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Dona Geralda “Depois do grupo da terceira idade eu sou outra”

Capítulo 4 – Trajetórias de vida e de individualização: entre viver para si e viver

4.9 Dona Geralda “Depois do grupo da terceira idade eu sou outra”

Quando entrevistada dona Geralda possuía 69 anos, era viúva e morava sozinha em uma casa no Timbó. Nascida em Brejo de Areia, interior da Paraíba, dona Geralda era filha de um casal de agricultores “sem estudo”. Ficando órfã de mãe aos treze anos, e tendo seu pai assumido outro relacionamento que não lhe agradava, dona Geralda resolveu fugir de casa por volta dos dezessete anos, em 1959, na companhia de uma prima sua que trabalhava em João Pessoa. A pobreza vivida no interior, as difíceis condições de trabalho, “alugado para os senhores de engenho”, ou seja, por contrato diário no corte da cana, e o mau relacionamento com a madrasta foram as principais motivações para tal decisão. Confrontando a vontade do pai, que somente lhe garantia o alimento e habitação, dona Geralda organizou-se para viajar no “bacurau” da madrugada, na tentativa de atender a um pedido de uma senhora, residente em João Pessoa, que havia mandado um valor em dinheiro, por sua prima, relativo ao preço da passagem, para que ela levasse uma pessoa de confiança para tomar conta de criança.

Dona Geralda: Minha filha a gente passava muito aperreio no

interior, por falta de ter o que comer, era uma pobreza muito grande. Meu pai não ia me dar roupa, nem calçado, faltando comida dentro de casa ia? Eu queria muito ir me embora dalí, sair daquela pobreza[...] Eu sei que minha prima chegou na quinta feira, aí disse que a mulher tinha mandado um dinheiro que era pra ela levar uma pessoa pra trabalhar tomando conta de menino na casa dela, aí eu disse eu vou [...] Mas pai não podia saber senão ele não ia deixar eu ir. Quando foi no domingo de madrugada, antes de quatro horas a gente foi pra estrada para pegar o bacurau das quatro e trinta. Era Chuva... a estrada chega era pesada de barro. Aí o carro ficava atolado. Aí quando eu cheguei lá, sei que mandaram uma carta pra mim dizendo que meu pai tinha ficado muito revoltado, que eu tinha

fugido de casa e se me encontrasse me trazia debaixo de peia. Mas ele nunca foi lá não, aí eu fiquei na casa dessa mulher tomando conta dos meninos. Nessa casa tinha uma cozinheira, tinha uma lavadeira e tinha eu que era a babá, era três pessoas nessa casa, duas, comigo três.

O primeiro trabalho de dona Geralda em João pessoa foi no bairro de Jaguaribe, onde morou e trabalhou por volta de oito anos. Em seguida dona Geralda foi trabalhar no bairro de Miramar, como doméstica em casa de outra família. Neste novo trabalho, após alguns anos de dedicação à família, dona Geralda recebeu o convite para juntos com os patrões mudar para a Bahia, no entanto, ela resolveu permanecer na Paraíba. Sua escolha, hoje é lembrada e analisada como “uma besteira”. Pois segundo ela, talvez tivesse experimentado melhores condições de vida no outro estado e na companhia dos antigos “patrões ricos”.

Dona Geralda: Aí de lá que iam embora para Bahia, queriam me

levar, de besta que eu não fui, só levava eu não levava mais ninguém. Dr Ary falou que os meninos eram muito apegados comigo, e por isso ele queria me levar. Mas eu não queria ficar longe demais da minha família aí saí de lá e fui trabalhar numa casa lá perto do mercado Central. Também tive a chance de ir pra o Rio, e não fui, terminei ficando aqui na Paraíba, a menina disse menina tu fosse burra não foi? Eu disse fui, mas meu destino não era ir pra longe né! Aí fiquei batalhando. Mas aí era ruim porque terminava de arrumar a cozinha e ficava na casa né, aí tinha que fazer os serviços tudinho. De noite não tinha sossego, porque as vezes o patrão chamava, eu ia dizer que não? Tinha que atender. Era ruir isso, porque a gente ficava como assim numa prisão. Tinha que fazer tudo que eles pediam. Aí quando eu comecei a saber das coisas, saber andar pelos canto aqui, aí arrumei um quarto e fui morar sozinha. Aí dona Maria não queria que eu fosse, mas aí eu disse dona Maria eu vou, eu vou ficar somente dependente de mim, porque a pessoa ser independente e morar na casa dos outros é diferente de estar no seu canto. Aí aluguei um quarto em Cruz das Armas, morei lá muito tempo, aí depois de lá eu morei no Rangel, aí foi lá que eu arrumei meu marido.

Ao narrar suas trajetórias habitacionais nos primeiros anos na cidade de João Pessoa, discorrendo sobre as sucessões de bairros da cidade onde morou, dona Geralda insere a questão do desejo pela independência, e para tanto um lugar próprio, um espaço seu, era fundamental. Daí a decisão de deixar de residir no emprego e alugar um espaço para morar sozinha, onde teria suas próprias coisas. Foi nesse lugar que dona Geralda conheceu seu companheiro. E apesar dos muitos

conselhos contrários de amigos, e da ex patroa, foi morar com ele em Jacarapé e em seguida no Timbó, onde juntos construíram a casa em que ela mora até hoje.

