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Dona Vera “Eu tenho procurado ‘descansar no Senhor’”

Capítulo 4 – Trajetórias de vida e de individualização: entre viver para si e viver

4.2 Dona Vera “Eu tenho procurado ‘descansar no Senhor’”

Dona Vera, nasceu na cidade de João Pessoa em 1946, em um dos bairros mais tradicionais dessa cidade, o bairro de Cruz das Armas. Sua família de origem tinha fortes raízes religiosas evangélicas. Segundo seus relatos sua infância e juventude foi marcada pela dedicação aos estudos, e as práticas da igreja Presbiteriana no bairro onde ela morava e onde seu pai era Presbítero. Sua casa naquela época era utilizada como apoio da referida igreja na recepção de pastores e missionários. Segundo dona Vera, sua mãe era uma exímia dona de casa e excelente anfitriã, a família costumava conviver diariamente com pessoas envolvidas na vida religiosa da igreja.

Por incentivo de sua mãe, dona Vera se profissionalizou na carreira de professora polivalente, e aos 17 anos começou sua carreira profissional em uma das escolas particulares de João Pessoa. Após ter concluído o curso de preparação de professores, o pedagógico, dona Vera foi selecionada para prestar serviços no ensino público daquela cidade. Também atuou na secretaria de educação do Estado da Paraíba, no entanto após seu casamento, desligou-se do trabalho ali exercido devido a dificuldade de conciliar os dois empregos e a nova vida doméstica iniciada com o casamento.

Dona Vera casou-se em 1972, na Igreja Presbiteriana localizada no bairro da Torre (outro bairro tradicional da cidade). Seu esposo nesta época acabara de entrar na carreira militar. Naquele ano ambos foram morar na casa dos pais de dona Vera, localizada na Torre, tendo em vista um problema de saúde de sua mãe e a necessidade de acompanhar seu tratamento mais de perto. Após dois anos de casada dona Vera e seu esposo se mudaram para o bairro de Funcionários, um bairro popular localizado na periferia da cidade de João Pessoa. A dificuldade da vida naquele lugar estimulou o casal a mudar para um bairro mais próximo do centro. Em 1979, dona Vera e seu esposo compraram uma casa no conjunto dos militares no bairro dos Bancários onde residem até hoje.

Dona vera possui três filhos. Sua narrativa é fortemente marcada pelo duplo papel acumulado ao longo da vida: ser mãe e profissional. Ou seja, seus relatos são marcados pela habilidade em ter conciliado uma vida profissional, construída com empenho, e a vida familiar, especialmente marcada pela ausência do esposo quando de suas transferências a outras cidades do país no serviço militar.

Dona Vera aponta enfaticamente em seus relatos o privilégio dado a sua própria carreira profissional, em detrimento do não acompanhamento do esposo em sua carreira ligada ao Exército Brasileiro. Destaca também o preço por ter feito tal escolha: assumir sozinha a criação dos filhos quando pequenos e até a adolescência. Suas decisões, segundo ela, eram inúmeras vezes confrontadas com o modelo padrão de mulher de sua época, aquele voltado exclusivamente à família. Dona Vera, no auge de sua “adultez”, elaborou para si um novo modelo de mulher - influenciada por movimentos mais amplos de transformações na condição feminina, não baseado nos referenciais tradicionais de mulher mãe e dona de casa, ou nos referenciais cristãos de sua religião, segundo os quais a mulher deveria ser

submissa ao marido, assim como fora sua mãe. A elaboração de uma nova biografia

feminina para dona Vera articulava a ética tradicional de mulher cuidadora da família, com uma nova ética, aquela tão bem apresentada por Beck e Beck- Gernsheim (2003), “a ética da realização pessoal”. Isso, no entanto não ocorreu sem constrangimentos. Pelo contrário, em seus relatos também se evidenciaram auto questionamentos. Segundo ela, esse modelo de mulher independente, autônoma, e responsável pela gestão familiar, nem sempre foi visto com bons olhos por suas amigas evangélicas, o que causava mal estar nas relações com estas pessoas.

Dona Vera: Eu sempre fui a ovelha negra da igreja. O pastor sabe

disso. Mas minha fé está em Cristo e não no que as pessoas pensam de mim. Já me preocupei muito com esse povo que quer ser santo demais e recriminam as pessoas, eu não julgo ninguém e quem vai me julgar é Deus, os incomodados que se mudem.

Suas decisões também lhe exigiram criatividade e ousadia, para reordenar sua vivência, para elaborar sua própria biografia, tendo em vista suas próprias convicções e desejos pessoais, que em parte se contrapunham com os modelos por ela até então assimilados, já que fora criada dentro de padrões religiosos tradicionais com modelos e papéis femininos bem estabelecidos.

