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A Universalidade dos Direitos Sociais no Brasil em Tempos de Neoliberalismo.

2. Os Direitos Sociais em Tempos de Neoliberalismo.

2.5. A Universalidade dos Direitos Sociais no Brasil em Tempos de Neoliberalismo.

Com base nos fundamentos teóricos já aludidos neste estudo, ousamos conceituar o neoliberalismo a partir de seus elementos constitutivos mais universais, dentro de uma compreensão lógica, como um conjunto de medidas práticas, contrárias ao

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Cf: nota 4 na introdução desta tese.

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Sobre o único sistema de saúde universal da América Latina a autora se refere a universalidade garantida constitucionalmente.

Estado de Bem-Estar Social, cujas características elencamos como sendo a redução das políticas públicas, conseqüentemente, a remercantilização dos bens sociais (saúde, educação, etc), e a adequabilidade às transformações econômicas dentro de um determinado país e em face de um determinado contexto histórico.

De acordo com Soares (2000:35), em uma perspectiva histórico-estrutural, a expressão interna da crise dos anos setenta no Brasil se dá no chamado esgotamento do Estado desenvolvimentista. Os anos oitenta aparecem como contraditórios para a América Latina, pois as transições democráticas foram acompanhadas, concomitantemente, dos retrocessos econômicos.

O debate em torno do desenvolvimento / subdesenvolvimento, nas décadas de cinqüenta e sessenta, enfocava a participação do capital estrangeiro nas economias periféricas. Durante décadas, vários países da América Latina, inclusive o Brasil, tiveram seu crescimento econômico sustentado a partir do modelo de substituição de importações. Mesmo tendo este modelo gerado desajustes econômicos graves, a exemplo de concentração de renda, fechamento externo da economia, ele durou cerca de 30 anos (MACHADO, 1999).

Neste ciclo, se, por um lado, os países periféricos buscavam investimentos externos para ampliar a sua capacidade de infra-estrutura e modernização de equipamento industrial, por outro, ocorria um repatriamento do capital nacional, ou seja, a fuga de capital, má distribuição de renda, aumento da pobreza, entre outros.

A crise fiscal do Estado tem seu agravamento quando a crise financeira ameaça os bancos privados internacionais, que emprestaram dinheiro aos países latino- americanos: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM) atuam como cobradores da dívida e executores do programa de ajuste. Só a partir de 1989, após o lançamento do Plano Brady, uma iniciativa do governo George Bush, o FMI e o BM adotam políticas de apoio à redução da dívida. Este plano de apoio tem como estratégia a redução e combate à pobreza estrutural, através da adesão dos países endividados aos programas assistenciais seletivos e focalizados idealizados por estes mesmos organismos (MACHADO, 1999).

Para Soares (2000:45), temos motivos de “ordem estrutural e conjuntural – cujas

determinações externas e internas se articulam na expressão de uma realidade complexa e contraditória, permeada de razões políticas que explicam as propostas neoliberais para o Brasil”.

O Estado brasileiro busca se enquadrar no plano de ajuste econômico através de reformas administrativas. Para tal, propõe em primeiro lugar reduzir o seu tamanho, a partir de privatizações de empresas estatais em áreas como siderurgia, energia, telecomunicações; implantar uma agenda política pautada na contenção de gastos públicos, com demissões e aposentadorias dos funcionários públicos; desenvolver na área social ações para grupos focalizados, vindo a ocorrer, assim, uma crescente demanda por serviços sociais e políticas públicas para os demais grupos da população. Em segundo, desregulamentar a economia, aumentando a governança e a governabilidade65. Contribuíram para essa necessidade de mudança a crise fiscal, o esgotamento de estratégias de substituições de importações, a superação de formas de intervenção econômico-social, o aparelho do Estado centralizador de funções, a rigidez dos procedimentos administrativos e o excesso de normas e regulamentos.

Em 1988, o Brasil se diferencia dos outros países da América Latina por garantir constitucionalmente o acesso gratuito aos serviços de saúde, baseado em princípios igualitários e universais, contrariando a tendência neoliberal que estava sendo implantada no Cone Sul.

