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Tudo o que, até esta altura, afirmou-se a respeito da artificial padro- nização das condutas humanas pelas normas pode ser facilmente corro- borado por Habermas, pois este afirma que a esfera pública burguesa é entendida como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público. As pessoas reivindicam a esfera pública, pois ela está regulamentada por uma autoridade (HABERMAS, 1984, p. 42).

A lógica disciplinadora foi desenvolvida na era moderna, o modo certo estava, nos termos de Bauman, pautado no “[...] economicamente sensato, esteticamente agradável e no moralmente apropriado” (BAUMAN, 1999, p. 9). Tal conjuntura requeria comandos previsíveis para permitir relações e negociações seguras, já que, para os modernos, a moralidade, antes de ser um traço natural, é algo que precisa adentrar nas condutas humanas.

Mas, a contrário senso, está a espontaneidade humana, atos que são desconformes à ordem, mas que por isso são mal-entendidos e classi- ficados como delitos, para, paulatinamente, serem substituídos pelas jus- tificações racionais e precisas da ordem Estatal.

Os modernos organizaram modelos de ação para assegurar valores e práticas nos relacionamentos, contudo o fizeram cada vez mais subordi- nados à funcionalidade e compromissados com o lucro.

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Interessante, aqui, confrontar os argumentos de Bauman, que prelecionam não se resumir a moralidade ao estar com os outros, o regula-

do: ela é antes pessoal, um bem em si mesmo, ser pelo outro4, ontológica;

vai além ao aferir que:

Mas porque eu devo me interessar pelos outros? [...] Eu sou eu na medida em que sou para o Outro. Uma vez que esta ambivalência se oculta à vista ou é banida da vista, somente o egoísmo pode se colocar contra o altruísmo, o interesse próprio contra o bem-estar comum, o eu moral contra a norma ética socialmente endossada.(BAUMAN, 1999, p. 89-93).

Pode parecer um tanto disforme para os modernos, mas se um ho- mem é digno de veracidade e confiança, não é devido à sua propriedade ou pelo volume dos seus bens, porém, unicamente pelo fato de ser homem. A capacidade de um homem confiar no outro não dependente das normas. Além do mais, a sociedade é composta por um conjunto de particu- lares que seguem as leis gerais e abstratas. Mas, existe o ser original, como representa Bartleby, uma figura solitária, um singular que não se encaixa em uma forma explicável, que revela um pensamento sem imagem e da diferença. Aí está uma lógica extrema, sem racionalidade.

Conclusão

Através da perspectiva exposta na obra, percebemos que a tarefa de Melville é denunciar a arrogância do homem moderno ao desqualificar o Outro, em prol do moralmente apropriado. O autor explora a fraternidade em sua novela, um assunto das almas originais, pois era um aspecto lon- gínquo para uma comunidade onde os membros não eram capazes de ter confiança no outro sem a presença de uma norma.

Para Deleuze, Bartleby não é uma anomalia, mas é a linguagem utilizada por Melville para diagnosticar o mal que a sociedade norte-ame- ricana estava sofrendo. O personagem, então, não é o enfermo, mas é o

médico de uma humanidade anormal5. Vejamos:

4 Como pessoa moral, eu estou só, embora como pessoa social eu esteja sempre com outros;

da mesma forma que sou livre, mas apanhado no denso tecido de prescrições e proibições. “Estar com outros” pode-se regulamentar por regras codificáveis. “Ser pelo Outro” manifes- tamente não pode. (BAUMAN, 1999, p. 9)

5 “Vocação esquizofrênica: mesmo catatônico e anoréxico, Bartleby não é o doente, mas o

As obras-primas da literatura formam sempre uma espécie de língua estrangeira no interior da língua em que estão escritas. Melville inventa uma língua estrangeira que corre sob o inglês e que o arrasta: desterritorializa.(DELEUZE, 1997, p. 83-84).

