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Capítulo 2 – A pesquisa de campo e seus percursos

2.3 Procedimentos metodológicos

Envolvida nos calorosos debates em torno da ética na pesquisa resolvi cumprir com um dos requisitos que se colocava em questão no âmbito do Programa de Pós Graduação em Sociologia, no início de 2009, para a inicialização das pesquisas de campo. Tratava-se de obter a autorização do Comitê de Ética da Universidade Federal da Paraíba. A formalização junto ao Comitê foi realizada, muito embora compreendendo que a relação que estabeleceria com minhas futuras interlocutoras deveria se fundar na confiabilidade mútua, da relação construída em

campo, que estaria para além daquela certidão23.

Os primeiros encontros com as mulheres, após as apresentações do trabalho de pesquisa e a confirmação de suas participações, tiveram como objetivo nossa aproximação e a promoção de conhecimento mútuo. Visitava as mulheres pela manhã após as caminhadas na praça, para beber um copo de água. À tarde para tomar um café ou para conversarmos um pouco sobre coisas diversas. À noite para assistir novela, ou aos debates políticos das eleições para governador. Nessas visitas era sempre bem recebida, mas chamava-me atenção as perguntas que me dirigiam. Questionavam-me sobre meu trabalho e minhas pretensões após o doutorado, sobre o nível salarial de professores de universidade. Também sobre minha vida pessoal, se era casada, como era meu esposo, se meus filhos eram estudiosos, se davam trabalho, sobre onde eu morava e como era minha vizinhança. Sobre meus pais, se eram idosos, se eu cuidava deles, se eram doentes, se cuidavam da saúde.

Não me livrei destes questionamentos com nenhuma das mulheres e procurei respondê-los no limite do que era conveniente à manutenção da minha privacidade. O que me deixava claro com tudo aquilo era a necessidade de me fazer conhecer antes de mais nada, pois, todas aquelas perguntas evidenciavam a

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Ver Certidão em anexo 1.

intenção daquelas mulheres em me situar em seus mundos, e é por isso que aquelas circunstâncias se converteram para mim em etapa fundamental da pesquisa.

A questão da individualização feminina não foi a princípio minha temática central, antes pensei em abordar o cotidiano das mulheres e quais/como eram suas experiências cotidianas familiares e extra familiares. Neste sentido, procurei observar suas sociabilidades em locais coletivos: a praça, as ruas, calçadas, igrejas, shoppings, grupos de terceira/melhor idade. À medida que a pesquisa foi avançando, e com os contatos mais aproximados com as mulheres pude sentir entre elas, em maior ou menor grau, a existência de uma constante tensão em conciliar a convivência familiar e a convivência com outras pessoas como “as amigas de praça”, as irmãs da igreja, o grupo da terceira idade. A esta altura já contava com um grupo de oito mulheres participantes e com as quais eu me encontrava pelo menos semanalmente. Passei a investigar como essas tensões apareciam nas conversas entre elas. Os trechos abaixo são expressões retiradas dessas conversas informais, anotadas em diário de campo.

Selma: Só não frequento o grupo da terceira idade porque tomo

conta do meu neto, quero ver se daqui pro fim do ano resolvo isso.

Vera: Gosto muito de viajar, mas não gosto de deixar meu esposo

sozinho, porque ele não sai de casa. Mas tem dia que me dá na telha e eu vou mesmo, vou andar, faço o que eu realmente gosto, ser eu sabe ?

Ana: Sou mãe, sou avó, mas deixei de ser besta! Não deixo de fazer

minhas coisas, eu preciso viver.

Geralda: Não ter filho e neto pra dar de conta, por um lado é bom,

pelo menos, eu não tenho quem empate eu querer sair de casa, como eu vejo por aí.

Comecei a compreender que o cotidiano dessas mulheres era marcado por uma luta conciliadora entre: “viver para si” X “viver para os outros”. As mulheres demonstram querer harmonizar, a atenção e cuidados aos outros, ao companheiro, aos filhos, e netos, com o cuidado de si, com sua vida pessoal, com a possibilidade

de participar de atividades que lhes trouxessem satisfação, além daquelas atividades do cotidiano doméstico.

