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Liberalismo e a Universalidade dos Direitos Sociais.

1. A Evolução dos Direitos do Homem.

1.10. Liberalismo e a Universalidade dos Direitos Sociais.

Se, por um lado, os direitos sociais surgiram nas sociedades liberais dos séculos XVIII e XIX, a partir das revoluções burguesas e da expansão do processo de industrialização, por outro, esses direitos sociais nas sociedades capitalistas do século XX exigem, para sua efetivação, ao contrário do que defendem os liberais, a ampliação dos poderes do Estado. Ou seja, a proteção dos homens requer uma efetiva interferência do Estado.

Nestes termos, foi a partir dessa constatação que surgiram as críticas dos igualitaristas46 contra a compreensão liberal de Estado. Conforme afirma Bobbio (2000:42),

“Da crítica das doutrinas igualitárias contra a concepção liberal do Estado é que nasceram as exigências de direitos sociais, que transformaram profundamente o sistema de relações entre os indivíduos e o Estado, até mesmo nos regimes que se consideram continuadores, sem alterações bruscas, da tradição liberal do século XIX”.

A base da crítica encontra-se na gênese do pensamento filosófico liberal. Sob a alegação de que

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O que geralmente caracteriza as ideologias igualitárias, segundo Bobbio (2000:37), “é o acento colocado no homem como ser genérico (ou seja, como ser que pertence a um determinado genus) e, por conseguinte, nas características comuns a todos os pertencentes ao genus e não tanto nas características individuais pelas quais um homem se distingue do outro (que é, ao contrário, o que caracteriza as doutrinas liberais); e não importa, de resto, se o acento cai nas características negativas do homem (os homens são todos pecadores) ou nas positivas (o homem é um animal naturalmente social)”.

“O liberalismo é uma doutrina só parcialmente igualitária: entre as liberdades protegidas inclui-se também, em geral, a liberdade de possuir e de acumular, sem limites e a título privado, bens econômicos, assim como, a liberdade de empreender operações econômicas (a chamada liberdade de iniciativa econômica), liberdades das quais se originaram e continuam a se originar as grandes desigualdades sociais nas sociedades capitalistas mais avançadas e as do Terceiro Mundo. As doutrinas igualitárias, de resto, sempre acusaram o liberalismo de ser defensor e protetor de uma sociedade econômica e, portanto, também politicamente não-igualitária” (BOBBIO, 2000:42).

Não obstante, vale ressaltar que o aparecimento de serviços sociais destinados à classe trabalhadora decorre da lei destinada a fortalecer os direitos civis, dispondo de serviços de assistência jurídica a cidadãos desempregados para decidir sobre seus litígios frente a um tribunal de justiça (MARSHALL, 1967). Trata-se, neste caso, da tentativa de tornar o direito extensivo não só a proprietários dos meios de produção, mas também iniciar um processo de modificações das relações sociais e econômicas que decorrem da exploração e acumulação de mais-valia. O direito formal em defesa da classe trabalhadora começa a estabelecer o mínimo de igualdade jurídica.

A concepção liberal de Estado - mercado livre e pouca intervenção na vida privada – se vê ameaçada por esse movimento, trazendo à tona a discussão da universalidade não só dos direitos e das garantias, mas fundamentalmente a relação das atividades estatais que passam a surgir a partir dessa universalidade.

Talvez um dos principais autores dessa teoria seja Hayek (1977:76), tido como um dos defensores do liberalismo clássico na contemporaneidade. Pois, ao tratar da universalidade de direitos sociais, este autor afirma que: “Obter os mesmos

resultados para diferentes pessoas, é necessário tratá-las diferentemente. Dar a diferentes pessoas as mesmas oportunidades objetivas equivale a não lhes dar a mesma possibilidade subjetiva”.

Sua tese está baseada na perspectiva de que há igualdade entre os cidadãos. Esta igualdade decorre do livre mercado, conseqüentemente, da liberdade de propriedade e de concorrência, sem prejuízos ao bom funcionamento do sistema. A demanda por direitos requer um planejamento de ações estatais (ações

denominadas por Hayek de monopólio estatal), no entanto, os planejadores esquecem da liberdade de escolha que o indivíduo possui. Embora o Estado só controle uma parte do uso dos recursos disponíveis, o problema reside no efeito de suas deliberações para a parte do sistema econômico restante. Os efeitos se tornam tão amplos que, indiretamente, o Estado passa a dominar quase tudo (HAYEK, 1977).

Por isso, HAYEK (1977:54) considera que diversas correntes de pensamento, como o coletivismo, comunismo, socialismo, etc, contemporizaram entre si sobre como

“Pretendem dirigir os esforços sociais. Todos eles, porém, se distinguem do liberalismo e do individualismo por quererem organizar a sociedade inteira e todos os seus recursos para essa finalidade única e por se negarem a reconhecer esferas autônomas em que os objetivos individuais tenham importância suprema” .

Analisa ainda que essas teorias são totalitárias, no exato significado do termo,

“ ‘O objetivo geral’ ou ‘ finalidade comum’ para o qual se deveria organizar a sociedade é geralmente vago como o ‘ bem comum’, o ‘ bem estar geral’ ou ‘ interesse comum’. Não se requer muita reflexão para ver que esses termos não têm uma significação suficientemente definida para determinar uma linha de ação. O bem-estar e a felicidade de milhões não podem ser aferidos numa escala única de valores”.

