2006, p.

183).

A liberdade de voto, como afirma José Afonso da Silva, “[...] é fun-

damental para a sua autenticidade e eficácia”(SILVA, 2003, p. 358).

O ato de votar não é somente o depósito da cédula na urna, mas a escolha de um candidato dentre aqueles registrados, e também a possibilidade de votar em branco ou anular o voto. O dever do voto, possibilita a participa- ção do eleitor no processo político.

O voto é secreto. O objetivo é garantir a liberdade de escolha, sem temer represálias. Essa liberdade de voto é um direito subjetivo ao sigilo da votação. O eleitor no momento da emissão do seu voto, dever ter ga- rantido o voto secreto. O secreto consiste em ser confidencial, não deven- do o seu autor, ou terceiro revelar o voto.

Comparando com o direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) garante em seu artigo 14, o voto secreto. Vejamos:

A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual, para todos, e, nos termos da lei, mediante [...](BRASIL, 1988, art. 14).

O sigilo do voto é assegurado por diversos mecanismos: o uso de cédulas oficiais, o próprio eleitor faz o depósito da cédula na urna ou faz a escolha no painel da urna eletrônica, o isolamento do eleitor em cabine

indevassável, o eleitor apenas assina a lista de presença(BRASIL, 1965).

Num dos momentos do livro, narra-se a reunião do Primeiro-minis- tro com os demais ministros. No diálogo entre os Ministros da Justiça, Cultura e Defesa, observa-se o conflito de entendimento sobre direitos. O Ministro da Justiça inicia afirmando que os cidadãos, ao votarem em branco, não fizeram mais que exercer um direito que a lei explicitamente lhes reconhece. Já o ministro da Defesa afirma que os direitos não são abstrações, sendo que direitos merecem-se ou não se merecem, e o povo da Capital não os merece. Enquanto o Ministro da Cultura completa que realmente os direitos não são abstrações, mas têm existência até mesmo quando não são respeitados.

O Direito na Obra Ensaio sobre a Lucidez: o conceito de liberdade em Saramago 49

Outro momento do livro é um dos planos do Estado que consiste na retirada do Governo na Capital, pois os governantes acreditaram que cau- saria desordem, promoveria a insegurança e aumentaria a criminalidade. Diante de tal fato, os serviços públicos entraram em greve. Vejamos:

O editorial foi lido, a rádio repetiu as passagens principais, a televisão entrevistou o director, e nisso se estava quando, meio-dia exacto era, de todas as casas da cidade saíram mulheres armadas de vassouras, baldes e pás, e, sem uma palavra, começaram a varrer as testadas dos prédios em que viviam, desde a porta até ao meio da rua, onde se encontra- vam com outras mulheres que, do outro lado, para o mesmo fim e com as mesmas armas, haviam descido. Afirmam os dicionários que a testada é a parte de uma rua ou estrada que fica à frente de um prédio, e nada há mais certo, mas também dizem, dizem-nos pelo menos alguns, que varrer a sua testada significa afastar de si alguma responsabilidade ou culpa. Grande engano o vosso, senhores filólogos e lexicólogos distraídos, varrer a sua testada começou por ser precisamente o que estão a fazer agora estas mulheres da capital, como no passado também o haviam feito, nas aldei- as, as suas mães e avós, e não o faziam elas, como o não fazem estas, para afastar de si um responsabilidade, mas para assumi-la. Possivelmente foi pela mesma razão que ao terceiro dia saíram à rua os trabalhadores da limpeza. Não traziam uniformes, vestiam à civil. Disseram que os unifor- mes é que estavam em greve, não eles.

Ao ministro do interior, que havia sido o autor da idéia, não lhe assentou nada bem que os empregados dos serviços de recolha do lixo tivessem espontaneamente regressado ao tra- balho, atitude que, na sua compreensão de ministro, mais do que uma demonstração de solidariedade com as admirá- veis mulheres que tinham feito da limpeza da sua rua uma questão de honra, facto que nenhum observador imparcial teria dúvida em reconhecer, tocava, sim, as raias da cumpli- cidade criminosa.(SARAMAGO, 2007, p. 103-105).

A renúncia da democracia pelos cidadãos da capital demonstra a plena lucidez, de não haver necessidade de um governo, possibilitando a convivência em comunidade sem necessitar do mando ou comando de poucos, ou do medo imposto pela polícia.

Nota-se que os atos dos cidadãos são atos solidários, uns cooperan- do com outros, para uma boa convivência e harmonia. E na obra fica claro que em nenhum momento os cidadãos violaram a lei. Verifica-se que o autor utilizou a solidariedade dos cidadãos da Capital como atos de

não-dominação. Assim, pode-se afirmar que não há possibilidade de admi-

tir a aplicação do anarquismo na obra de Saramago.