Sem perder de vista esse ‘insight’, procurei observar o cotidiano de todas as mulheres, desde as primeiras horas da manhã até a noite, durante a semana, assim como aos sábados e domingos. Acompanhei-as às missas e à cultos evangélicos e observei como participavam e em que medida se envolviam naquelas atividades religiosas. Realizei com algumas delas compras em supermercados, ou em mercearias, também no shopping da cidade. E pude verificar um pouco sobre o

que consomem24. Além disso, também realizei observações em momentos festivos e

passeios coletivos. Entre algumas mulheres de Bancários, fui à confraternizações de final de ano em 2010 e a um baile carnavalesco da terceira idade em fevereiro de 2011, realizado no SESC centro. Também nos encontramos em eventos realizados na Praça da Paz e num Shopping do bairro. Com as mulheres do Timbó participei de algumas atividades desenvolvidas pelo posto de saúde para os idosos da comunidade, fomos às praias da cidade, e festejamos juntas as comemorações juninas. Participar com elas de tais atividades foi fundamental para nossa aproximação, e para conhecer um pouco mais sobre suas redes de relações.

Se por um lado pertencer ao segmento médio e morar em Bancários me facilitou tanto na constituição de um grupo de informantes - através da conhecida

técnica da “bola de neve”25- como no acesso às observações e nas realizações das

entrevistas, de outro, tive que empreender ali a difícil tarefa de tornar estranho o familiar (DaMatta,1985), considerando o caráter relativo das noções de familiaridade e estranhamento(Velho, 2008). Tive que explorar um olhar diferenciado do meu recorrente olhar de moradora. Não somente meu olhar, mas também meu ouvir tiveram que ser treinados, ou como coloca Cardoso de Oliveira (2000), tiveram que ser disciplinados.

Já na comunidade do Timbó o exercício foi o inverso. Tive que tornar familiar tudo aquilo que me era estranho. E com isso o exercício de disciplina do olhar e do ouvir permaneceram embora que de forma diferenciada. Apesar de conhecer um pouco a comunidade do Timbó, e alguns de seus moradores, as idosas

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Ver em apêndice 1 fotografias de uma das senhoras fazendo compras em um supermercado.

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O método de “bola de neve” é uma técnica de pesquisa qualitativa, através da qual o conjunto de informantes é constituído através de redes de relacionamentos, ou seja, onde um informante indica outro a fazer parte da pesquisa. Ver Becker(1999) e Bernard (2005).

ali residentes eram desconhecidas minhas. Assim como a velhice, era um novo objeto de pesquisa em minha carreira.

Mesmo com a temática da pesquisa ainda em construção dei início às primeiras entrevistas – todas gravadas e transcritas - continuando a tratar sobre questões do cotidiano daquelas mulheres. O uso que faziam do tempo durante a semana e nos finais de semana, era algo que me interessava conhecer. Persegui compreender suas vivências, suas atividades do dia a dia, aquelas que faziam por prazer, e aquelas que faziam por obrigação. Saber quem eram as pessoas mais presentes em suas vidas, saber quem eram seus “outros significativos” (Singly, 2000) e como eram suas relações com eles.

Em meio a estas questões das primeiras entrevistas outras temáticas também se mostraram relevantes. A questão do uso que fazem de seus próprios rendimentos foi uma delas. Pois muitas justificativas sobre o fato de participarem ou não de cursos, ou realizarem viagens, entre outras atividades que exigiam recursos foram dadas a partir de suas condições e compromissos financeiros.

Neste sentido passei a questionar as mulheres sobre como administravam seu dinheiro. Tendo em vista que todas tinham rendimento próprio, quis conhecer que destinos davam ao que recebiam mensalmente. Quis compreender quanto gastavam consigo mesmas, como participavam das despesas domésticas, se ajudavam financeiramente outras pessoas e caso isso fosse positivo quem seriam elas, e como funcionavam essas ajudas.

Minha primeira entrevistada foi dona Ana, três das cinco entrevistas que realizei com ela ocorreram em sua casa, uma em meu ambiente de estudo e outra na Praça da Paz. Todas as demais entrevistas entre as mulheres dos segmentos médios ocorreram em suas residências e entre elas foram realizadas 33 entrevistas que variaram entre 40 minutos e 1 hora e meia de gravação. Entre as mulheres do Timbó realizei 26 entrevistas, e estas variavam entre 1 e 2 horas.