O sistema de proteção social brasileiro, fundamentado na ampliação dos direitos sociais e de cidadania, conhecido como sistema de seguridade social, é resultado da articulação e da luta da sociedade civil organizada e da classe trabalhadora, que compreende, entre outros, movimentos sociais urbanos e rurais, associações de

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A governança seria alcançada pelas privatizações, terceirização, transferência de serviços públicos para as organizações sociais através da chamada publicização, impulsionados pela adoção de mecanismos de mercado e pelo ajuste fiscal, através da implantação da administração gerencial, formulação de políticas públicas e pelas mudanças na ação estatal. A governabilidade refere-se às condições mais gerais do exercício do poder, engloba a relação entre o Estado e a sociedade, seria a característica do sistema político, forma de governo, intermediação dos conflitos de interesse, capacidade dos governantes de tomarem decisões que atendam às demandas efetivas dos governados.

portadores de patologia, trabalhadores em saúde, políticos e técnicos, demais segmentos e forças políticas que fazem parte da sociedade brasileira66.

Na década de noventa, na saúde, as decisões alocativa de recursos têm suas definições na focalização que se apresenta como substituição à universalização, em consonância com o ajuste neoliberal67. Essa substituição ocorre pela diminuição das funções do Estado para a área social, ou mesmo, pela implantação da reforma administrativa e do aparelho estatal.

Segundo Soares (2000: 79), a privatização e a descentralização, estratégias neoliberais mais difundidas, são seguidas da focalização, “a idéia é a de que os

gastos e os serviços sociais público / estatais passem a ser dirigidos exclusivamente para os pobres. Ou seja, somente aqueles comprovadamente pobres, via ‘testes de pobreza’ ou ‘ testes de meios’ (baseados nos means tests dos programas sociais norte-americanos), podem ter acesso aos serviços públicos”.

Nas políticas sociais, a estratégia da focalização “é o correlato da individualização da

força de trabalho e da possibilidade estrutural da exclusão de uma parte dela do mercado de trabalho, ou seja, da forma ‘legitima’ de acessar os recursos’”

(SOARES, 2000:79).

Um dos argumentos contrários à universalidade é a escassez de recursos, melhor explicando: diante da limitação de verbas públicas, define-se quem são os indivíduos e quantos terão direito aos programas estatais. A estratégia é introduzir critérios de focalização para a alocação de recursos e a segmentação e seletividade dos usuários.

Portanto, é a partir da aceitabilidade da focalização pelos gestores que o desmonte dos direitos sociais vai se configurando no Estado latino-americano. Noutros termos, consideramos que a focalização no acesso aos bens e serviços assistenciais

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Cf. CONIL, Eleonor Minho; BRAVO, Maria Inês Souza & COELHO, Franklin Dias. Políticas públicas e estratégicas urbanas: o potencial dos Conselhos de Saúde de uma esfera pública. In Serviço Social e Sociedade. Nº 49, Ano XVI, Nov. São Paulo: Cortez, 1995. Pp. 98-116.

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FLEURY, Sônia. Estado sem Cidadãos. Seguridade Social na América Latina. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994.

caminha gradualmente para decisões discricionárias e estratificadas por parte do Estado.

Para Soares (2000), esse critério discriminatório é avesso a qualquer conceito de cidadania. A restrição do acesso tem se mostrado completamente ineficiente para a América Latina na medida em que a grande maioria da população é composta por indivíduos pobres e constituem-se, em sua totalidade, como demanda por serviços públicos.

A lógica desta perspectiva é, no campo social e político, reduzir a universalidade do direito garantido e conquistado pela luta da classe trabalhadora subalternizada68. Já, no econômico, enfatizar o mercado e fortalecer a concepção de Estado mínimo. Deste modo, a lógica dessa estratégia é que, ao utilizar a focalização dos gastos, segmentação dos grupos e a seletividade dos programas, o Estado, através de seus governantes, estará “ajustando” a desigualdade social estrutural.

Neste sentido, enfatizamos que a lógica da doutrina neoliberal é contrária à legitimação do Estado através, dentre outras, de políticas públicas universais e de uma política de investimentos em áreas sociais, cujo interesse é apenas no desenvolvimento do Estado capitalista mínimo.

Assim, as práticas neoliberais no campo social e político objetivam a legitimação do Estado através de políticas públicas focalizadas e de uma política de investimentos restrita e seletiva, vis-à-vis a imperativa definição por organismos internacionais de financiamento de diminuir os recursos públicos. Estas instituições financeiras manifestam suas preocupações com o desenvolvimento do mercado que - sempre - transforma as necessidades sociais em mercadoria.

Atrelada a esta tendência, temos a mercantilização dos direitos sociais que o Estado neoliberal tem a preocupação cada vez mais de avançar esse processo. Daí, surgir um incisivo processo de mercantilizar os bens sociais como mecanismo de dar mais fôlego ao mercado com novos produtos.