Nesse sentido, a linguagem é capaz de dizer o indizível, pensar o impensável. Em verdade, a linguagem é uma fórmula que devasta as refe- rências, indo além das convenções.

A crise das ideologias modernas resultou na redução da força de seus princípios e parâmetros rígidos. Não poderia ser diferente, pois a esfe- ra pública burguesa estava amparada em uma identidade fictícia das pes- soas privadas reunidas num público em seus duplos papéis de proprietári- os e de meros seres humanos (HABERMAS, 1984, p. 74)

Para Bauman, a pós-modernidade é marcada por um ponto de vista mais maleável, como um líquido. É o resultado do derretimento dos sóli-

dos da antiga era moderna. Nesse sentido:

Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. [...] Enquanto os sólidos têm dimen- sões especiais claras, mas neutralizam o impacto e, portan- to, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamen- te a seu fluxo ou tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la (BAUMAN, 2005, p. 8).

Depreende-se pela metáfora mencionada, que a pós-modernidade compreende que as ordens disciplinadoras são frágeis e no fim contingen-

tes, bem como aprendem a respeitar as ambiguidades6 do ser. Isso não

quer dizer que o mundo seja mais tolerável, mas que há outras perspecti- vas; a vida líquida é precária, traz condições de constantes incertezas.

Os pós-modernos, no sentido de que vivem da baixa modernidade – e além do mais, de acordo com Lyotard “[...] não é uma época, mas antes um modo de pensamento, na enunciação, na sensibilidade [...]” (LYOTARD, 1993, p. 31) –, necessitam da ética. Essa é a conjuntura de hoje a qual está arrolada na textura das singularidades, sejam elas sexu- ais, estéticas e sociais; a pós-modernidade busca respeitar e mantê-las. Nos termos de Lyotard:

6 Como verificamos na nossa magna carta em que há o reconhecimento de que o Estado

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A condição pós-moderna é, todavia, tão estranha ao desen- canto como à positividade cega da deslegitimação.[...] O saber pós-moderno não é somente o instrumento dos po- deres. Ele aguça nossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável. Ele mesmo não encontra sua razão de ser na homologia dos experts, mas na paralogia dos inventores.(LYOTARD, 1993, p. xvii).

Ter-se-á que aprender a pensar o novo homem como sujeito que se constitui problematicamente em um mundo de mudanças na ciência, na arte, na política e na economia. É o desafio da ética atualmente, assaz nas sábias palavras de Carneiro Leão:

O desafio da ética hoje não está em transformar-se numa ética da situação. [...] está em entregar-se toda à “espera do inesperado”. Uma espera que vive e vivifica a vida do pen- samento. [...] deixar-se transformar pelo vigor originário do não saber [...]. Uma ascese rigorosa se impõe e um esforço continuado se recomenda: a ascese de se despojar de toda presunção de ser e o esforço de renunciar a toda pretensão de já saber o futuro.(LEÃO, 2008/2009, p. 21)

A pós-modernidade traz um novo ponto de vista sobre a moral. Ela não apresenta as amarras modernas, sendo, portanto, o começo para uma vida menos racional. Significa, não obstante, que a questão foi recolocada e a fissura não está só no reconhecimento e na identificação das diferen- ças, mas, sobretudo, está na compreensão de como corrigir as desigualda- des, de como conectá-las (CANCLINI, 2007, p. 16).

Referências

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______. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

CANCLINI, Nestor García. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Tradução de Luiz Sergio Henriques. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

CUGINI, Paolo. Identidade, afetividade e as mudanças relacionais na modernidade liquida na teoria de Zygmunt Bauman. In: Diálogos

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DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34, 1997.

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HABERMAS, JURGEN. Mudança estrutural da esfera pública:

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LEÃO, Emmanuel Carneiro. O desafio da ética hoje em dia. In:

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MACHADO, Roberto. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro:

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MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. Tradução de Irene Hirsch. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

Vidas Secas e o MST: uma fuga legítima para a sobrevivência 183