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A unidade do ordenamento jurídico à luz da doutrina de Norberto Bobbio

Para NORBERTO BOBBIO, ordenamento jurídico consiste em um conjunto ou complexo de normas que nunca existiriam isoladamente, mas sempre em um contexto marcado pelo particular relacionamento destes elementos entre si. Após dissertar sobre a problemática divisão do estudo do direito positivo em duas partes (uma atinente a norma jurídica e outra ao ordenamento jurídico) e atribuir a HANS KELSEN a origem desta metodologia, NORBERTO BOBBIO diz que uma definição satisfatória do Direito é possível quando perpetrada sob o ponto de vista do ordenamento jurídico.124

Quando se pretendeu definir o Direito através de características atinentes à norma jurídica, justifica NORBERTO BOBBIO, várias foram as dificuldades encontradas pela doutrina. Dentre estas ele ressaltou a impossibilidade de se obter qualquer elemento que caracterizasse a norma jurídica enquanto tal e que não pudesse ser encontrado em outras espécies de normas (morais, sociais etc.), o que traria circularidade a este tipo de definição.

Em suas tentativas de definir o Direito a partir de elementos pertencentes a norma jurídica NORBERTO BOBBIO destaca quatro critérios que, no seu entender, seriam os mais relevantes: (a) critério formal; (b) critério material; (c) critério do sujeito produtor da norma; e, (d) critério do sujeito destinatário da norma posta.

Ao analisar o critério formal, contudo, define-o NORBERTO BOBBIO125 com base em elementos estruturais das normas, deixando de levar em consideração o seu veículo introdutor. Como todas as normas poderiam ser positivas ou negativas, categóricas ou razão, uma questão de validade, cuja aferição deve ser examinada, originariamente, em face do

ordenamento constitucional sob cuja égide foi produzido o ato do Poder Público posto sob contraste”

(STF, Tribunal Pleno, ADIn 7 QO/DF, trecho do voto do rel. Min. Celso de Mello, DJU 04.09.1992, p. 14.087 – destaques do autor).

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A interpretação denominada histórica, portanto, poderia ser melhor nominada de interpretação inter- sistêmica ou mesmo inter-ordenamento: sua diferença quanto à interpretação intra-sistêmica resumir- se-ia ao objeto de análise; todos eles, contudo, são jurídico-positivos.

124

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 22.

125

Deve-se destacar que para NORBERTO BOBBIO existiriam em um sistema normativo apenas normas hipotéticas (nunca categóricas). Cf. Teoria do ordenamento jurídico, p. 23.

hipotéticas e gerais (abstratas) ou individuais (concretas), este critério não se prestaria para os fins por ele almejados.

O critério material (conteúdo das normas jurídicas) até poderia diferenciar as normas jurídicas das normas morais, mas não poderia fazê-la em relação às normas do costume, que se refeririam a ações externas e ações intersubjetivas.

Ao falar sobre o critério do “sujeito que positiva a norma”, NORBERTO BOBBIO se refere à teoria que considera jurídica a norma introduzida pelo “poder soberano”. Ocorre que ao falar-se de “poder soberano” já não mais se está no plano das normas, singularmente consideradas, e sim do ordenamento jurídico (pois “poder soberano” constituiria um conjunto de órgãos capazes de criar, manter e desenvolver o próprio ordenamento jurídico). Deste modo, diz NORBERTO BOBBIO, este critério também não se prestaria para tal finalidade.

O critério do “sujeito ao qual se destinaria a norma remeteria”, tal qual o critério do “sujeito que positiva a norma”, à definição de ordenamento. Com isso NORBERTO BOBBIO parte para a sua definição de norma jurídica enquanto um comando cuja “execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada”.126

Definir o Direito com o apoio da noção de sanção organizada o distinguiria dos demais sistemas em razão de uma característica “sua”, e não em um elemento da norma. Através desta transferência NORBERTO BOBBIO leva o problema da definição do Direito para a definição de ordenamento jurídico: assim sendo norma jurídica é toda aquela que pertença a um ordenamento jurídico.

