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Dona Val “Aqui eu sou homem, sou mulher, sou mil e uma coisa”

Capítulo 4 – Trajetórias de vida e de individualização: entre viver para si e viver

4.7 Dona Val “Aqui eu sou homem, sou mulher, sou mil e uma coisa”

Quando foi entrevistada dona Val tinha sessenta e cinco anos e acabara de se aposentar. Tal evento foi narrado com muito entusiasmo pois representava o fim de uma longa trajetória de trabalho duro, que se iniciou em sua vida ainda na infância no roçado da família quando dona Val ainda residia em Nova Cruz, uma pequena cidade do interior do Rio grande do Norte. Em suas narrativas esta senhora dá centralidade ao trabalho especialmente porque ele se configura como único meio de garantia de sobrevivência. E porque para ela o trabalho “é o que dignifica o homem”. Em toda sua narrativa ela se refere ao trabalho como sendo praticamente atividade de toda a sua vida. Ao analisar a falta de trabalho entre os jovens de sua

casa e de sua comunidade, dona Val aborda a questão da marginalidade e observa que é a falta de trabalho o problema do envolvimento dos jovens com “o que não presta”.

Dona Val: Eu nasci e me criei trabalhando, trabalhando duro, nunca

deixei de trabalhar, minha vida até hoje foi só trabalho dia e noite. [...] ainda nem amanhecia o dia a gente tudo ia pro roçado, voltava depois do entardecer. [...] Nunca fui numa escola, meu pai dizia que não carecia aprender a ler para não escrever carta para namorado. [...] Quando cheguei em João Pessoa fui trabalhar em Jaguaribe em casa de família, trabalhei quatorze anos nessa mesma casa, começava cedo também e só parava de noite, era sábado, domingo e feriado. Somente tinha uma folguinha em tempo de festa: São João, Natal e Ano. Morava na casa da patroa, aí já viu, era obrigada a tá no serviço direto. Nem estudar eu podia, que eu sonhava muito.

Cristiane: E o que a senhora ganhava naquele tempo dava para a

senhora pagar um aluguel e se manter sem precisar morar nas residências onde trabalhava?

Dona Val: Dava não, eu queria muito, mas além de ficar longe do

trabalho, era pouco demais. Eu nem me lembro quanto era, eu só sei que não dava pra nada.

Cristiane: E a senhora ainda trabalha fora de casa?

Dona Val: Agora mais não, agora tô aposentada. Mas não é nem por

isso, é porque realmente não tenho mais o pique que tinha na minha juventude, se não fosse isso ainda trabalhava fora. [...] Esse pessoal aí é quem tem que trabalhar agora. Emprego aparece mulher, mas eu penso que é ela [a neta] que tem preguiça de trabalhar e as patroas dela se abusam. Só pode! Porque em cada mês ela vai pra uma casa, sai vai pra outra, não para num emprego. O problema não é falta de emprego não! É falta de coragem para trabalhar que esses jovens não tem, olhe alí na esquina, preferem tá no meio do mundo fazendo o que não presta do que pegar no pesado. Eu trabalhei a minha vida toda, com dignidade, hoje tô aposentada.

Em suas narrativas dona Val denuncia as dificuldades das condições do trabalho doméstico que teve que se submeter para garantir sobrevivência na cidade. Observa que o trabalho lhe privava de uma vida social mais ampla, lhe impedia de realizar outras coisas como, por exemplo, estudar, um de seus sonhos que nunca se realizou. Mas ao mesmo tempo que analisa os aspectos negativos da atividade laboral por ela realizado ao longo da vida, também ressalta positivamente o direito a aposentadoria. Para esta senhora a aposentadoria se constitui em um prêmio por todo esforço dedicado ao trabalho ao longo da vida.

A renda de um salário mínimo da aposentadoria representa em sua casa a única receita certa, pois tanto sua filha como seus netos estão desempregados e vivem de “bicos”. Essa é uma realidade que segundo o IBGE (2010) é vivida em aproximadamente 60% das residências onde habitam idosos no Brasil. Segundo a síntese dos indicadores sociais, nessas residências, os idosos são responsáveis por aproximadamente 90% das despesas domésticas.