Todas as ocasiões de entrevistas foram agendadas previamente. No entanto, as condições em que se realizaram foram bastante diferenciadas. Essas diferenças inclusive contribuíam para me fazer pensar sobre duas questões, a saber: os papéis assumidos pelo pesquisador em campo, e as posições de classe das mulheres da pesquisa, pois tais diferenças refletiram em alguma medida as condições e dinâmicas dos espaços domésticos de cada uma.

Entre as residentes dos conjuntos de Bancários as entrevistas se desenvolveram no conforto das salas de estar e livres da interferência de terceiros, o que deixava as mulheres mais a vontade, no entanto, não foi o suficiente para que elas eliminassem os ‘não-ditos’.

Já nas residências do Timbó, inclusive na de dona Geralda, que morava sozinha, o ‘entra e sai de gente’, parecia não ter fim. Ali realizei algumas entrevistas na calçada das casas, nas cozinhas, que em algumas ocasiões também eram quartos. O reduzido espaço das casas, o grande número de pessoas circulando por elas, especialmente crianças, a estrutura geminada das residências (casas construídas uma ao lado da outra, sem espaço de separação) e o hábito de se ouvir músicas em volume máximo em algumas casas, prejudicaram as primeiras entrevistas ali realizadas. Devido a isso, resolvi convidar algumas das mulheres ali residentes para darmos prosseguimento aquele trabalho no posto de saúde, onde tive acesso a um espaço bastante tranquilo e reservado para recebê-las. Para não perder as oportunidades de observação com a transferência das entrevistas para o posto, continuei a visitá-las em suas casas. Todas as observações me serviam como recurso complementar para as entrevistas que estavam em andamento.

Seguindo as sugestões de Plummer (1983), procurei inserir nas visitas às residências de todas as mulheres uma avaliação das condições de moradia de cada uma delas. Ensaiei uma etnografia de suas casas, observei bem todos os cômodos, procurei compreender o espaço de cada mulher na casa, assim como se dava a distribuição da família nestes cômodos. Observei o estado de conservação dos imóveis, o tipo de mobília e decoração, a fim de compreender, através do que elas possuem, um pouco sobre as condições matérias de vida de cada unidade residencial das quais elas fazem parte, assim como também o estilo de vida de cada uma delas.

Estive atenta as fotografias de família distribuídas pelas casas, e enquanto Lins de Barros(1987) observou a valorização da família a partir da fotografia nas camadas médias, pude perceber que isso não se restringiu as mulheres deste segmento em meu campo de pesquisa. Assim como as mulheres dos segmentos médios as mulheres residentes no Timbó também se utilizaram de fotografias para legitimar e valorizar a família.

Quanto aos papéis que assumi em campo, estes foram muitos, pesquisadora, amiga, visita, acompanhante de idosos, psicóloga, funcionária do

posto, irmã da igreja. Essa superposição de papéis os quais assumi se revelou para mim com reflexo do meu envolvimento em campo.

Conviver e entrevistar mulheres mais ‘velhas’, me fez conhecer, parte da história da cidade e do bairro em que moro. E, sobretudo me fez apreciar uma parte do universo feminino ainda inescrutável por mim. As ocasiões das entrevistas refletiam nossas diferenças culturais e geracionais, e muitas vezes, diferentemente do que coloca Bourdieu(1997), quando trata da violência simbólica recorrentemente exercida pelo pesquisador me senti inúmeras vezes ocupando a posição investida de menor poder. Isso porque nessas ocasiões vislumbrava-se não somente o que este autor chama de “recusa à objetivação”, mas evidenciava-se minha pouca experiência de vida tendo em vista as experiências daquelas mulheres e desconhecimento de alguns fatos históricos por elas vividos.

Tudo isso me abriu os olhos para as assimetrias existentes nas interações que compartilhava com minhas entrevistadas. Lembrando-me o que observa Bourdieu:

É o pesquisador que inicia o jogo e estabelece a regra do jogo, é ele quem, geralmente, atribui à entrevista, de maneira unilateral e sem negociação prévia, os objetivos e hábitos, às vezes mal determinados, ao menos para o pesquisado. Essa dissimetria é redobrada por uma dissimetria social todas as vezes que o pesquisador ocupa uma posição superior ao pesquisado na hierarquia das diferentes espécies de capital, especialmente do capital cultural. (BOURDIEU, 1997 p.695).

