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Capítulo 2 – A pesquisa de campo e seus percursos

2.4 Diferenças em campo

Em vários trabalhos realizados a partir de pesquisas de campo (ALVES, 2004; PIRES, 2007; FRANCH,2008; MÜLLER,2008) nos quais as questões de idade, ou fases da vida se fizeram presentes, a idade social do pesquisador se demonstrou relevante, e necessária de ser considerada no processo de campo.

Andréa Alves, especialista em velhice, relata em suas experiências de pesquisa o significado que sua idade apresentava em campo. Bem mais jovem do que suas interlocutoras, frequentadoras dos bailes de danças de salão no Rio de Janeiro, Andréia, observou que sua idade despertava entre os dançarinos um misto de alegria e desconfiança, sua “circulação nas rodas de conversas e na pista de dança era marcada pela diferença.” (ALVES, 2004, p.131).

Quando dei início a pesquisa imbuída dessa e outras tantas leituras sócio- antropológicas pensei que minha idade iria ser uma diferença marcante entre mim e o conjunto de minhas interlocutoras durante todo período de pesquisa, assim como foi para Alves(2004), inclusive pensei que nossa interação poderia ser dificultada por isso. Temia não parecer madura o suficiente para garantir credibilidade de ouvir suas experiências de vida, pois apesar da minha ‘adultez’,

sabia que sempre estaria aquém em termos de experiência de vida, com relação as minhas interlocutoras.

No entanto, de modo geral minha idade demonstrou ser um atrativo que contribuiu favoravelmente para que as mulheres participassem da pesquisa. Pois para elas, como bem frisou dona Rosa: “A gente, que já tá com a idade avançada, gosta de conversar com gente nova, como você!” Conversar e estar junto de pessoas mais novas parece despertar a juventude nas pessoas de mais idade. No entanto esse processo se configurou de forma diversa no grupo de mulheres da pesquisa. Para algumas de minhas interlocutoras, prioritariamente do segmento médio, estar junto de pessoas mais novas significava o sinal de que a interação com os jovens é para elas atualmente possível, ou seja, que elas são capazes de identificar-se com jovens e de manter relações significativas com pessoas mais novas. Há entre elas mais visivelmente a valorização da juventude associada a valores e estilos de vida. (DEBERT,1999).

Já entre as mulheres dos segmentos populares, isso não foi observado com tanta força. Antes, entre estas, minha idade serviu como fonte de rememoração no processo de entrevista, no qual frequentemente a frase: “quando eu tinha sua idade...” foi colocada previamente a narrativa das histórias por elas contadas. Se de um lado minha condição etária favoreceu a lembrança do passado, da juventude vivida, de outro, ela serviu como recurso de valorização da juventude como valor entre as idosas, mediante nossa sociabilidade estabelecida no processo de pesquisa.

A mim, a identidade designada em campo fora a de “jovem senhora” o que favoreceu minha aproximação entre as senhoras da pesquisa, mas apesar de toda identificação, nossa diferença de idade com certeza foi notada desde os primeiros encontros, e desde aqueles momentos, entre as mulheres do segmento médio, foi a mim sugerido: “Não me chame de senhora!” e ainda: “Tire o dona, basta me chamar de...!” Para mim aquelas sugestões sinalizavam o desejo daquelas mulheres de se desvencilhar da imagem de pessoas mais velhas. Eu jamais poderia ir de encontro a tal desejo.

O tratamento que recebia de todas as mulheres foi sempre muito atencioso, em suas casas me sentia muito a vontade. O terraço, as salas de visitas, as mesas da sala de jantar e da cozinha foram os lugares indicados com mais frequência pelas mulheres dos segmentos médios para a realização das entrevistas.

Já nas casas das mulheres do segmento popular, sempre “cheia de gente”, o terraço (quando existia), ou a sala e a cozinha (que muitas vezes também era um quarto), eram os lugares mais tranquilos para nossas “palestras” (entrevistas e conversas informais). Visitar seus locais de moradia me levou a compreender um pouco mais sobre as condições e os modos de vida daquelas mulheres. E ainda, me proporcionaram entrar em contato e conhecer alguns de seus familiares, vizinhos e amigos.

As entrevistas eram todas previamente marcadas, no entanto, vez ou outra aparecia de surpresa para visitá-las e observar o inesperado. Todas demonstravam gostar de minha companhia. Muitas vezes recebi ligações das mulheres do segmento médio me convidando para visitá-las num dia eventual. Mas do que outras coisas, essas mulheres demandam companhia e atenção. Contrariamente, no Timbó, senti que isso não se verificava. A vida comunitária, o bate-papo com a vizinhança, com um e com outro que passa pela rua, a “meninada” das casas não abriam espaço para que as senhoras que ali residem se sintam sós. Suas necessidades são outras, e se faziam mais claras para mim cada vez que as visitava. Relacionam-se principalmente aos precários recursos de cuidados com a saúde e o suprimento das despesas com alimentação.