Ao discorrer sobre que direcionamento dá ao seu salário, dona Val observa que todo ele praticamente tem sido destinado a alimentação e as despesas com água e energia da casa. Também observa que ela mesma é quem faz todos os pagamentos e compras domésticas. Assim como quem organiza os espaços da casa, sua mobília e demais objetos, destinando a cada membro da família o cômodo, segundo ela, mais adequado. Ecléa Bosi (1994) ao citar Morin (1969), observa a importância para o idoso em controlar suas posses, tal como dona Val, que procura controlar sua casa. Segundo essa autora, esse comportamento demonstra a perspectiva de manutenção, por parte do idoso, da integridade de seu eu. Na concepção de Morin (1969), os objetos da casa, pessoais, são considerados “objetos biográficos”, pois envelhecem com seus donos e incorporam-se a sua vida. Isso explica a resistência de dona Val em se mudar de sua casa, bastante precária e com risco de desabamento. Dona Val foi uma das moradoras do Timbó a receber uma casa nova da prefeitura municipal na mesma comunidade, devido ao risco que sua casa sofre. No entanto se recusa a mudar-se, e observa:

Dona Val: Eu construí essa casa com muito sacrifício, se ela for

demolida, eu vou junto com ela.

Em relação a família dona Val define-se como chefe, não somente porque se vê responsável pelas despesas domésticas, mas por ser a dona da casa em que todos moram e por determinar as regras de convivência.

Dona Val: Nessa casa quem manda sou eu, aqui eu sou homem,

sou mulher, sou mil e uma coisa. Sou eu quem cuido da comida, faço as compras, cuido da casa, e dessa menina pequena [a bisneta de 2 anos]. Eu digo direto a eles, tem que ser assim quem achar ruim que vá embora. Pegue seu rumo.

Peixoto e Luz (2007) ao interpretarem o aumento da expectativa de vida no Brasil, observa que esse fenômeno avança associadamente a ampliação do

número de famílias nas quais se configura a coexistência de três a quatro gerações. As taxas de desemprego e subemprego da população jovem e adulta e o divórcio influenciam na permanência de filhos e netos nas casas de pessoas com mais de sessenta anos de idade. Isso é o que ocorre na casa de dona Val, que recebeu a filha separada, os netos desempregados e a bisneta ainda bebê. Tal configuração familiar, no entanto, é para ela, assim como comenta Camarano(2004), trata-se de uma “solidariedade imposta”, pois não reflete sua preferência, antes é fruto de problemas sócio econômicas que afetam toda a família, restando aos mais velhos prestar o apoio material aos parentes dependentes.

A convivência intergeracional entre os membros da família segundo dona Val caracteriza-se por “altos e baixos”, ou seja, é permeada por movimentos de harmonia e de conflitos. Estes últimos geralmente resultantes das diferenças de valores, hábitos e interesses dos diferentes membros da família.

Dona Val: Tem dia que aqui tá uma paz, mas tem dia que esse povo

se manifesta. Não respeita nem a mim que já sou de idade. É um povo que parece que não tem educação, é tudo, com cachorrada, quer saber se tá com dinheiro é pra gastar com essas coisas ruim no meio do mundo, é farra, é de noitada. Parece que nem tem uma filha pequena pra criar. Me acostumo com isso não, nunca deixei filho meu na mão dos outros pra ir pras festas, reclamo mesmo e quem quiser que ache ruim. Olha como ela [ a neta ], tá gorda, isso é de tomar remédio pra evitar menino, coisa de mulher safada mesmo.

Chama a atenção em suas narrativas a questão das mudanças dos papéis de gênero na família. Suas falas são marcadas pela condição de ser “chefe de família”, papel que, segundo ela, foi de seu companheiro, o provedor da casa e seu “protetor” durante os trinta e dois anos de convivência. Tendo sido criada sob condições tradicionais de demarcação de funções entre homens e mulheres, a chefia da casa, papel assumido desde a morte de seu companheiro, é interpretado por dona Val como uma inversão, pois para ela os papéis de gênero devem ser bem separados, cabendo aos homens a responsabilidade da provisão e as mulheres os cuidados com a casa e com a família.

Dona Val: Aqui eu sou homem, sou mulher, sou mil e uma coisa.

Desde que meu velho morreu, eu assumi tudo, as contas daqui sou eu quem pago, sou eu que cuido da casa, sou eu quem concerto alguma coisa, sou eu quem faço a feira, sou eu quem dou as ordens aqui, ficam tudo esperando por mim. Sou eu quem carrego água pra dentro de casa, faço tudo mesmo. Eu não queria que fosse assim,

porque eu sou mulher, e tenho que fazer serviço de homem, eu tenho tanto desgosto disso, mas a gente tem que viver desse jeito né.

Dona Val é muito caseira, organiza seu dia a dia cuidando da casa, das refeições da família e fazendo trabalhos manuais. Eventualmente é procurada para ‘rezar’ pessoas doentes ou com ‘mau olhado’. Reconhecida como rezadeira da comunidade, quase sempre ela recebe alguma contribuição em dinheiro das pessoas que a procuram para esses atendimentos. Diz que aprendeu a rezar ainda criança com sua avó no interior. Ao discorrer sobre essa prática, dona Val elabora algumas lembranças do passado, e por muitas vezes, silencia e chora. O longo silêncio sobre o passado, longe de ser um lapso de memória, traduz-se numa resistência, evitando-se trazer à tona lembranças dolorosas e conflitantes. (POLLACK,1989).