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Cf. BRAVO, Maria Inês Souza & MATOS, Maurílio Castro de. A Saúde no Brasil: Reforma Sanitária e Ofensiva Neoliberal. In BRAVO, Maria Inês Souza & PEREIRA, Potyara A. P. (Orgs) Política Social e Democracia. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2002. P. 197-215.

Neste estudo, o termo mercantilização está relacionado ao papel fundamental que o Estado confere ao mercado - ao grande capital - à gestão dos seguros sociais e prestação de serviços de assistência à saúde. Segundo Netto (2000:88), “passos

enormes já foram dados no sentido de romper com a Seguridade Social pública: especialmente nos anos noventa (mas num andamento que vinha desde a década anterior), a Seguridade Social privada, conectada às grandes empresas, foi a que mais cresceu, particularmente no que tange aos benefícios previdenciários e aos serviços de saúde”.

A mercantilização dos direitos sociais é um dos instrumentos mais utilizados para se chegar a uma diminuição dos gastos sociais, seja através da negação da universalidade do acesso, através da focalização, segmentação e seletividade . Tais medidas de impacto são notadamente as mais perversas, das várias implementadas pelo governo central, pelo fato de que, como estratégias dos organismos internacionais, geralmente, não ponderam as tensões sociais do mundo moderno, como o aumento da taxa de desemprego estrutural, falta de habitação, educação de baixa qualidade, falta de acesso a serviços e assistência à saúde, dentre outros. Além de atribuir ao indivíduo a responsabilidade de responder as suas necessidades mediatas, numa sociedade de grande desigualdade social e econômica como as dos países periféricos.

O processo de mercantilização dos direitos sociais vem acompanhado também da implementação, por parte do Estado neoliberal, revelam a máxima do princípio do ajuste neoliberal: "A cada um de acordo com o que ele e seus instrumentos de

trabalho produzem".

Essa mercantilização explicita a tendência da política de ajuste neoliberal de descaracterizar o sujeito que - na qualidade de cidadão - tem o direito jurídico-formal a determinados equipamentos e bens sociais, obrigando-o a buscar no mercado alternativas para suas necessidades sociais como consumidor.

As políticas públicas focalizadas são seletivas, segmentadas e espacialmente setorializadas no sentido de fazer emergir também alguns subsistemas de serviços privados de seguridade social.

Outro aspecto importante a ser ressaltado da ação focalizada e seletiva do Estado em tempos de neoliberalismo é atender somente às demandas sociais cujo eixo central é a pobreza, através de mecanismos paliativos. Esse aspecto está presente na teoria de Friedman (1988), cuja fundamentação tem influenciado os pragmáticos neoliberais. Para o autor, a ação paternalista do Estado só é indispensável para aqueles que não são responsáveis pela sua sobrevivência, ou seja, para insanos e crianças. Os demais, mesmo os pobres, têm a liberdade para usar seus recursos econômicos e, assim, resolver se querem ou não se associar ao mercado, devendo, a partir de tal determinação, arcar com as conseqüências desta decisão.

Com este capítulo, objetivamos desvendar os ideais neoliberais de redução dos direitos sociais, em particular, a universalidade dos direitos sociais. É importante ressaltar que a tendência à redução da proteção social não atinge só a saúde, mas também a legislação trabalhista em vigor, a qual está sendo reconstruída a partir das invocações tecnológicas no modo de produção capitalista e que passam a interferir na reprodução da força de trabalho. Aqui nos reportamos à flexibilização das leis trabalhistas. Com essas modificações, propõe-se a retirada do Estado-regulador das relações do trabalho, de modo que se conjetura a possibilidade de troca de uma proteção social forte e com garantias de direitos legalmente instituídos por uma proteção agenciada através das novas formas de contrato coletivo de trabalho. Assim, os idealizadores do Estado mínimo defendem que, apenas, indivíduos livres é que podem ter atitudes de liberdade. A base deste entendimento é que o indivíduo capaz – capacidade produtiva e consumidora – ao buscar, através do Estado, qualquer tipo de proteção social, virá a interferir na ampliação do mercado livre. É nesta lógica que, nos próximos itens do terceiro capítulo, iremos abordar as estratégias governamentais para reduzir o direito à saúde, sem alterar os preceitos constitucionais do SUS de universalidade do acesso.

Capítulo III.