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A velhice sob a ótica das ciências Sociais

Capítulo 1 – Por uma vida própria: construindo uma abordagem sobre a

1.4 A velhice sob a ótica das ciências Sociais

Os estudos, sobretudo da antropologia e da sociologia produzidos sobre velhice nas três últimas décadas têm convergido na tentativa da desconstrução da velhice como uma experiência homogênea. Estes estudos revelam que, se por um lado, envelhecer for um processo pelo qual todos temos que passar, de outro, ele se diferencia para cada um segundo o grupo social, o sexo e o sistema simbólico a que pertence.

Não é simplesmente o avanço da idade, ou a idade cronológica, que encerra o estado da velhice. Segundo Debert (1999) os recortes de idade e as práticas características de cada fase da vida são construções históricas e sociais e comportam ilimitadas representações.

A multiplicidade de experiências, ou como diria Andréa Alves, a fragmentação da experiência da velhice também ganhou ênfase na pesquisa desta tese. De sorte que a padronização das experiências etárias, fortemente associada à modernidade, deu lugar para novas e diversas formas individuais de vivência e apresentação da idade. Isso se relaciona ao que Andréa Alves (2006), comenta sobre a individualização das idades, um aspecto segundo ela, resultante do processo maior de individualização vivenciado pela sociedade moderno- contemporânea.

Assistimos nos últimos anos a um avanço considerável da representatividade numérica dos idosos na população brasileira. O ponto de vista demográfico e sua recorrente divulgação pela mídia chamam atenção da sociedade ao processo de envelhecimento em curso. No entanto, reduzir as transformações sociais às mudanças demográficas pelas quais atravessamos nos impediria de conhecer um conjunto de questões que ao longo dos últimos 20 anos têm sido significativas à compreensão das mudanças culturais em torno da velhice, e do envelhecimento em nossa sociedade.

Um conjunto de estudos antropológicos e sociológicos tem procurado desvendar os múltiplos aspectos do envelhecimento populacional e em especial do envelhecimento feminino. Estes estudos têm como temáticas de maior recorrência: a sociabilidade; as relações geracionais; as políticas sociais da velhice; o sistema de

seguridade e previdência entre outras.14 Apesar das diferenças em suas abordagens

tais estudos têm apresentado as tendências de revisitar os estereótipos associados à velhice, e as fronteiras que delimitam esta etapa da vida, apontando para seu contínuo deslocamento e para suas variações segundo o sistema simbólico de cada cultura. Esses trabalhos visam à compreensão das experiências humanas, dos significados conferidos à velhice e ao envelhecimento, assim como das novas possibilidades de construções de outras classificações etárias, tais como: meia idade, terceira idade, melhor idade e sênior.

Essas novas classificações como observa Peixoto (2007), não são simples substitutos para o termo velhice. Representam etapas intermediárias de envelhecimento. São como “interlúdios maduros”, como observa Debert (1999) entre

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Entre os estudos nacionais destaco os desenvolvidos por Guita Grin Debert, Myriam Lins de Barros, Andrea Alves, Clarice Peixoto, Alda Brito da Motta e Júlio Simões.

a idade adulta e a velhice. A velhice, como estigma, não está necessariamente ligada à idade cronológica. Os traços estigmatizadores da velhice observados na literatura e também apontados em campo por minhas interlocutoras ligam-se a valores e conceitos depreciativos como feiura, doença, pobreza, falta de autonomia, desatualização, tristeza, isolamento. Entre as mulheres participantes de minha pesquisa a categoria velha somente apareceu para duas delas, uma pertencente ao

segmento popular e outra ao segmento médio. O termo mais usado por elas para se

auto identificarem foi o de idosa da terceira idade. O termo idoso no Brasil, assim como na Europa, surgiu como uma forma mais respeitosa para designar as pessoas de mais idade. Já a expressão terceira idade também proveniente da Europa, surgiu para designar uma parcela desse grupo, os “jovens – velhos”, os aposentados dinâmicos, a fase da vida na qual a ociosidade simboliza a prática de novas atividades sob o signo do dinamismo e da ética da autogestão.

A expressão terceira idade15 surgiu agregada a uma multiplicidade de

agentes cuja função específica era tratar a velhice fazendo com que ela adquirisse maior visibilidade social, especialmente como campo específico de mercado. Segundo Guita Debert (1999), tal expressão diz respeito à responsabilização do indivíduo por seu próprio cuidado e bem-estar, corresponde a um processo de reprivatização da velhice. Ou seja, a velhice passou a ser compreendida a partir do plano das opções individuais, e passou a ser pensada como período de lazer, de

desenvolvimento das potencialidades e das realizações.16

Debert (1999) ressalta que os estereótipos de solidão e abandono que caracterizariam a experiência de envelhecimento tem sido progressivamente substituídos pela imagem dos idosos como seres ativos. Seres capazes de desenvolver novas formas de sociabilidade, de reciclar identidades anteriores e de redefinir as relações familiares. Os múltiplos programas para a terceira idade tem se apresentado como forma privilegiada de oportunidades de ampliação do círculo de amizades, para a criação de novos espaços de ação, e, portanto de novas experiências.

