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A Universidade pré-Revolução – Ventos de mudança e a Primavera Marcelista

A Universidade ao tempo do Estado Novo “aparece, numa concepção de unidade mítica, como a afirmação das virtudes de civilização ocidental e cristã que o Estado Novo dizia representar” (Torgal, 1999, p.121). Como refere também Torgal, a Universidade era entendida como um reserva da conceção ético-política do Estado, um espaço e um tempo aonde os estudantes iam receber as “lições de prudência, de equilíbrio, de ordem, de continuidade no esforço” (Caeiro da Mata, Reitor da Universidade de Coimbra, citado por Torgal, 1999, p.120).

Nos anos 60 do século XX, as profundas mudanças sociais que estavam a decorrer no “mundo ocidental”, na sequência dos processos de desenvolvimento tecnológico e da economia industrial pós IIª Guerra Mundial, registou-se um questionamento da Universidade quanto a vários aspetos: (1) a capacidade de resposta estrutural das instituições e do sistema a uma procura

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crescente e diferenciada; (3) a adequação das metodologias de ensino; (3) a capacidade de ser agente do desenvolvimento económico.

A democratização e a equidade, a formação permanente dos profissionais, a inovação e o fomento do crescimento económico, são expressões que surgem nas análises académicas, feitas nos anos 60, sobre a realidade e as perspetivas de desenvolvimento da “Universidade”. Um aspeto extraordinariamente interessante dessa época, em matéria de análises críticas realizadas por académicos em Portugal, é a identificação de pontos críticos do sistema educativo em geral, e do Ensino Superior em particular, que permitem compreender a urgência de mudança e, no devido contexto político, a forma necessária dessa mudança. Acresce outro aspeto que é a identificação de relações entre a educação, a sociedade e a economia, que irão ser usadas para fundamentar políticas e mudanças no Ensino Superior, desde a reforma do sistema lançada em 1973, até ao Processo de Bolonha, para além do discurso político de sucessivos Governos da República.

3.2.1. O final do Estado Novo e as preocupações com a Universidade

O Banco Mundial, em 1971, e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE/OECD), em 1973, produziram análises e recomendações acerca da expansão dos sistemas educativos. Nesses documentos foram realçadas mudanças de carácter social que vinham ocorrendo sobretudo desde a década de 60 e que criavam grandes expectativas e uma enorme pressão de procura sobre os sistemas educativos, com os inevitáveis problemas de acomodação de uma população estudantil em rápido crescimento. Mas esse fenómeno social era também relacionado, naqueles documentos, com uma profunda mudança nos recursos tecnológicos e nos sistemas produtivos nos países em desenvolvimento.

Ainda nos anos 60, Guieysse (1964) refere o papel da investigação científica, realizada quer nas instituições académicas, quer nos laboratórios públicos e nas empresas, para o crescimento económico. Aquele autor atribui à investigação duas finalidades: (1) o conhecimento ou “saber para saber”; e (2) a acção ou “saber para fazer”. Os resultados da investigação permitem às empresas introduzir novos métodos de produção e novos produtos com valor económico, ou seja, realizar inovação. Embora nem toda a investigação produza inovação e um consequente crescimento económico, e a inovação não seja o único fator de crescimento, esta é assumida como de importância crescente no desenvolvimento dos países, e mesmo como fator fundamental do crescimento económico nos países mais evoluídos (Guieysse, 1964). Como refere o mesmo autor, “se a inovação é a arma táctica do empresário, a sua grande arma estratégica é a investigação” (Guieysse, 1964, p.9). Ao mesmo tempo, é identificada uma relação entre a ideia de crescimento económico e o despertar das comunidades para níveis mais elevados de aspirações individuais, mas sem uma aposta na educação não é possível mudar atitudes e quadros culturais que permitam despertar tais expectativas e quebrar resistências à mudança efetiva (Gomes, 1964). Gomes refere ainda o papel da educação para romper barreiras sociais que condicionam a progressão escolar e académica, nomeadamente no acesso ao Ensino Superior e que reduzem o

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potencial de “recrutamento de talentos e aptidões intelectuais” que poderiam gerar conhecimento novo e aplicado. Este processo, associado ao investimento na investigação científica, permite selecionar os “mais aptos para a continuação da pesquisa a nível pós-universitário” com base em critérios científicos e não sociais, e o contributo da investigação para o desenvolvimento de valor externo para o sistema económico (Sousa, 1968). A relação entre educação e crescimento económico é apontada “como um consumo (que aumenta com a melhoria da situação económica), (…) [e] como um investimento (porque é necessária mão-de-obra extremamente qualificada para o funcionamento das modernas sociedades industriais)” (Gomes, 1964, p.654).