Tendo em vista as diferenças de nossos idiomas culturais, procurei construir com cada uma das mulheres participantes da pesquisa uma relação dialógica nos termos de Cardoso de Oliveira(2000). Investi no estabelecimento de relações agradáveis baseadas na confiabilidade.

Tratar sobre o cotidiano destas mulheres também nos levou a falar sobre liberdade. Liberdade para gerir o próprio tempo, e o próprio dinheiro. Liberdade de organizar o próprio cotidiano. De ir e vir, de escolher, de projetar o futuro e dar direcionamento às ações conforme as pretensões destes projetos. De tal sorte que a terceira temática das entrevistas girou em torno da compreensão sobre liberdade. Busquei compreender o que entendiam por isso, e como essa liberdade se fazia presente em suas vidas. Quais os elementos que justificavam a presença ou

ausência de liberdade no cotidiano de cada uma delas também foi uma questão que norteou minhas indagações a esse respeito.

Foi a partir de tal temática que nossas entrevistas, até então do tipo semi estruturadas, começaram a deslizar em direção às narrativas de vida. Falar sobre liberdade remeteu aquelas mulheres a momentos passados de suas vidas. Elas remontaram à infância e a adolescência, fazendo referência ao modo sob o qual foram criadas. Também se reportaram à juventude e ao início da vida adulta, narrando tanto sobre o percurso que empreenderam na conquista por liberdade, por autonomia e independência, principalmente independência econômica, quanto sobre os obstáculos que se manifestaram contra ela no curso de suas vidas. Observei que em alguma medida, todas as mulheres buscaram no passado, e na reinterpretação dele, um sentido para o presente. Ou seja, elas me deixaram perceber que suas vivências atuais eram resultado de todo um conjunto de eventos que marcaram suas vidas em momentos diferenciados. O trabalho desse modo foi orientado por uma simultaneidade de tempos, uma constante relação entre presente e passado. A partir de então um novo modo de levantar os dados foi sendo introduzido à pesquisa, as entrevistas em forma de narrativas de vida. E associado a ele fiz um redirecionamento temático, passando a focar a individualização feminina no curso da vida.

O prosseguimento da pesquisa, já com as treze interlocutoras, foi pautado sob o método biográfico. Trabalhei com relatos de vida, segundo a perspectiva de Daniel Bertaux(1997), para quem a narrativa de vida é um testemunho sobre a experiência vivida, mas é um testemunho orientado pela intenção de conhecimento do pesquisador que a recolhe e a filtra, mediante a temática explorada pela pesquisa, previamente apresentada pelo pesquisador ou intermediários na ocasião do ‘contrato’ de participação da pesquisa.

Ainda segundo Bertaux(1997) a narrativa de vida poder ser pensada em termos de uma linha de vida. Mas essa linha “não é comparável a uma reta ou a uma curva harmoniosa, como aparenta indicar frequentemente o termo trajetória. A maior parte das existências são, ao contrário, chacoalhadas à vontade das forças coletivas, que reorientam seus percursos de modo imprevisto e geralmente

incontrolável” (Bertaux,1997.p.33)26.

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Tradução minha.

Tendo em vista uma das características fundamentais das narrativas de vida, a de serem estruturadas em torno de uma sucessão temporal de eventos e situações encadeadas, como afirma Bertaux (1997), elas se constituíram para esta pesquisa como modo privilegiado de apreensão das lógicas particulares de ação desenvolvidas pelas mulheres no curso de suas vidas. Através das quais elas puderam descrever e comentar alguns eventos, justificar e analisar escolhas feitas, assim como expor suas interações sociais e de que modos elas interferem em suas experiências.

Tudo isso se processou a partir das referências sociais de cada mulher. As experiências que comigo compartilharam me serviram também de aprendizados, assim como também identificou Bosi (1994, p.85) “o narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que escutam”. Nessas narrativas ficaram evidenciadas suas origens e situações de classe, seus pertencimentos a segmentos sociais, suas definições sobre os papéis atribuídos a homens e mulheres, suas relações com outras gerações da família.