Instigada a “desabafar” dona Val, se refere às rupturas familiares pelas quais atravessou ao longo da vida. Nos primeiros anos da adolescência, dona Val “fugiu” com um rapaz, de sua idade, e com ele teve seu primeiro filho, aos quatorze anos. Esse relacionamento durou dois anos, ambos moravam na casa de sua sogra, em Nova Cruz. Após a separação dona Val voltou para a casa de seus pais, e trabalhou até aos dezenove anos em uma fábrica de Agave da região. A difícil situação de sobrevivência a partir de tal trabalho lhe motivou a procurar melhores condições de vida em João Pessoa acompanhando conterrâneos que para aqui já haviam imigrado. A decisão de vir para a “cidade grande” trouxe inúmeros conflitos para dona Val, entre eles, deixar o filho de cinco anos aos cuidados da mãe, aventurar-se a morar sozinha e cuidar de si mesma longe dos parentes.

Dona Val: Eu era muito boba naquele tempo, nunca tinha saído de

casa, eu lembro que eu chorava, no serviço com saudade de minha mãe e de meu filho. Cada dia eu ia menos em casa para[silencia]. Era muito sofrimento pra mim. A gente vai se acostumando. Terminou que ele foi criado por mãe, e quando cresceu foi morar em Natal, acho que faz uns quarenta anos que eu não vejo ele. Se eu encontrar com ele eu acho que nem reconheço. [...] Vim pra cá só com a passagem na mão, fiquei no Varjão na casa de um pessoal de Nova Cruz, arrumei um serviço, e fui trabalhar. A partir daí eu não sei mais o que foi ter pai e mãe, eu não tinha ninguém por mim. Sofri o pão que o diabo amassou, trabalhei feito escrava, mas sobrevivi, nunca passei fome.

As perspectivas de vida no interior representava um campo de possibilidades bastante resumido e desvantajoso. “Daí a alternativa do afastamento, do rompimento ou da renúncia a um mundo que se torna opressivo e indesejável. A opção pode ser permanecer no seu grupo original com pouca gratificação, frustação e escasso prestígio ou sair em busca de novos espaços físicos e sociais.” (VELHO, 2008, p. 48). Dona Val escolheu deixar a família de origem em detrimento de novas perspectivas de futuro, isso representava um projeto de vida, segundo ela, “corajoso” e solitário e porque não dizer individualizado.

Segundo dona Val, sair da casa dos pais lhe trouxe muito sofrimento, mas muitos ensinamentos também. Cada experiência de trabalho na cidade, não somente como doméstica e lavadeira de roupas, mas nas vezes que precisou “limpar mato para ganhar uns trocados”. Cada decepção amorosa, cada filho perdido nos doze abortos que sofreu, “cada luta, cada sofrimento”, é por ela hoje lembrados como eventos positivos, pois lhe trouxeram “sabedoria” e aprendizados para saber driblar muitas outras dificuldades que atravessou ao longo da vida, como a falta de trabalho, de alimentação e de moradia. A sabedoria acumulada em suas trajetórias é por dona Val apontada como um dos ganhos do processo de envelhecimento e é aqui também compreendida com relevância para à construção de sua própria experiência, pois como observa Eduard Thompson (1981, p. 189).

As pessoas não experimentam sua própria existência apenas como ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos[...] elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, na forma de normas, obrigações familiares e de parentesco, e de reciprocidade, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas.

A categoria experiência para este autor é fundamental na compreensão de que homens e mulheres são também sujeitos da história. Ao reconhecer que a experiência vivida, além de pensada é também sentida pelos sujeitos, o autor dá importância ao que se é experimentado por esses sujeitos na medida em que suas experiências acumuladas transformam-se em conhecimento e influenciam suas ações futuras. Tal como nos revela dona Val, quando confere aos sofrimentos de sua vida, as suas más experiências, valor positivo, na medida em que se

constituíram em aprendizados para formular estratégias de vida que lhe ajudasse a driblar novas situações difíceis.

A fim de driblar tais dificuldades dona Val planejava encontrar um companheiro que lhe “colocasse dentro de uma casa” e lhe garantisse uma vida menos sofrida. Foi com essa perspectiva que ela entrou num relacionamento consensual com um senhor que veio a ser seu companheiro por mais de trinta anos. Ela relata que sua vida melhorou muito depois de tê-lo encontrado, no entanto, também destaca as dificuldades da convivência conjugal, expressando os conflitos motivados, segundo ela, por ciúmes e pelo “desejo de controle” que seu companheiro rotineiramente manifestava. Sentindo-se subordinada a autoridade do companheiro dona Val diz que sempre aguentou suas “brabezas” porque “ele também tinha seu lado bom” e era um bom pai para seus filhos. Segundo ela, ele era também quem “assumia tudo dentro de casa”, além de ser bom pai, era bom dono de casa, pois lhe poupava de preocupação com as contas de casa, além dos serviços de manutenção com a casa.