Dona Vera: Eu me questionava muito pelo fato de não ter

acompanhado meu esposo na época que ele era transferido daqui pra outra cidade. Minha mãe dizia que lugar da mulher era junto do marido. Minha fé, e os ensinamentos da palavra, dizia que o homem é o cabeça da família, e que a mulher deveria ser submissa ao marido. Tudo aquilo era muito difícil pra mim. Eu fui muitas vezes apontada como rebelde, era a “ovelha rebelde”. Naquele tempo as mulheres acompanhavam os maridos, eu, no entanto, não ia. Eu tinha meu trabalho, eu era concursada, você acha que eu ia perder meu emprego? Eu ia viver dependendo dele? Eu gostava muito do que eu fazia, eu me realizava. Não, de jeito nenhum eu escolhia ficar, assumia os meninos, e continuava trabalhando. Se eu não tivesse feito isso, como eu ia estar hoje? Nem aposentadoria eu tinha. É o que eu vejo por aí um monte de mulher dependente dos maridos, ou vivendo da pensão deles.

A trajetória profissional de dona Vera é fortemente marcada pela ascensão. Tendo iniciado sua carreira como professora polivalente, carreira mais comum entre as mulheres naquela época, dona Vera especializou-se em educação de crianças especiais, e chegou a dirigir uma das escolas do município de João Pessoa. Em seus relatos ela observa que tudo isso foi alcançado com muita dedicação e compromisso. Além disso, destaca que sua capacidade de liderança e de manter bons relacionamentos foram os elementos fundamentais para tal conquista. Dona Vera se aposentou com 49 anos de idade, no ano de 1995. Desde então se voltou com mais empenho para as atividades de casa, e para os cuidados com os netos que começaram a chegar no ano anterior.

Dona Vera ajudou a criar seus cinco netos, três de seu filho mais velho, e dois de sua filha do meio. Hoje o neto mais novo de dona Vera encontra-se com 8 anos e a mais velha com 17 anos. Desde que saíram de casa os filhos de dona Vera, procuraram morar próximo a ela, tendo em vista que sempre contaram e contam atualmente com a participação dela na administração de suas vidas familiares. Dona Vera é responsável pelo transporte dos netos, para o colégio, para os cursos de inglês, para as atividades esportivas, e para outros eventuais compromissos como as idas a médicos e dentistas. Essas são as principais atividades de seu cotidiano. Dona Vera é a de ‘cuidadora’ dos netos, segundo suas narrativas, e isso lhe deixa profundamente satisfeita, pois é o que lhe mantêm ativa e significativa socialmente em meio a família e aos seus grupos de referência.

Dona Vera: As vezes eu tô em casa, sem nada pra fazer, sozinha, aí

minha neta liga: Vó me deixa no Basquete. Em cinco minutos eu chego na casa dela e vou com ela. Fico por lá pelo colégio, vou três vezes por semana, conheço as mães de suas colegas a gente fica batendo papo, é uma distração pra mim. O pessoal do colégio já me conhece. O treinador queria até me levar uma vez pra umas das viagens das meninas, quando elas iam jogar, porque eu ia cuidando de todas elas. todas elas gostam de mim, me chama de vó também. Pra mim é bom demais, me tira de casa, me mantêm ocupada.

Tais atividades ocorrem durante todos os dias da semana, e nos três turnos, no entanto tudo se concentra no bairro de Bancários, o que contribui para que dona Vera também possa realizar suas próprias atividades domésticas e pessoais. Assim como participar das reuniões e eventos da igreja evangélica que frequenta, próxima a sua casa. E realizar ainda que esporadicamente atividades físicas na Praça da Paz. Ou simplesmente conversar com suas vizinhas, hábito cotidiano desta senhora.

A vida matrimonial de dona Vera, segundo ela, mudou significativamente com a aposentadoria precoce de seu esposo. Aos 45 anos ele resolveu se aposentar, e voltar para casa definitivamente. No entanto a ociosidade, segundo dona Vera, o levou ao alcoolismo. Desde 1986 dona Vera passou a lidar com o cotidiano da bebida do marido. Tal temática foi abordada por ela de forma constrangedora e se revelou como forte elemento de sofrimento em sua vida.

Especialmente com o avanço da idade e com as complicações de saúde que ele tem atravessado nos últimos anos.

Em seus relatos dona Vera deixa entender que a fé lhe auxilia a desenvolver uma espécie de conformismo em relação aos seus problemas familiares. Como pode ser verificado no trecho a seguir, a vida religiosa, segundo esta senhora, tem sido uma prática que tem lhe auxiliado na transformação de suas formas de pensar e de comportar-se.

