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O bairro de Bancários: Suas idosas e suas práticas

Capítulo 3 – Cenários Os espaços da pesquisa suas caracterizações e

3.2 O bairro de Bancários: Suas idosas e suas práticas

As localizações urbanas e práticas decorrentes dos movimentos da população para o trabalho, para o consumo, para o lazer, para o esporte, para a igreja, etc. são caracterizados pelas condições socioeconômicas, culturais e espaciais da população. Os idosos como parte significativa da população de Bancários, tem sua participação nesses movimentos. Principalmente aqueles idosos

engajados nas atividades da “terceira idade”30 e/ou nos grupos religiosos do bairro.

Estes idosos, residentes em Bancários, especialmente as mulheres, interferem decisivamente nas práticas cotidianas do bairro como um grupo etário com identidade e cotidiano próprios.

Como apresentado anteriormente, ao analisar famílias assistidas pelo Programa Saúde da Família, em um dos bairros populares de Recife, Parry Scott, observou uma inversão na construção de gênero entre homens e mulheres. Segundo ele, as mulheres idosas valorizam os espaços públicos, ou da rua, e os homens idosos dão preferência à vida no âmbito da casa. As mulheres idosas em Bancários parecem seguir esse mesmo padrão observado por Scott(2006). Ainda que as “obrigações” domésticas ocupem parte de seu tempo, os cotidianos de todas elas compreendem inúmeras atividades “extra- casa” que aqui compreende o bairro, incluindo suas diferentes comunidades.

Segundo Prost(2009), ao tratar sobre espaços de convívio, o bairro é eleito como um desses espaços é considerado como lugar do conhecimento mútuo. É esse convívio e o conhecimento mútuo que permitem com que o “bairro permaneça como um espaço aberto, público, e que mesmo assim a vida privada de

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Ver fotografias em apêndice 2.

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Ao mencionar este termo estou me referindo as ideias gerais a ele associada usualmente no Brasil.

cada um encontre aí um prolongamento, um eco, um apoio e às vezes uma crítica” (PROST, 2009. p.105). Aqui procuro discorrer um pouco sobre as práticas dessas mulheres entre a casa e a rua. Trago algumas questões que levantei no início da pesquisa de campo, a saber: Como minhas interlocutoras dividem seu tempo no dia a dia? Que atividades fazem por “obrigação” e quais realizam por “prazer”? Quais são suas práticas domésticas? Que ambientes sociais circulam com mais frequência? O que fazem nesses ambientes?

No setor do bairro onde se localiza a Praça da Paz, é muito comum, por exemplo, a concentração dos idosos, majoritariamente mulheres dos segmentos médios, no início das manhãs e finais de tarde. As caminhadas, e exercícios na Academia da Terceira Idade (ATI), as aulas de dança e ginásticas oferecidas pelos professores do projeto Vida Saudável, apesar de serem atividades consideradas imprescindíveis a saúde e a manutenção de uma vida saudável, também correspondem a práticas interessantes à manutenção de uma vida social ativa. Os encontros na praça são também motivos especiais para frequentá-la. Segundo as idosas frequentadoras da praça, as conversas, as sociabilidades, são “remédios”

para curar muitos males. 31

Mensalmente é organizado na praça, com a cooperação de todas as mulheres e das professoras do projeto Vida Saudável, um café da manhã. É um momento de maior interação, de confraternização e comemoração das aniversariantes do mês, assim como outras datas comemorativas, como o dia da “melhor idade”.

Além das praças outros espaços do bairro mais visitados pelas mulheres idosas são as igrejas. É maciça a participação feminina idosa nos cultos evangélicos e muito mais expressivamente nas missas das duas principais Igrejas Católicas do bairro. As atividades religiosas funcionam como importantes veículos de sociabilidades para estas mulheres. Num estudo exploratório, para elaboração do projeto de tese, realizei um questionário com 55 mulheres, com mais de 60 anos, residentes nos bairro, a fim de conhecer algumas questões gerais, sobre escolaridade, profissão, religião, naturalidade, estado civil, filhos, etc.. Trinta e cinco delas faziam parte das atividades do projeto Vida Saudável, pertenciam aos segmentos médios do bairro, as outras 20, faziam parte do grupo de idosas

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Ver fotos em apêndice 3.