Dona Geralda: [...] aí as meninas, mulher não vai não, aqui tu tem

teu conforto, eu dizia: Tenho conforto porque trabalho, porque se não trabalhasse não tinha, mais aí eu vou, eu não tenho mais nada a perder, já perdi mãe, já perdi pai, eu só tenho a minha vida pra perder, eu vou se não der certo eu volto. Mas lá era o fim do mundo, só era mato e coqueiro. A casa mais perto era como daqui lá nas três ruas. Casinha de palha. Aí depois de 13 anos, aí de lá foi que viemos pra essa casinha aqui. Era pequenininha essa casa, era metade, aí depois nos fomos levantando, aumentando ela. Meu marido era bom pra mim, nunca bateu em mim, ele trabalhava no estado, batalhava pra um lado e eu batalhava pra outro, a gente foi juntando. Ele morreu em 2001, todo mundo aqui gostava dele, todo mundo gostava de meu marido, as crianças aqui era tudo doida por ele.

A vida em Jacarapé foi muito atribulada devido à falta de acessibilidade a água e a energia e a distância de postos de consumo e de serviços em geral. Naquele lugar dona Geralda precisava comprar água em carro pipa e armazenava em cacimbas. Segundo ela naquele período o trabalho doméstico era precário e a higiene também. Para iluminação noturna usavam candeeiro. A mudança para o Timbó melhorou extremamente as condições de vida de dona Geralda e de seu esposo, facilitando não somente o cotidiano doméstico, mas também o acesso ao trabalho. Neste período de sua vida dona Geralda saia de casa às cinco da manhã, caminhando, ia ao trabalho, geralmente localizados em “bairros nobres da cidade: Cabo Branco, Tambaú, Tambauzinho, Bairro dos Estados”. Retornava apenas nos finais da tarde e muitas vezes após o jantar de seus patrões. Ao chegar em casa, dona Geralda ia “cuidar” de sua própria casa, fazer almoço para o esposo levar para o trabalho no dia seguinte, lavar roupa, engomar. Esse foi seu cotidiano por muitos anos, inclusive em finais de semana e feriados. Segundo dona Geralda, naquele tempo praticamente não tinha lazer, reconhece que o trabalho como doméstica “era praticamente um trabalho escravo”, pois diferentemente de hoje, as “domésticas não tinham direito a nada”.

Dona Geralda: Naquele tempo a gente trabalhava pra famílias e a

gente se sentia como parte da família, em toda casa que eu trabalhei, em Tambaú na casa de dona Marlene, em Cabo branco, no bairro dos estados na casa de dona Lurdinha, eu era muito querida,

os filhos de meus patrões era tudo doido por mim, saía as vezes por conta de briga com outras empregadas, ou porque a família ia se mudar como na casa de dr. Ary, nunca saí com problema, a vezes ficava desgostosa por alguma coisa que diziam comigo e ia me embora. Então assim a gente trabalhava com muito amor, se apegava a família, que era difícil quando a gente deixava. As vezes eu saía, quando dava fé chegava uma ex patroa na minha porta, aqui na frente, vim lhe levar de volta! Eu dizia vou não dona Vanda, eu tô em outra casa que o pessoal também é muito bom pra mim. Mas por outro lado, a gente não tinha carteira assinada, trabalhava, sábado ,domingo feriado, naquele tempo era praticamente trabalho escravo, a gente ganhava pouco e não tinha direito nenhum, as domésticas de antigamente não tinham direito de nada.

A convivência com o ex companheiro, era muito tranquila, ele era um homem muito bom, trabalhador e querido de todos. Neste relacionamento, dona Geralda chegou a engravidar duas vezes, mas não conseguiu dar a luz a nenhum dos dois filhos. Segundo ela um problema no útero identificado ainda na juventude e sem tratamento pelo sistema público de saúde foi a causa de nunca ter tido filhos. O vazio que sempre sentiu com a ausência de filhos próprios foi ao longo da vida suprido pela aproximação com os sobrinhos, que constantemente vinham do interior passar temporadas em sua casa, para trabalhar, para estudar e com os diversos afilhados, filhos de suas amigas e comadres da comunidade, que viu crescer nesses trinta anos de residência no Timbó.