A ideia de democratização do Ensino Superior é enunciada por Sousa (1968) como a necessidade de romper com a condição que permite a existência de uma classe social minoritária de licenciados, privilegiada do ponto de vista do rendimento, mas insuficiente para dar resposta aos novos desafios tecnológicos, económicos e sociais. É importante formar investigadores e técnicos especializados com diversos níveis de qualificação, e que a elite científica esteja num nível muito mais alto do que a licenciatura (Sousa, 1968).

As modificações tecnológicas nos sistemas de produção e as mudanças na estrutura do trabalho e emprego conduzem a que se preconizem não apenas políticas de ensino que tentem eliminar os obstáculos ao acesso à formação inicial no Ensino Superior, mas igualmente uma aposta na “educação permanente” (Nunes, 1966; Rocha, 1968; Sousa, 1968). Esta deve permitir, a atualização de conhecimentos, a reconversão, a promoção do trabalho e a ação sobre os meios socio-culturais com utilização de meios de ensino à distância e de meios extra-universitários para o desenvolvimento da formação (Nunes, 1966). Apesar da responsabilidade individual de cada cidadão na sua formação, de modo a “evitar a obsolência dos seus conhecimentos”, a “educação permanente” é uma matéria que deve ter uma abordagem nacional “para assegurar que a actualização não deixe de ser feita com o ritmo e a eficiência exigidos pelo progresso de cada país” (Rocha, 1968, p.45). As preocupações de progresso social e económico das comunidades são entendidas como elementos a integrar nas atividades profissionais e na atitude dos detentores de formação universitária, enquanto líderes e decisores na sociedade (Rocha, 1968).

Uma crítica de Gomes (1964) ao sistema escolar na época aponta para o carácter hermético dos percursos escolares ao nível do ensino secundário, que obrigava os estudantes a fazer uma escolha em idade muito precoce, entre o ensino técnico, direcionado a uma formação profissional a curto prazo, e o ensino liceal, proporcionador de uma formação orientada para o acesso ao Ensino Superior. A preocupação é tanto maior “quanto se sabe que a transferência de cursos ou a obtenção de equivalências em situações intermédias não é exequível senão através de dificuldades nem sempre solúveis” (Gomes, 1964, p.659). Aquele autor preconiza então uma série de mudanças no sistema educativo em geral, como a possibilidade de mobilidade entre percursos escolares, o interesse em conhecer a estrutura atual de emprego e as projeções quanto à sua evolução para um planeamento do sistema de ensino e das necessidades de formação, a aposta na formação de cientistas capazes de realizar investigação e produzir conhecimento, e de

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técnicos para operar com as novas tecnologias, mas sem esquecer a formação nas ciências sociais e humanas, importantes para o desenvolvimento equilibrado da sociedade (Gomes, 1964).

Uma das áreas de estudo no Ensino Superior que recorre à análise da diversidade do sistema é a que aborda as questões da equidade social. A tentativa de compreender o Ensino Superior envolve aspetos como a caracterização do perfil social da população estudantil, fundamental para delinear políticas públicas em matéria de educação. Exemplo deste tipo de estudos são os trabalhos de Sedas Nunes (1968a, 1968b e 1970). Realizados numa época em que Portugal tinha um sistema de Ensino Superior constituído apenas por algumas Universidades, esses trabalhos permitem perceber o contexto social em que viriam a ocorrer decisões políticas sobre o sistema que determinaram a sua forma binária. Note-se que há descrições do sistema que, apesar das alterações ocorridas ao longo das décadas seguintes, voltarão a surgir, pelo menos em parte, como argumentos para novas mudanças, do nível nacional ao nível europeu.