Dona Vera: Eu antes sofria muito com a bebida dele, mas eu tenho

procurado “descansar no Senhor”, eu não posso lutar contra isso, eu já briguei muito, já fiz de tudo pra ele parar de beber, mas ele não quer. Eu já disse a ele que ele ia morrer desse jeito. A única coisa que eu faço agora é orar. Entreguei a Deus, o problema não é mais meu, é dele e de Deus. Você veja, Cristiane, na época que ele enfartou eu não dormia, vivia assustada, com medo que ele amanhecesse morto. Sofri muito. Mas depois eu comecei a ver que quem estava se acabando era eu. Eu estava com problema de pressão, tinha dores de cabeça, todos os dias, devido ao estresse que eu ficava. Minha filha sempre dizia: mainha deixe painho viver a vida dele. Eu não era assim não eu me preocupava muito, ainda me preocupo, também você viver quarenta anos com uma pessoa, você não quer que ele se acabe assim, não é? Mas agora, eu diminuí, agora eu preciso é me preocupar comigo também, preciso me cuidar, fazer meus exames, eu me cuido muito, e outra coisa que eu faço, como sem falta, eu vou pro culto de oração, eu entrego a Deus, toda semana, Deus resolve isso, porque eu não vou me acabar junto com ele não! Já estou ficando velha, preciso me preservar desse tipo de coisa, cada idade da gente nos permite uma coisa, por exemplo, hoje eu estou numa idade de quê? De descansar, de passear, de fazer tudo de bom, de ter uma vida tranquila, hoje eu quero sossego. A fase de me preocupar já passou, quando eu tinha obrigação com os meninos, com as coisas da casa, com trabalho, agora é aproveitar o lucro de tudo o que eu já batalhei, aí, vou me ocupar com bebedeira de marido? Vou não minha filha!

Atualmente dona Vera realiza-se voltando-se para a família e para as sociabilidades em torno dela, desejo que ao longo de sua trajetória não foi possível de se concretizar devido as atividades de trabalho que ocupava seu dia a dia. No entanto, ainda que esse apoio à família tenha lugar central na vida de dona Vera, alguns momentos especiais para ela, como em viagens e festas com amigos ou familiares mais distantes são frequentemente privilegiados.

É interessante notar ainda em seus relatos as aplicações que a fé toma em suas vivências. Na expressão: “Deus resolve isso porque eu não vou me acabar

junto com ele” dona Vera manifesta uma postura na qual a fé e a prática religiosa são tomadas não somente como refúgio, mas principalmente como instrumento de auto preservação.

Atualmente dona Vera cuida de sua saúde com bastante rigor, frequenta médico geriatra regularmente, assim como consulta nutricionista e cardiologista. Diz seguir seus conselhos alimentícios recomendados. Possuindo plano de saúde oferecido pelo ministério do Exército, como dependente de seu esposo, dona Vera faz acompanhamentos médicos pelo menos duas vezes ao ano. Sente-se bem para sua idade. Compara-se com conhecidas suas e conclui ter mais saúde e estar mais em forma do que outras pessoas mais novas que ela. Cuida da pele, na tentativa da manutenção de uma aparência mais jovial, usando cremes dermatológicos manipulados. Diz que reserva parte de seus rendimentos para a compra de tais produtos, segundo ela, “caríssimos”. Ao mesmo tempo em que demonstra se mobilizar para assimilar cuidados e manter práticas e hábitos apontados pelo saber médico, dona Vera também realça algumas práticas terapêuticas associadas aos costumes, referendando em suas narrativas lógicas que escapam a racionalidade médica, apontando com isso valores assimilados culturalmente em sua trajetória. A exemplo disso destaco o trecho:

Dona Vera: Mãe sempre dizia que banho de colônia ajudava a

respirar melhor, desde pequena que eu tomo quase todo dia um banho de colônia, agora tem que ser antes da seis da manhã, porque senão, não faz efeito. Fervo as folhas e tomo com água morna numa bacia, minha dor de cabeça passa na hora. Tudo por conta da minha sinusite, a colônia me ajudar a respirar e a dor passa.

Suas narrativas sobre os aprendizados terapêuticos mostram que ainda que haja credibilidade na medicina e que as orientações médicas sejam seguidas, permanece “a autoridade das expectativas baseadas no costume”. (THOMPSON, 1998, p. 22,23).

A finitude da vida também aparece em suas narrativas como algo que parece ser encarado com uma certa naturalidade, conforme seu referencial religioso, o qual parece contribuir para uma aceitação quase que pacífica do declínio corporal, mas mesmo assim, ainda com a ideia presente de que é preciso continuar lutando para sua manutenção mais saudável possível. “Mesmo estando velha, a gente não pode se entregar, quero estar bem velhinha mesmo quando minha hora chegar”.

4.3 Rita - “Eu não fui criada para me separar, mas hoje eu vejo o lado bom da