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Conforme ensina Debert(1999, p. 138) “A expressão originou-se na França, onde os primeiros Gerontólogos brasileiros formados(Strucchi, 1994) – com a implantação, nos anos 70, das ‘Universités du Troisiéme Age’. Da mesma Foma, a expressão “third age”, de acordo com Laslett(1987), foi incorporada ao vocabulário anglo – saxão com a criação das ‘Universities of the Third Age’em Cambridgi, na Inglaterra, no verão de 1981, e é hoje de uso corrente entre os pesquisadores de língua inglesa interessados na velhice.”

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Sobre a invenção da terceira idade ver Lenoir(1979) e Gillemard(1995)

A “terceira idade” é aqui compreendida não somente como categoria etária, como uma redefinição da própria velhice, mas também como ideologia e como estilo de vida, no qual, a vida para si, a preocupação consigo mesmo, tem lugar mais central a partir de práticas individualizadas de cuidado com a saúde, de rejuvenescimento do corpo e do desenvolvimento de uma vida social ativa.

A ideologia da terceira idade leva a crer que se a velhice não é bem sucedida, apesar de todos os aparatos disponíveis, é por incapacidade de próprio indivíduo. Segundo Lins de Barros (2004), esse quadro revela a exacerbação de princípios básicos da ideologia individualista, mas isso não significa a exclusão de formas de representação e de vivência mais holistas da velhice. No grupo de mulheres participantes em minha pesquisa ficou evidente o caráter relativo da velhice. A construção e o uso de uma identidade de ‘velha’, de ‘idosa’, ou da terceira idade tem a ver com elaborações de projetos de vida mais ou menos individualizados.

Quanto à questão da sociabilidade vale citar os trabalhos de Andréa Alves e Alda Brito da Motta. Em um estudo sobre os bailes de danças de salão na cidade do Rio de Janeiro, Andréa Alves elege a velhice feminina de classe média como objeto de discussão inserido em um contexto urbano marcado pela heterogeneidade de classe, Inter étnica e de gênero. Segundo esta pesquisadora as mulheres do estudo compartilham um discurso de positivação da velhice e escolheram a dança de salão como atividade prioritária de lazer, de socialização e como um recurso que as ajudam a manter o corpo com uma aparência mais jovem e sedutora. “A dança apresenta-se, simultaneamente, como uma atividade física e ocasião socialmente legítima de exibição desses corpos distintivos.” (ALVES, 2003. p.165). A dança, para as senhoras pesquisadas, segundo Alves (2003), representa uma opção de agregar ao cotidiano um novo papel ligado ao próprio prazer. Caracteriza-se como um projeto alternativo de constituição da esfera privada da vida, distinta da vida familiar, espaço primordial de referência para a construção da identidade dessas mulheres no longo de suas vidas.

As sociabilidades desenvolvidas entre idosos, tanto em grupos espontâneos, como em praças e parques, como em grupos organizados, no caso das associações e universidades para terceira idade também foram alvos de observação da pesquisadora Alda Brito da Motta. Segundo ela, a convivência solidária geracional tem trazido companheirismo, maior uso lúdico do tempo, e tem

se tornado forte motivação da alegria e da saúde, além de ter demonstrado ser efetiva na redução da solidão e da marginalidade.

Também em relação as sociabilidades destaco o estudo de Benedita Cabral(2002) que analisa especialmente os segmentos populares. Estudando grupos de convivência entre idosos dos segmentos populares, esta pesquisadora observa que os grupos de sociabilidades entre os idosos representam formas apropriadas pelos idosos para alcançar novas realizações e novos lugares no mundo. Tal perspectiva se aproximou com as mulheres participantes nesta pesquisa e não se restringiu as pertencentes as camadas populares. Assim como também demonstrou Cabral (2002) os motivos em participar dos grupos são diversificados entre as mulheres envolvidas na pesquisa. E sobre isto discorrerei nas próximas páginas, mas posso adiantar que em relação a esses motivos algumas diferenças em função de classe puderam ser destacadas. A oportunidade de experimentar coisas novas por exemplo, foi mais evidenciado entre as mulheres dos segmentos médios, enquanto que nos segmentos populares a justificativa mais marcante relacionou-se com uma oportunidade de lazer.

Quanto as relações geracionais, destaco o estudo de Myriam Lins de Barros, intitulado Autoridade e Afeto: avós, filhos e netos na família brasileira. Neste trabalho Lins de Barros procurou analisar a família de camadas médias urbanas no Brasil, a partir da perspectiva dos avós. Em meio às heterogeneidades de representações sobre família encontradas na pesquisa a autora destaca dois elementos fundamentais que permeiam as relações das três gerações (avós, filhos e netos): a autoridade e o afeto. Tais elementos ganham ênfases diferenciadas de acordo com o lugar que o indivíduo ocupa na família. Segundo a autora, é através do eixo entre a autoridade e o afeto que é possível identificar o que é comum entre os avós e as demais gerações: “a família é uma referência social fundamental para a constituição da identidade social de cada indivíduo”. (LINS DE BARROS, 1987, p.108). Tal proposição é aqui fundamental na reflexão sobre a individualização das mulheres.