No geral, entre eu e minhas interlocutoras nossas diferenças de idade surgiam principalmente quando, em meio as entrevistas, elas me relatavam fatos históricos por elas vivenciados quando eu ainda não era nem mesmo nascida, como por exemplo o golpe militar, em 1964. Ou quando discorriam sobre costumes de “seus tempos” como participar de dramatizações e ir as festas do pastoril. Coisas que em “meu tempo” não existia com tanta frequência quanto como surgiu em suas narrativas. Ou ainda quando se lembraram de momentos marcantes de suas vidas, como os eventos escolares e diziam: “Naquele tempo a gente fazia teste de admissão, você não chegou a ver isso!”

Quanto ao modo como se referem a mim mais uma diferença escapa. As mulheres do segmento médio me chamam pelo meu nome, me tratam como ‘amiga’. Enquanto que o tratamento que recebi entre as mulheres do segmento popular era “senhora” me senti muitas vezes colocada por elas num lugar hierarquicamente mais elevado. Pedia para que elas me chamassem pelo meu nome, na tentativa de quebrar a distância que nossas condições sociais nos impunham, mas parecia ser algo difícil para elas. Muitas vezes, fui comparada com suas “ex-patroas” ou com as

filhas delas. Pude assim verificar que além de minha idade, meu pertencimento social, também determinava diferenças nos modos como interagia com minhas interlocutoras.

Fazer parte do segmento médio introduziu à pesquisa maior alteridade com o grupo de mulheres do Timbó, exigindo maior esforço intelectual, tanto de minha parte como de minhas interlocutoras ali residentes, para nossa mútua compreensão. Explicar os objetivos da pesquisa, por exemplo, falar sobre “individualização” para as senhoras participantes da pesquisa, mas principalmente para as residentes no Timbó, era extremamente difícil e incômodo. Lembro ter usado esse termo algumas vezes, e em todas elas percebi que não me fazia compreender, precisei, naquelas oportunidades, reelaborar minhas falas a fim de me tornar inteligível. E assim como comenta Foote Whyte (2005), em seu trabalho em Cornerville, também percebi que minhas interlocutoras desenvolviam uma explicação sobre meu trabalho: Eu queria escrever sobre o que é ser e o que fazem as idosas de Bancários e do Timbó.

Zaluar (2000), ao estudar os significados da pobreza no subúrbio do Rio de Janeiro, discorre sobre os sinais microscópicos da separação social existente entre a classe trabalhadora pobre, e aqueles que, como ela, pertencem a segmentos sociais mais privilegiados pelo sistema de educação. Alguns detalhes a princípio insignificantes sobre a interação entre investigador e investigados são apontados por Zaluar (2000) como marcadores cruciais das suas diferenças sócio culturais, são eles: os olhares, o paladar, os mais simples gestos, os modos de falar, de andar, de vestir entre outros. Somente após a pesquisa de campo e com o contato com este trabalho etnográfico, ou como diria Geertz(2005), “estando aqui” (being here), tomei ciência do que acontecera em campo, percebi que assim como a experiência de campo de Zaluar, tais marcadores também se fizeram presentes na minha experiência.

Poderia relatar inúmeros eventos neste sentido, mas escolhi um bem simples. Certo dia na casa de dona Geralda, após a entrevista, ela me ofereceu um café com bolo, me levou à sua cozinha e sentamos juntas. Muito atenciosa comigo me serviu um café num copo. O café, no entanto, não havia sido coado, senti dificuldade em tomá-lo devido a grande concentração do pó de café no copo. Ela rapidamente reparou minha dificuldade e disse que era acostumada a tomar café daquele jeito, falou que eu esperasse um pouco que o pó descia para o fundo do

copo. O raciocínio físico que ela usara não me era estranho, mas aquela situação era para mim inusitada. Aquilo me alertava para a ideia de que na interação e interlocução com “os outros” no momento do trabalho de campo, nós investigadores sociais, estamos sujeitos a estranharmos seus códigos, costumes, e formas de agir. Ao seguir as instruções de dona Geralda, aquele evento, até então alheio a mim e

que num primeiro momento, “estando lá”(being there) (Geertz, 2005), me fora tão

insignificante transformou-se em aprendizados. Eu que habitualmente tomo café solúvel, ou expresso, aprendi com dona Geralda a tomar café conforme sua forma de prepará-lo. E mais, enquanto investigadora, aprendi que eventos tidos como insignificantes em campo, podem representar importantes fontes, no momento da escrita, “da tradução”, da análise da diversidade da vida cultural.