(p.54).

Em seu livro O Caminho da Servidão, esse liberal faz uma crítica ao movimento de trabalhadores organizados. A organização é, para ele, a essência do privilégio. Porque, na esfera ideológica, a organização não permite a livre concorrência e tampouco amplia os direitos tão propalados. Ao contrário, a organização modifica as relações no livre mercado, faz com que a economia fique amarrada às grandes corporações, dificultando o crescimento mais amplo do sistema. Nestes termos, Hayek (1977:187) sustenta que:

“O momento fatal da história moderna foi quando os movimentos trabalhistas, que só podem atingir as suas finalidades primordiais pela luta contra qualquer privilégio, caíram sob a influência das doutrinas hostis à competição e ele próprio se envolveu na luta pelo privilégio. O recente desenvolvimento do monopólio em grande parte resulta de

uma colaboração voluntária entre o capital organizado e o trabalho organizado, em que os grupos privilegiados do trabalho compartilham os lucros do monopólio e às expensas da comunidade e em especial dos mais pobres: os empregados nas indústrias menos bem organizadas e os desempregados”.

O liberalismo de Hayek considera que os direitos conquistados com a organização de trabalhadores são privilégios. A sua concepção diverge da tradição marxiana da definição de privilégio. A divergência consiste no método de compreender como o direito se transforma em privilégio nas sociedades capitalistas.

O texto de Marx a que nos referimos ficou conhecido como Crítica ao Programa de Gotha, manuscrito redigido em 05 de maio de 1875. Neste, o autor escreve uma carta para que seja lida e enviada por W. Brache ao Congresso, que ocorrerá na cidade de Gotha, no período de 22 a 27 de maio. Este evento contou com a presença de duas organizações operárias germânicas existentes naquele momento: o Partido Social Democrata, conduzido por Liebknecht e Babel, e a Associação Geral dos Operários Alemães, estrutura política dirigida por Hasenclever, Hasselmann e Töllcke, cujo objetivo era criar uma organização única. Neste artigo, o autor faz comentários sobre o Programa do Partido Operário Alemão, que propõe que todos os membros da sociedade têm igual direito a perceber o fruto íntegro do trabalho. Marx, ao analisar o programa, o faz através de correções às teses que serão apresentadas neste congresso (MARX, 1977).

O autor analisa, em seus manuscritos, o direito igual fundado a partir de conflitos e contradições de classe. Para este, em princípio, o direito igual continua sendo um direito burguês, pois a base da acumulação está no lucro e na exploração de uma classe sobre a outra. Afirma, ainda, que só “com abolição das diferenças de classe,

desaparecem por si mesmas as desigualdades sociais e políticas que delas emanam” (MARX, 1977:219).

Uma das críticas de Marx (1977:214) ao Programa de Gotha está na concepção equivocada do princípio de direito igual,

“Este direito igual é um direito desigual para o trabalho desigual. Não reconhece nenhuma distinção de classe, porque aqui cada operário não é mais do que um operário como os demais; mas reconhece, tacitamente, como outros tantos privilégios naturais, as desiguais aptidões dos indivíduos, e, por conseguinte, a desigual capacidade de rendimento. No fundo é como todo direito, o direito da desigualdade”.

Assevera, ainda, o autor, que as relações econômicas não são reguladas pelos conceitos jurídicos, ao contrário, as relações jurídicas surgem das relações econômicas (MARX, 1977).

Para este, só na fase mais adiantada da sociedade comunista, quando desaparecer a sujeição escravizante dos homens à divisão do trabalho, e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for só um meio de vida e, sim, a primeira necessidade essencial; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em toda sua exterioridade, aumentar também as forças produtivas e derivar em fontes abundantes de riqueza coletiva. Somente, então, assim, será admissível ir além do estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá registrar em seus lábaros: “De cada qual, segundo sua

capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” (1977:251).

Ao considerarmos que as relações jurídicas decorrem das relações socioeconômicas e políticas, e não ao contrário, a universalidade dos direitos passa a ser compreendida como uma síntese de múltiplas determinações. A universalidade dos direitos sociais é um processo que decorre de determinadas condições históricas, que pressupõe a existência da classe trabalhadora, do Estado e do mercado no provimento da seguridade social e equipamentos, bens e serviços coletivos.

Assim, concebemos que a universalidade da garantia dos direitos sociais faz com que esses direitos individuais tornem-se direitos coletivos e comecem a compor a cidadania social (liberal). Consideramos que a universalidade dos direitos na sociedade capitalista contemporânea decorre das correlações de forças sociais e dos sujeitos políticos que compõem cada momento histórico-conjuntural. Portanto, é fundamental compreendermos e situarmos, em cada sociedade, os movimentos de luta e resistência que levaram a modificar a concepção de direito individual para o campo do direito coletivo (social).Torna-se necessário também entendermos as

correlações de forças que passam a existir a partir desses movimentos, bem como as mudanças que daí decorrem e que estão inter-relacionadas. Ou seja, concepção e papel de Estado e a forma de conceber a luta pela hegemonia de classe.

1.11. Estado de Bem-Estar Social e a Universalidade dos Direitos