Analisando de forma associada os trabalhos de Andréa Alves (2003), com outro trabalho de Lins de Barros (2007), no qual ela pesquisa mulheres engajadas e atuantes na Igreja Católica, é possível observar algumas das possíveis diferenças de vivenciar a velhice. As duas pesquisas tiveram como grupo de investigação mulheres com idade variando entre 60 e 80 anos pertencentes aos segmentos

médios da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, enquanto a centralidade do projeto de vida, para o caso das mulheres da pesquisa de Andréa Alves estava no desenvolvimento da dança, uma atividade lúdica de socialização, voltada para si e para o próprio prazer, assim como para o exercício da sedução na velhice. Para as mulheres católicas pesquisadas por Lins de Barros(2007), o sentido de suas vidas, seus projetos individuais fora da esfera doméstica confundia-se com a militância na Igreja Católica, com os trabalhos religiosos em si e com os trabalhos assistenciais desenvolvidos a partir das organizações eclesiásticas. Se para os dois grupos há uma preocupação em garantir uma atividade para além da esfera doméstica, tais atividades, no entanto trazem significados bastante diferenciados para a experiência de velhice para estas mulheres.

Outra questão bastante evidenciada na literatura diz respeito ao fato de que o envelhecimento é um fenômeno mais feminino do que masculino. As

estatísticas indicam a existência de uma proporção maior de mulheres idosas do que

de homens, quando se considera a população total de cada sexo. Segundo

Camarano(2004), considerando a população idosa como um todo, observa-se que

55% dela são formados por mulheres. E ao desagregar os grupos de idades a diferença entre essas proporções aumenta, principalmente entre os mais idosos. A proporção do contingente feminino é mais expressiva quanto mais idoso for o segmento. Isso leva à constatação de que “o mundo dos muito idosos é um mundo das mulheres” Goldani (1999).

Sob o ponto de vista sociológico, a feminização da velhice coincide com mudanças observadas nas normas etárias e de gênero que regulam os comportamentos e as expectativas de comportamento dos idosos. As características dessas mudanças variam de acordo com o pertencimento dos idosos aos diferentes segmentos sociais. Scott (2006) retrata uma dessas mudanças sob o ponto de vista de homens e mulheres de camadas populares.

Segundo este autor o crescimento das associações de idosos impressiona pela presença maciça feminina e a limitada participação de homens. Ao refletir sobre isso, este autor analisa as mudanças ocorridas na relação com as esferas públicas e privadas entre homens e mulheres idosos. Retomando as discussões de Freyre e Damatta, sobre a casa e a rua, Scott (2006), destaca uma inversão das relações de gênero, empiricamente observáveis, com aquelas esferas da vida social. Segundo ele a inversão se dá na medida em que os homens idosos

favorecem o trocar a rua pela casa e as mulheres a casa pela rua. De acordo com Scott (2006), os homens idosos, com renda garantida, ainda que minúscula, podem voltar mais atenção à casa como espaço de recomposição da sua valorização enquanto pessoa. É na casa onde ele pode encontrar alguma forma de ressignificar a vida, tendo em vista, que as mudanças no campo do trabalho se transformam para os homens, com o avanço da idade, em dificuldades e desvalorização. As mulheres, por outro lado, tem encontrado entre familiares e na vizinhança, um meio social mais propício para suas vivências quando comparadas aos homens. Incentivadas pela diminuição da valorização negativa da presença feminina fora de casa, as mulheres não ficam mais confinadas em suas casas, os espaços públicos são valorizados pelas mulheres como manifestação de sua autonomia.

As diferenças de gênero na velhice também surgem na forma de

intervenção diferenciada nos corpos femininos e masculinos. Segundo Barros

(2004), é sobre o corpo feminino que as intervenções são mais acentuadas. Entre os

idosos são as mulheres que investem mais rigorosamente em cuidados médicos e estéticos. O cuidado e a intervenção no corpo feminino se iniciam muito cedo na trajetória de vida das mulheres e alcançam a velhice através de inúmeros recursos de controle do declínio do corpo. A flacidez, as rugas, a perda da coloração dos cabelos, a redução da libido, da mobilidade, entre outros sintomas foram apontados pelas mulheres como sinais da velhice do corpo. Tais sintomas podem ser, no entanto, segundo elas, controlados, retardados ou mascarados, com uso de tratamentos médicos, nutricionais, estéticos, fisioterápicos, entre outros, frequentemente citados em seus relatos e presentes no cotidiano das atividades de algumas das participantes desta pesquisa. Para estas os cuidados com o corpo se justificam não somente por fatores estéticos, para uma boa apresentação da aparência, antes os cuidados com os mínimos sinais corporais da velhice para algumas das mulheres participantes representam aspectos comprometedores de seus projetos de vida, como o de arranjar um novo companheiro.