Nunes (1968b, p.402) aponta o contributo das “Universidades portuguesas como factor institucional de consolidação das desigualdades sociais no acesso à instrução universitária”. Como refere, o problema aparentemente não se coloca em relação aos procedimentos de acesso, pois “Em primeira análise, o sistema universitário português é liberal em relação ao acesso de estudantes. Poucos são, na verdade, os candidatos a alunos, que os exames de admissão eliminam” (Nunes, 1968b, p.389). São identificados três problemas. Primeiro, a seletividade social. Embora Nunes (1968b, p.390) refira a existência de um progressivo aumento no nível de escolaridade entre os anos 50 e os anos 60, mantém-se o que denomina um “estrangulamento” na passagem para “níveis avançados e terminais dos liceus e do ensino técnico”. A partir de dados estatísticos do início dos anos 60, Nunes (1970, p.684) faz notar que “o nível de desenvolvimento económico já nessa data alcançado pela sociedade portuguesa seria compatível com um recrutamento estudantil socialmente menos «selectivo» (ou, por outras palavras, socialmente mais «democrático»)”. Aquele autor refere que se parte do princípio de que, se os indivíduos dispõem de efectivas possibilidades materiais ou oportunidades “para frequentar cursos universitários, seguramente não deixam de as aproveitar, pelo que as desigualdades sociais verificadas na frequência desses cursos traduzem e medem exactamente desigualdades de «oportunidades» (no sentido de desigualdades de «possibilidades materiais»)” (Nunes, 1970, pp.691-692 [realces no original]). Sobre isto apresenta um conjunto de exemplos de outros países, incluindo países de Governo socialista para se referir a uma “introprojeção” pelos indivíduos das estruturas, das relações e das instituições sociais, de modo suficientemente forte para condicionar as escolhas escolares e profissionais (Nunes, 1970). A diferente representação dos grupos sócio-económicos na população estudantil universitária, em números absolutos, a relação entre esse número e o volume do estrato populacional de origem, e as proporções de participação entre estratos da população são significativas da diferenciação social (Nunes, 1968b, 1970). No contexto sócio- cultural da época, verifica-se uma vantagem no acesso dos grupos sociais mais favorecidos em relação aos menos favorecidos e, nestes, dos homens em relação às mulheres (Cruzeiro, 1970).

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O segundo problema é a inadequação da estrutura e organização funcional universitária à procura existente. Este fator traduz-se em quatro aspetos: (1) inadequação das estruturas universitárias à procura profissional; (2) baixa eficiência interna do sistema universitário, traduzida num nível elevado de estudantes que não terminam os cursos; (3) esquema de organização dos cursos universitários, genericamente longos sem graus intermédios; e (4) carácter excessivamente teórico do ensino, assente na transmissão pelos docentes, sem apelo à inovação pedagógica e à pesquisa individual (Nunes, 1968b). As Universidades desencorajam a intenção de as frequentar, não por seleção de aptidões, mas por exclusão de indivíduos perante a dificuldade em conseguir os recursos financeiros para o tempo de formação e a ponderação custo-benefício da frequência da Universidade (Nunes, 1968b). Também é interessante notar a menção expressa aos métodos pedagógicos usados, num discurso curiosamente familiar a um discurso vulgar no final da década de noventa e seguinte, acompanhando algumas propostas e documentos que virão a dar origem ao Processo de Bolonha.

O terceiro problema é a aparente falta de capacidade de resposta do sistema perante a provável alteração das condições sociais no país, pois há uma procura crescente do ensino secundário e Superior, apesar de ainda se manterem os estrangulamentos na passagem entre níveis de ensino (Nunes, 1968b). Também o aumento relativamente acentuado no acesso das mulheres à Universidade, a par de mudanças no sistema económico e de produção parece induzir na época uma pressão a que a Universidade dificilmente conseguiria dar resposta se os outros fatores limitantes não funcionassem (Guerra & Nunes, 1969; Nunes, 1968b).