frequentadoras do CRC, dentre estas, doze residiam no Timbó, as demais em

Bancários. Interrogando sobre religião, 41 mulheres afirmaram ser católicas, 12

disseram ser evangélicas, e outras duas disseram que não tinham uma religião definida. Questionando aquelas que afirmaram ter uma religião sobre o que mais as atraia às igrejas as quais elas frequentavam uma, entre as três respostas mais citadas, estava a ideia da sociabilidade. Os encontros semanais, o apoio mútuo, as orações compartilhadas, o estreitamento dos vínculos, os festejos realizados coletivamente, tudo isso, associado as orientações religiosas e especialmente ao desenvolvimento e acompanhamento da fé, representam para as mulheres as principais motivações para fazer parte de uma comunidade religiosa.

Especialmente no grupo de idosas frequentadoras das igrejas católicas do bairro, pude observar uma maior dinâmica social. Além das atividades religiosas propriamente ditas este grupo investe mensalmente em passeios, viagens, organizadas por agentes ligados a igreja (psicólogos, educadores físicos, etc) e em parceria com a prefeitura da cidade, que patrocina o transporte. Também costumam organizar quermesses em datas festivas, como nos festejos juninos e outros “dias santos”. Tais organizações envolvem preponderantemente as mulheres idosas, comumente são elas as responsáveis pelas comidas e pela decoração das festas.

Das treze mulheres que compõe meu grupo de interlocutoras, onze são membros e participam ativamente de atividades religiosas. Quatro delas em Igrejas Evangélicas e as demais em Igrejas Católicas.

Maria, uma das participantes da pesquisa, criada desde criança sob as orientações da igreja católica, é frequentadora assídua de reuniões de grupos católicos, geralmente formados por mulheres na Igreja Jesus Ressuscitado, localizada em Anatólia (bairro vizinho a Bancários), como por exemplo, a legião de

Maria32. Em seus relatos ficou evidente que participar e ser assistida por uma

comunidade religiosa lhe ajuda a encarar o que para ela tem se apresentado como principal elemento de conflito em seu cotidiano, a relação com o filho. Seus discursos em defesa de suas ideias, de suas vontades, geralmente confrontadas com a de seu filho, são fundamentados em argumentos baseados nos textos bíblicos, nas orientações de seu conselheiro espiritual, o padre de sua Igreja e nos conselhos de suas amigas da legião de Maria.

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Associação de católicos constituída, segundo seu manual, por um tripé: oração, reunião e trabalho.

As práticas em torno da vida religiosa entre as mulheres envolvidas no processo de pesquisa se revelaram como fundamentais para a construção diária de uma vida própria. Mas por outro lado tais práticas religiosas, em maior ou menor grau, não deixaram de se constituir como bases reguladoras de seus comportamentos ao longo de suas vidas. Tais manifestações me remetem ao que Michelle Perrot (2007), observa sobre a relação entre a religião e as mulheres. Segundo esta autora, a relação das mulheres com a religião é paradoxal. Pois se de um lado as religiões impõem-se como poder sobre as mulheres, de outro, representam uma forma de poder das mulheres especialmente quando estas conseguem transformar a posição de submissão que a religião lhes reserva, na base de um “contra poder” e de uma “sociabilidade”. (PERROT, 2007).

A religiosidade desenvolvida entre minhas interlocutoras ultrapassa o ambiente religioso, as igrejas, e envolvem muitas vezes seus espaços privados. Em algumas residências, a existência de oratórios, o uso de imagens de santos como ornamentos puderam ser observados. A prática doméstica de “rezar o terço”

diariamente, e diante das imagens, se mantém entre algumas senhoras católicas33.

Assim como a participação em novenas34, nos lares geralmente da vizinhança, tal

prática estimula não somente a fé, mas as sociabilidades e o estreitamento dos vínculos entre as vizinhas.

Entre as evangélicas, a prática de culto nos lares, também apontam para uma vida devocional doméstica. Estes cultos podem reunir não somente os familiares, mas também amigos e vizinhos convidados. Tem como objetivo a maior interação entre a comunidade religiosa em questão, o estudo bíblico mais “informal” e a possibilidade de evangelismo entre possíveis não evangélicos que visitem a família anfitriã.