Neste modelo o significado do termo “jurídico”, que diferencia tanto ordenamento como norma, passaria a ser analisado à luz do primeiro, e não do segundo signo. Com isso NORBERTO BOBBIO define ordenamento jurídico como aquele integrado por elementos que caracterizem uma sanção organizada: não se faz necessário, sublinhe-se, que todas as normas sejam sancionadas, e sim que estas o sejam em sua maioria.127

Como ordenamento jurídico é aquele marcado por uma sanção organizada, não obstante alguns de seus elementos não o sejam, deveria NORBERTO BOBBIO apontar qualquer seria o critério por ele utilizado para considerar uma norma como “jurídica”.

126

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 27.

127

Ao fazê-lo, NORBERTO BOBBIO128 define norma jurídica válida como aquela pertencente a um ordenamento jurídico real, ou seja, efetivamente existente numa dada sociedade. Esta validade (existência) poderia ser formal ou materialmente aferida.129

TÁCIO LACERDA GAMA define norma válida como aquela passível de ser aplicada coercitivamente.130 A juridicidade da norma não seria um atributo da norma (predicado monádico), mas decorreria de sua relação com o sistema (predicado poliádico): “as normas jurídicas são aquelas que se diferenciam das demais por terem o seu cumprimento garantido por sanção externa, institucionalizada e imposta mesmo contra a vontade dos seus destinatários”.131

Desse modo, o que para NOBERTO BOBBIO caracterizaria o ordenamento jurídico enquanto tal (existência de sanção institucionalizada), para TÁCIO LACERDA GAMA exerceria o papel de definir a validade das normas: ambas as abordagens, portanto, são apenas superficialmente semelhantes.

Adotar a existência de sanção institucionalizada como pressuposto de validade das normas jurídicas não nos parece a melhor forma de vislumbrar o ordenamento jurídico, e isso foi intuitivamente reconhecido por TÁCIO LACERDA GAMA ao dizer que “para saber se uma norma qualquer é ou não jurídica, para saber se existe ou não uma sanção coercitiva, institucionalizada, para assegurar sua aplicação, temos que saber se essa norma foi ou não produzida segundo o que prescreve outras normas”.132

É a definição de institucionalização, que exerce o importante papel de dar juridicidade à sanção, que caracterizaria as normas jurídicas enquanto tais e que estaria presente em todas elas: jurídico, sobre este prisma, são os veículos introdutores que o ordenamento jurídico considera aptos a lhe introduzir normas e as normas por eles introduzidas. É o veículo introdutor que diferencia as normas jurídicas das demais, pois é ele que dá juridicidade à

128

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 137.

129

“Bobbio, en cambio, distingue entre validez formal y validez material. Una norma es formalmente válida cuando ha sido producida por el sujeto competente según el procedimiento prescrito; es materialmente válida cuando no está en conflicto con otra norma. Una norma es válida en sentido pleno (o, brevemente, „existente‟) si, y sólo si, es validad formal y materialmente” (GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Estúdios de teoría y metatoría del derecho. 1ª ed. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 68).

130

GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. 127.

131

Idem, ibidem, p. 132.

132

norma introduzida e diferencia as sanções institucionalizadas daquelas produzidas a margem do ordenamento jurídico.

Um enunciado doutrinário pode muito bem ser semanticamente idêntico a um texto de direito positivo sem que, com isso, possa ganhar foros de norma jurídica: a própria função (prescritiva ou descritiva) do enunciado advém de seu veículo introdutor.

Este é o motivo pelo qual PAULO DE BARROS CARVALHO entende que “as fontes do direito serão os acontecimentos do mundo social, juridicizados por regras do sistema e credenciados para produzir normas jurídicas que introduzam no ordenamento outras normas (...)”.133

Isso enquanto atos de enunciação, pois os enunciados constituem as próprias normas. É daí, como pontua TÁREK MOYSÉS MOUSSALEM, que “resulta a distinção entre o costume puramente social e o costume denominado jurídico. Este pertence ao mundo do „dever-ser‟; aquele, ao mundo do „ser‟”.134

Adotamos, deste modo, uma diferenciação de índole formal135 entre as normas jurídicas e aquelas não-jurídicas: sem a análise do veículo introdutor,136 é impossível dizer se um enunciado é ou não jurídico-positivo.

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