Apesar de todos os constrangimentos sociais e económicos, entre o início da década de 50 e meados da década de 60, a população estudantil aumentou proporcionalmente muito mais do que a população geral do país, embora de modo menos acentuado nas áreas de ciências e tecnologias (Martins, 1968) e com tendência a acentuar-se (Cruzeiro, 1970). Ao mesmo tempo, a formação ao nível do “ensino médio” (comercial e industrial, e normal) estava abaixo das expectativas e conveniências do país, facto associado à concentração de certas instituições nas maiores cidades do país, a um certo défice de estatuto de algumas formações e à utilização do “ensino médio” como via alternativa para acesso posterior ao Ensino Superior (Martins, 1968). A maior necessidade de formação é colocada no campo das ciências e tecnologias (Guerra & Nunes, 1969; Ralha, 1968) para dar resposta às necessidades de desenvolvimento económico. Ao longo da década de 60, surge uma grande preocupação em torno do risco de transformação de um processo desejável e essencial para a sociedade portuguesa, a democratização do acesso ao Ensino Superior, num efeito paradoxal de congestionamento por manifesta incapacidade estrutural, funcional e pedagógica para as instituições assegurem o ensino para todos e com um nível de qualidade aceitável (Guerra & Nunes, 1969). A solução para acomodar a crescente massa estudantil não pode passar apenas por um aumento do acesso às universidades existentes, mas exige a sua reestruturação para aumentar a sua eficiência e a criação de novas instituições, num modelo mais flexível de Departamentos e Institutos (Guerra & Nunes, 1969; Ralha, 1968).

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Uma solução seria a adoção de numerus clausus, mas, para Guerra e Nunes (1969), essa solução implica a possibilidade efetiva de os candidatos excluídos numa Faculdade ingressarem noutra Faculdade. “Se assim não for, converte-se a instituição do «numerus clausus», não somente num obstáculo ao crescimento da população universitária e ao desenvolvimento cultural, científico e técnico do país, como também numa selecção de carácter social e não intelectual” (Guerra e Nunes, 1969, pp. 12-13 [realce no original]). Aquela solução só seria apenas aceitável para acautelar duas condições: (1) quando a dimensão da população estudantil de uma instituição atingisse um ponto de deterioração institucional e pedagógica, devendo ser criadas outras instituições na mesma área de formação; e (2) quando a procura num dado ramo do Ensino Superior excedesse a capacidade instalada ou prevista de absorção pelo mercado de trabalho, embora com o cuidado de evitar que se mantenha rara a oferta de certos diplomados e altas as respetivas remunerações como mecanismo de estatuto de classe (Guerra & Nunes, 1969).

Sedas Nunes (1966), refere cinco linhas de força para orientar a decisão política em matéria de Ensino Superior: (1) o princípio de que a Universidade moderna deve ser uma Universidade de massas, como forma de acolher uma população estudantil em expansão, e a recusa do numerus clausus como afirmação do direito de todos aqueles que tenham aptidões para aceder ao Ensino Superior; (2) a necessidade de reformar a estrutura da Universidade de modo a assegurar o enquadramento dos candidatos; (3) a conveniência de associar o ensino e a investigação; (4) a conveniência de remodelar os métodos pedagógicos e formar o pessoal docente; e (5) a preocupação de ligar os problemas da Universidade aos problemas dos outros graus de ensino de modo a fazer uma reforma global e integrada do sistema educativo. Como afirma, “se a Universidade tem de transformar-se, é afinal porque, à sua volta, a própria sociedade profundamente se está transformando e se quer transformar“ (Nunes, 1966, p.686). A ideia não é só a de criação de mais Universidades, mas também que estas novas instituições adotem uma estrutura em departamentos de ensino e institutos de investigação, de maneira a permitir a sua diversificação por áreas de estudo e por níveis de graduação e o agrupamento das disciplinas científicas orientadas para os interesses departamentais em vez de redutos por cátedra. Ao mesmo tempo preconiza Universidades autónomas, concorrenciais, sem monopólio de áreas geográficas, e com um sistema de gestão baseado em mandatos eleitorais dos órgãos de gestão.