Ainda que não tenham tido ênfase no processo de pesquisa, as relações de vizinhança desenvolvidas entre as mulheres participantes também puderam ser analisadas não somente a partir de seus relatos, mas principalmente através das observações empreendidas em campo.

Nas ruas dos conjuntos de Bancários a reclusão ao espaço doméstico foi bastante evidente, em contraposição ao que pude observar no Timbó. No entanto, o

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Ver apêndice 5.

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Encontros para orações que duram nove dias. Em cada dia a imagem de Maria, e o grupo de oração visitam uma residência diferente.

uso das ruas e os contatos com vizinhos ainda se mantém no cotidiano de algumas senhoras. Vera, por exemplo, possui uma vizinha, Dona Mada de 77 anos, há 29 anos. Ambas moram na mesma rua e tem o hábito de se verem todos os dias, de conversarem nas calçadas uma com a outra e com outras pessoas que eventualmente se aproximam. Esse hábito ocorre mais no período das manhãs, parece ser resultado de suas próprias estratégias de vida desenvolvidas desde o tempo em que a vida naquele lugar aproximava-se mais da vida no campo do que da vida urbana.

No início da década de 80, ainda não havia chegado água aqui em Bancários, era preciso a gente botar a roupa no carro ir lavar no Timbó, a água do rio era muito limpinha. Muita gente fazia isso. Levava as bacias, umas tábuas e lavava lá. Aqui também não tinha nem estrada porque logo quando cheguei não passava carro pra cá, tinha somente um canteiro, um caminho pra gente fazer de pés e ir até a principal. O que tinha muito era mato. Os meninos brincavam muito, o perigo que fazia era de algum bicho, cobra essas coisas. Mas agente se ajudava muito aqui, eu olhava os meninos quando

Vera35 saia pra trabalhar, ela chorava tanto, porque a vida aqui era um pouco difícil quando agente chegou. Mas com o tempo, as coisas foram melhorando, abriram a rua, depois calçaram, e hoje você veja como tá. Isso aqui não existia minha filha. Hoje o medo que faz é de um carro desse passar e atropelar alguém. Eu mesmo fecho o cadeado no portão pra justamente evitar que meu neto corra pra rua, porque ele brinca de bola por aqui, mas ele é pequeno ainda. (Mada, moradora de Bancários, vizinha de Vera).

As narrativas de Vera envolvem dona Mada inúmeras vezes, durantes muitas fases e eventos de sua vida, sua vizinha se fez como personagem fundamental principalmente quando refletia sobre as estratégias empreendidas ao longo do tempo para cuidar dos filhos pequenos, para resolver problemas conjugais, para dar conta dos afazeres domésticos, para lidar com alguma enfermidade, e principalmente para conciliar tudo isso com o trabalho. Essa parceria de anos associada à proximidade de suas residências pareceram os aspectos mais relevantes para que estas mulheres nutram ainda hoje tamanha amizade e confiança e invistam no hábito do encontro diário. Incorporando dessa forma cotidianamente o encontro com a vizinha, geralmente no portão de suas casas.

O relato anterior traz a discussão sobre as transformações do ambiente urbano, e seus reflexos sobre o modo de vida e o cotidiano das pessoas. Chamo

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Nome verdadeiro foi substituído pelo utilizado na tese.

atenção neste sentido para a presença do medo no discurso da senhora. O medo se aplica a coisas diferentes com o decorrer do tempo. Antes, estava relacionado aos problemas que poderiam ser adquiridos devido a algum animal nocivo, trata-se de um medo “tradicional”, ou um medo de tempos antigos, mais ligado a vida no campo. O medo atual liga-se contrariamente as condições urbanas, é o medo da violência do trânsito na cidade. As melhorias urbanas, no relato da senhora, são acompanhadas por sentimentos antagônicos. O medo a acompanha e a faz adquirir hábitos diferentes, interferindo diretamente no seu modo de vida. De modo que fica evidente que os habitantes e moradores das cidades contemporâneas, e entre elas João Pessoa, vivenciaram e vivenciam o cotidiano acompanhando seu processo de desenvolvimento urbano e crescimento, que cada vez mais se pautam em uma cultura do medo, onde a violência e a vitimização pessoal aparecem marcadamente como algo inevitável à vida social. (KOURY, 2002, 2005).