A morte do esposo foi uma perda irreparável, ele era mais que um companheiro, era um amigo para todas as horas. Com sua partida dona Geralda diz ter conhecido de perto a solidão, pois desde então parou de trabalhar, perdeu o ânimo de sair de casa e de cuidar da casa, coisa que sempre gostou de fazer. Diz ter sempre tido apoio da comunidade, segundo ela suas vizinhas nunca a deixaram “de mão”, ou seja, sempre lhe prestavam assistência e lhe fizeram companhia. Após alguns meses do falecimento de seu esposo, dona Geralda passou um tempo em casa de familiares no interior, procurando “espairecer” e se acostumar com sua nova condição de viúva. No entanto sentiu que a vida no brejo não lhe “pertencia” mais, sentiu muita falta de casa, das suas comadres e demais vizinhas, assim como dos seus afazeres. Retornando para casa começou a criar animais, galinhas, porcos e a comercializar suas carnes, sua intenção era manter-se ocupada e obter outras fontes de renda. No entanto, tal atividade, apesar de muito prazerosa, passou a ser problemática devido as inspeções sanitárias dos agentes de saúde na comunidade

que proibia criação de porcos em áreas urbanizadas. Devido a isso dona Geralda passou a criar e comercializar somente aves.

Além da renda que retira da venda de frangos, dona Geralda se sustenta financeiramente com a pensão que recebe de seu ex marido. É com um salário de R$ 510,00 que ela paga sua energia e água e faz feira. Ressalta que entre os benefícios que recebe o livre acesso ao transporte público é um ganho extraordinário para sua movimentação na cidade, para ir a médicos, para visitar familiares, para frequentar o grupo de idosos do qual faz parte. No entanto, a “falta de respeito das pessoas com os idosos” tornam-se cada vez mais evidentes com a maior circulação dessa população nas ruas. Segundo os comentários desta senhora a intolerância, a falta de compreensão dos problemas de limitações de mobilidade dos mais velhos pelas gerações mais novas da cidade dificulta e inibe a livre circulação dos velhos nos espaços públicos.

Dona Geralda: Olhe uma coisa que a gente tem direito que é muito

bom mesmo é andar de ônibus de graça. Eu vou pra médico, vou pro conde pra casa de minha cunhada, vou pra Facene, ando pra lá e pra cá sem gastar um tostão. O ruim é que os motoristas não respeitam a gente não é uma velocidade, não esperam a gente descer dos ônibus, eu já arrisquei cair não sei quantas vezes por isso. O pessoal senta nas cadeiras dos velhos, não dão lugar, é assim uma falta de respeito das pessoas com os idosos, que a gente tem direito de usar o ônibus mas a gente tem medo, a gente evita sair por isso, o pessoal lá da Facene mesmo reclama tudinho, tem delas que tem que andar acompanhada com alguém para não sofrer acidente.

Aproximadamente dois meses antes das entrevistas dona Geralda começou a frequentar um grupo de terceira idade promovido por uma faculdade particular em João Pessoa. Nesse grupo ela faz aula de dança, exercícios físicos, terapia de grupo, participa de festejos de datas comemorativas, realiza passeios coletivos pela cidade, assiste palestras sobre como lidar com os “problemas da velhice”, onde “aprende a viver melhor”, “cuidar da saúde”. Este grupo concede mensalmente uma cesta básica a todos os idosos que dele participa. Segundo dona Geralda é um grupo muito divertido e importante para ela, se constitui atualmente em atividade primordial, pois todas as outras coisas que precisa fazer são organizadas em função das atividades promovidas pelo grupo. Por exemplo, como

as reuniões do grupo funcionam nas terças e quintas, ela frequenta médicos apenas nas segundas, quartas e sextas, quando também faz suas compras, ou sai para pagar suas contas. Seu dia a dia ganhou maior dinamicidade com as programações do grupo, pois frequentemente traz atividades pra casa, como fazer cartazes, confeccionar bordados, assistir a filmes para discutir no grupo posteriormente, comprar roupas para festas, entre outras tantas coisas que movimenta seu cotidiano de forma prazerosa. Foi nas palestras do grupo que dona Geralda diz ter aprendido a ser uma “idosa mais saudável”, alimentando-se bem, procurando desenvolver uma vida ativa, “fugir das tristezas e da solidão”. Até então seu cotidiano era restrito a comunidade e ao ambiente doméstico, o grupo trouxe uma renovação não somente físico, mas também do espírito ampliando suas sociabilidades e vontade de continuar vivendo.

Dona Geralda: Depois que eu comecei a ir pra esse grupo, eu sou

outra pessoa, eu era muito triste, sem vontade de viver, era muito sozinha, paradona, triste. Agora não eu passo a semana toda me organizando para ir para o grupo, tenho muitas amigas lá, as doutoras gostam da gente, ensinam coisas importantes para os idosos viver mais e melhor, isso é importante não é? Eu acho importante demais pros idosos, tanto pras mulheres quanto pros homens, todo mundo lá diz que foi a coisa mais maravilhosa da vida foi ter encontrado esse grupo, eu mesma não deixo de ir não. Lá eu aprendi muitas coisas e quero continuar aprendendo, a gente pensa que ser velho é morrer pra vida, não é não.

Para dona Geralda a convivência com o grupo trouxe redefinições sobre suas representações da velhice, antes entendida como tempo de solidão, de reclusão, de não aceitação na sociedade, agora por sua vez, começa a entender que essa etapa da vida pode ser vista e experimentada de forma diferente: mais alegre produtiva intelectualmente e socialmente, cheia de companheirismo e de satisfação.