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4 Ama teu Próximo como a ti Mesmo

Buscamos demonstrar o sentido cristão da solidariedade, bem como apontamentos sociológicos de aproximação entre solidariedade e Direito, de modo a solidificar significados para a solidariedade querida por nós, exigida pela Constituição Federal de 1988.

4.1 Solidariedade e Igreja: o caso da Encíclica caritas in

veritate

Por definição básica, a solidariedade, em um primeiro momento, pode ser vista como o sentimento que leva os homens a ajudarem-se mutua- mente, trazendo em si implicações de cooperação e integração entre os indivíduos. Nessa perspectiva, a solidariedade se demonstra como fator social coligado à assistência ao próximo, concepção claramente ligada à caridade.

11 Transcrevemos oração de Raul Follereau, O pai dos leprosos (1902-1977), naquilo que

ajuda a construir a Civilização do amor: “Senhor, ensinai-me a não me contentar com amar só os meus “ Ensinai-me a pensar em todos os outros e amar aqueles que ninguém ama “ Fazei- me sentir o sofrimento dos outros “ Dai-me a graça de compreender que em cada minuto de minha vida, tão feliz e protegida por vós, há milhões de seres que são meus irmãos e que morrem de frio e de miséria sem o ter merecido “ Tende piedade de todos os pobres do mundo “ Perdoai-nos por tê-los esquecido “ Não permitais que eu pretenda ser feliz unicamente para mim “ Concedei-me a angústia da miséria do mundo “ Que minha oração e meu trabalho de hoje contribuam para diminuir a aflição e a miséria, e que meu coração se abra ao amor verdadeiro. Amém”. Maiores detalhes ver: <http://www.raoul-follereau.org/>. Acesso em: 28 jun. 2010.

O Caçador de Pipas: em busca do conteúdo jurídico da solidariedade 149

O cristianismo foi decisivo para a inserção da caridade nos povos, aduzindo que as práticas sociais deveriam ser voltadas para o próximo, como meio de realização pessoal e observância aos mandamentos divi- nos. O evangelho de São Lucas expõe que Jesus Cristo, ao ser indagado, não por acaso, por um, assim designado, intérprete da lei acerca de como alcançar a vida eterna, oferece a seguinte resposta: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de todas as tuas forças e todo o teu entendi-

mento; e amarás ao teu próximo como a ti mesmo”12, determinando a

feição da atuação do cristão na sociedade, o sacrifício individual em prol

do outro13. A caridade cristã é a via mestra da doutrina social da Igreja

Católica, como relação pessoal com Deus e com o próximo, firmando a

máxima Deus caritas est14, sendo o sentimento de alteridade apregoado

entre os cristãos como forma de atender a vontade divina, coligado ao desapego material e ao compromisso beneficente da vida humana.

O Papa Bento XVI dedicou a sua primeira encíclica, Caritas in

veritate, ao tema da caridade, coligando caridade ao ideal de justiça em

prol do bem comum, outorgando a cada qual o que, por justiça, é seu. A caridade se insere como sustentáculo necessário da concretização da

equidade, justiça feita com amor pelo próximo15.

12 BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de São Lucas, capítulo 10, versículo 27.

13 A parábola do bom samaritano é a conceituação máxima da caridade descrita pelos

ensinamentos de Jesus Cristo. Nela, um homem, vindo de Jerusalém para Jericó, é saqueado por salteadores, causando-lhe graves lesões. Apesar de sua condição, várias pessoas passam pelo local, mas nada fazem para ajudá-lo. Nesse ínterim, aparece um samaritano, o qual, com compaixão, tratou de seus ferimentos com azeite e vinho, bem como o levou à uma estala- gem para repousar. No outro dia o samaritano foi embora, mas antes disso entregou algumas moedas ao hospedeiro, lhe autorizando a dar tudo de bom e melhor ao homem ferido, se comprometendo a pagar o eventual valor a maior. (BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de São Lucas, capítulo 10, versículos 28-36.

14 Tradução livre: Deus é caridade.

15 Para o Papa Bento XVI “o indivíduo deve agir segundo o postulado da caridade para além

da vontade divina, mas como ideário social voltado ao bem comum: Em primeiro lugar, a justiça. Ubi societas, ibi ius: cada sociedade elabora um sistema próprio de justiça. A caridade

supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é « meu »; mas nunca existe sem

a justiça, que induz a dar ao outro o que é « dele », o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso « dar » ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é « inseparável da caridade », é-lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, « a medida mínima » dela, parte integrante daquele amor « por acções e em verdade » (1 Jo 3, 18) a que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela empenha-se na construção da « cidade do homem » segundo o direito e a justiça. Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A « cidade do homem » não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia

4.2 Solidariedade Social e Direito: Perspectiva de Durkheim

É nos trabalhos sociológicos de Émile Durkheim, preocupado com a coesão”integração social, que a solidariedade foi elevada à condição de amálgama da própria sociedade.

Fator de coesão social, a solidariedade é observada por meio do di- reito16.

Metodologicamente, Durkheim atenta para que classifiquemos as diferentes espécies de Direito, no aspecto da sanção, e, após, procuremos quais as diferentes espécies de solidariedade que lhe correspondem (DURKHEIM, 1980, p. 127).

Ao Direito repressivo corresponde a solidariedade mecânica, funda- mentada pela semelhança, do fato de certo número de estados de consci-

e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo. Depois, é preciso ter em grande consideração o bem comum. Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmen- te pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele « nós-todos », formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência

de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro,

valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e cultural- mente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais. Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. Este é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai diretamente ao encontro do próximo, fora das media- ções institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A acção do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras”. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/ benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html>, acesso em 26 jun. 2010.

16 Nesse sentido “mas a solidariedade social é um fenômeno completamente moral que, por

si próprio, não se presta a observação exata nem sobretudo à medida. Para proceder, quer a esta classificação, quer a esta comparação, é preciso portanto substituir o fato interior, que nos escapa, pelo fato exterior, que o simboliza, e estudar o primeiro através do segundo. Este símbolo visível é o direito”. DURKHEIM, Emile. Divisão do trabalho social e direito. In: SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito: leituras básicas de sociologia. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1980. p. 124.

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ência serem comuns a todos os membros de uma sociedade. De tal solida- riedade nasce o Direito repressivo, que inflige uma pena ao agente que atentou contra os valores comuns. Quanto maior a solidariedade mecâni-

ca, maior o Direito Penal.(DURKHEIM, 1980, p. 128)

Já ao Direito restitutivo liga-se a solidariedade orgânica, derivada da diferenciação e especificação dos diversos agentes da sociedade, que pressupõe uma maior divisão social do trabalho, portanto, própria de soci- edades mais complexas. Nasce a solidariedade a partir da dependência que os indivíduos diferenciados têm uns dos outros, em razão da diferen- ça. O Direito produzido é o restitutivo, o qual tem por objetivo restituir à normalidade o estado das coisas, colocá-las como elas deveriam ser. Quanto maior a solidariedade orgânica, maior o Direito Civil, o Direito Constituci-

onal, o Direito Comercial etc.(DURKHEIM, 1980, p. 129)

Sendo que onde a solidariedade se apresenta mais forte, mais inten- sas serão as relações interpessoais e maior será o número das normas jurí- dicas que as determinam. De modo que o Direito é a organização da vida social naquilo que ela tem de mais estável e preciso e, a vida social, na medida em que se faz durável toma uma forma definida e organizada (DURKHEIM, 1980, p. 125); portanto, compreender a Sociedade e o Di- reito é debruçar-se sobre a solidariedade.