Também na pesquisa exploratória, pude coletar relatos de mulheres idosas, que demonstraram menos interesse pela vida extra muros. O medo da violência urbana mais uma vez surgiu como principal justificativa apontada por elas para o recuo da vida pública. Associada as questões da cultura do medo, entre as moradoras de Bancários estão as reflexões acerca da emergência de novas formas de sociabilidade, as sociabilidades virtuais. Segundo uma delas, Dona Aparecida, as pessoas tem cada vez mais substituído a relação presencial com familiares, amigos e vizinhos pela relação virtual. O processo de modernização que penetrou no cotidiano da sociedade brasileira criou formas de sociabilidades mais individualizadas. E isto é sentido negativamente pelas mulheres participantes da pesquisa, pois elas não possuem nenhuma intimidade com computadores - salvo uma delas, dona Ana - apesar de possuírem em casa. As senhoras sentem-se excluídas duplamente por esses novos mecanismos de relacionamentos. Primeiro porque como já comentei não sabem utilizar os computadores, são então excluídas das redes de relacionamentos virtuais, e por outro lado são segundo elas, abandonadas por seus familiares e amigos, que empregam todo tempo livre em sites de relacionamentos. O trecho de uma conversa informal demonstra tal avaliação.

Cristiane: A senhora tem amigos aqui em sua rua?

Dona Aparecida: Não amigos não, porque nem todo mundo é pra

ser amigo, né? Eu conheço muita gente aqui, falo assim com todos. Mas amigos eu não tenho nenhum. Eu tenho mais assim minha

família que mora em Mangabeira, e algumas pessoas do Cristo. A gente cumprimenta por educação, sabe como é?

Cristiane: Sei, a senhora costuma encontrar com seus vizinhos e

conversar com eles?

Dona Aparecida: Encontrar a gente encontra né assim quando um

chega ou sai, e agente tá por aí por fora. Mas pra chegar assim ficar conversando na casa de um, pelas portas, não. Até porque, todo mundo é muito ocupado. Sai de manhã e só chega de noite. E quando chega é direto pro computador, não tem mãe, não tem vizinho. Hoje em dia, ninguém senta pra conversar com ninguém não, feito antigamente. Quando eu morava na Torre, a gente tinha mais oportunidade de conversar, aqui não tem isso não, o povo daqui, é... não tem isso não. Eu conversava mais com Wilma, uma vizinha minha daí, mas ela foi morar em Mangabeira. Agora assim eu cumprimento, se vier na minha casa eu recebo com muito prazer. Vê-se que os processos de modernização, exemplificados na fala da senhora pela ritmo de trabalho das pessoas, assim como pela referência as novas formas de relacionamento virtuais, são questionadas pela perspectiva relacional da sociedade brasileira proposta por DaMatta(1991). A senhora fala das lembranças do tempo em que as relações na família e na vizinhança eram mais próximas, nas quais as pessoas tinham mais tempo para conversar umas com as outras.

As relações de vizinhança empreendidas pelas mulheres dos segmentos médios de Bancários parecem ser construídas em meio as contradições das experiências do passado, dos hábitos adquiridos anteriormente, e as formas mais recentes de socialização no meio urbano. Já entre as senhoras do Timbó, as relações de vizinhança se demonstraram mais expressivas do que em Bancários. A prática de sentar-se nas calçadas, conversar nas portas das casas, especialmente nos finais de tarde, é muito comum entre os idosos que ali residem. Não há no Timbó um ponto de encontro, como a Praça da Paz em Bancários, mas as ruas se constituem em espaços de interação e de reconhecimento mútuo. No cotidiano do Timbó, a casa e a rua são complementares, tal como apontou DaMatta(1991) em seu esquema conectado, relacional e complementar: A casa & a rua. Dona Val, por exemplo, costuma sentar-se todas as tardes em frente de sua casa, “para ver o movimento da rua, para conversar com quem passa, para fumar seu cachimbo e

bordar seus tapetes”36. Assim como ela, dona Cida, dona Ceci e dona Geralda

também demonstraram fortes relações de afetividade com seus vizinhos,

36

Ver apêndice 6.

especialmente com aqueles mais antigos na comunidade, são “comadres” de inúmeras outras mulheres, e com elas costumam dividir parte do cotidiano.

3.3 A estilização da vida doméstica: os espaços e rotinas domésticas das