De acordo com dona Val, o avanço da idade e o declínio do corpo, trouxeram consequências negativas em sua capacidade de trabalho. E isso a entristeceu profundamente, pois para ela “o trabalho era tudo”. Aos cinquenta e cinco anos, ela não “aguentava” cumprir seus compromissos como doméstica em casa de família e isso repercutiu em sua vida material de forma determinante, trazendo maiores privações. Sua estratégia foi procurar auxílio em comunidades religiosas que realizavam trabalhos de apoio social, distribuindo sopões e cestas básicas. Assim como também inserir-se em diversos programas sociais federais e estaduais, como o programa “pão e leite” do governo do estado, do qual ainda é beneficiária e do programa bolsa família, de onde recebia o cartão alimentação e o vale gás. Também procurou trabalhar mesmo em casa, desencapando fios para vender em depósitos de recicláveis, cuidando de crianças da vizinhança, enquanto seus pais saíam para trabalhar.

Dona Val: Chegou um tempo que eu não aguentava ir mais para o

serviço, ia a pé e voltava a pé, era chão, e minhas pernas já cansadas não aguentavam. Vixe, meu Deus era uma luta sem fim, porque eu era quem botava dinheiro dentro de casa. Aí tinha que trabalhar, só que as patroas achavam ruim porque eu ia um dia, passava dois de cama em casa, velha, sem poder trabalhar, eu tinha

cinquenta e cinco anos quando saí da casa de dona Vanda, foi meu último serviço foi lá. Aí fiquei sem ter o que fazer, fui procurar ajuda nas igrejas, fiquei recebendo o auxílio do governo, que nem isso agora eu recebo mais que foi cortado, porque minha neta fez dezoito anos. Mas eu me virei até hoje, ia atrás de uma coisa, cuidava de menino dos outros, fiquei parada não, nem me entreguei também não, me virava. Sempre dei jeito pra tudo! Ficando velha, e ainda dando duro em casa mesmo, com reciclados, com tudo que aparecia.

Ao utilizar a expressão: “nem me entreguei” dona Val procura revelar que ainda que o corpo tivesse apresentando os seus limites, seu espírito de luta, sua garra para sobreviver em meio as adversidades permaneciam vivos e fortes, tal como em outras etapas de sua vida. Analisando a perspectiva do envelhecimento do corpo e sua repercussão na vida das pessoas, Norbert Elias (2001), comenta que a relação com o envelhecimento é uma experiência pessoal.

A maneira como as pessoas dão conta, quando envelhecem, de sua maior dependência dos outros, da diminuição de sua força potencial, difere amplamente de uma para outra. Depende de todo o curso de suas vidas e, portanto, da estrutura de sua personalidade Mas talvez seja útil lembrar que algumas das coisas que os velhos fazem, em particular as coisas estranhas, estão relacionadas ao seu medo de perder a força e a independência e especialmente de perder o controle de si mesmo. (ELIAS, 2001, p.82)

Atualmente dona Val elabora um novo tempo em sua vida. Uma de suas atividades preferidas é produzir tapetes em crochê com sacolas utilizando materiais reciclados. Todas as tardes ela senta-se em frente a sua casa e intercala a conversa com vizinhos com o entrelace das agulhas. Segundo ela, tal atividade é muito “prazerosa”, corresponde a uma atividade que lhe traz satisfação. Ao discorrer sobre como divide seu tempo, no dia a dia, dona Val revela que procura de uma forma ou de outra reservar um tempo para si, para fazer o que gosta: fazer crochê e conversar com as pessoas na rua. Inventando novas ordens racionais na sucessão de suas tarefas a fim de perder menos tempo na realização dos afazeres da casa para “sobrar mais tempo” para seu crochê. O emprego do tempo é, então, determinado por uma lógica em que a escolha pelo prazer ganha centralidade em detrimento as obrigações. As vivências de dona Val e suas atividades diárias deixam evidentes que assim como entre as outras senhoras ela também investe no processo de individualização, ainda que não se envolva com grupos de terceira idade, ou que não frequente praças e outros ambientes sociais. A partir de sua perspectiva a

individualização é, sobretudo revelada, como um processo de conquista de um tempo para se fazer o que gosta, um tempo unicamente para si, de manter sua autonomia e o controle sobre os bens conquistados ao longo da vida.