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A violência policial sob a ótica da psicologia psicodinâmica

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2. A AGRESSIVIDADE PRESENTE NO TRABALHO POLICIAL

2.2 A violência policial sob a ótica da psicologia psicodinâmica

Para Zacharias (1994), a violência policial está articulada a um processo que abrange desde a frustração frente à carreira até as características próprias da

personalidade autoritária descrita por Adorno (apud ZACHARIAS, 1994). Esse tipo de personalidade, que se caracteriza pela deferência para com os superiores e rigor para com os subordinados, parece estar muito presente nos quadros policiais. Segundo o autor, como há certa frustração nos valores terminais dos policiais militares, decorrente da falta de realização profissional e como há compreensão dos valores instrumentais – disciplina, hierarquia, dedicação e eficiência – há uma tendência de o policial dirigir a agressividade gerada para outro foco que não a própria Instituição. Dessa forma, a agressividade será dirigida a grupos, não de forma aleatória, mas até certo ponto de forma indicada, recaindo sobre eles o preconceito e a opressão.

Para o autor, o perfil do policial militar parece confirmar a existência, em parte do grupo, da Síndrome de John Wayne, descrita por Lidgard e Bates (1989 apud ZACHARIAS, 1994) que, basicamente, consiste em negar valores pessoais, em especial, aqueles ligados a relacionamento interpessoal e os comunitários e dirigir a agressividade a grupos pré-determinados. O ponto central da síndrome é a dicotomia bem e mal, havendo a necessidade de destruição do mal para que o bem prevaleça, modificando-se, dessa forma, toda a percepção do mundo. O rigor da lei deve estar sempre acima dos homens e das circunstâncias presentes. Conforme descreve o autor:

Sem dúvida, John Wayne incorpora a figura arquetípica do herói, aquele que, do lado da lei, cumpre a determinação de deter o mal e impor a ordem social, recebendo a admiração da população. Porém age com um sentido superior à aprovação social, pois nunca permanece no lugar onde realizou o ato heróico, nunca recebe os louros da vitória, exceto a satisfação da missão cumprida (ZACHARIAS, 1994, p.199).

Em outras palavras, a Síndrome de John Wayne representa a utilização de mecanismos de defesa, especialmente o deslocamento e a racionalização para legitimar a conduta agressiva, acima da lei e sem possibilidades de controle efetivo.

Allegretti (1996) sustenta que a agressividade empregada com finalidade destrutiva no trabalho policial e que aparece sem estar, à primeira vista, relacionada

a uma eventual pressão exercida por esse trabalho, pode estar vinculada a dois fatores:

1. Falha dos mecanismos inibitórios do superego; e

2. Existência de senso moral próprio divergente da moral dominante. No primeiro caso, o que existe é a ineficácia dos mecanismos inibitórios do superego, diante de uma situação real que estimule as pulsões agressivas do policial. Nesse contexto, a expansão da agressividade violenta decorre da ansiedade gerada pela situação que acaba por acentuá-la, na forma proposta por Klein (1970).

No segundo caso, a agressividade se manifesta com características destrutivas por conta da desconfiguração de alguns valores fundamentais, como vida e dignidade humana, permitindo a formação de senso moral particular, divergente da moral dominante. Valores familiares frágeis são ainda mais devastados com os efeitos das tragédias do dia-a-dia. A morte, assim como a vida, é banalizada. O policial traz essa lógica do meio social de onde provém e a implanta no trabalho policial que, em indesejável efeito perverso, pode, inclusive, ajudar a solidificá-la e potencializar os seus efeitos.

Muito próximos desse segundo caso, aparecem os quadros de dessensibilização, em que a violência é empregada sem que desperte sentimentos com relação a seus resultados. O termo alexitimia tem sido empregado para indicar o afastamento da pessoa dos próprios sentimentos, uma espécie de embotamento afetivo, em que a esfera do pensamento, decisão e ação do indivíduo se encontra totalmente separada da esfera dos sentimentos e emoções (SILVA, 1995).

O que se poderia perguntar é se a Instituição Policial, que tem como valores fundamentais o respeito à vida, à integridade física e à dignidade da pessoa, não conseguiria, através da transmissão desses valores aos novos policiais, evitar a manifestação da agressividade violenta. Na verdade, esse movimento é muito difícil de ser feito, porque, em razão da diferença entre valores pessoais e valores institucionais, nasce o que Dejours (1988) denominou de ideologia defensiva. Para ele, o choque entre uma história individual, portadora de projetos, esperanças e desejo e uma organização do trabalho que não permite a realização desses projetos pode determinar impacto no aparelho psíquico.

A ideologia defensiva seria, portanto, um mecanismo particular de defesa contra as diferenças entre as aspirações profissionais e as condições de trabalho encontradas.

Transportado o conceito para a realidade da Polícia Militar, a ideologia defensiva aparece não apenas como diferença entre aspiração individual e estrutura organizacional, mas, acima de tudo, como divergência de valores, levando muitos policiais a se ocultar de maneira radical, para poder agir segundo seus valores pessoais. E se esses valores pessoais forem socialmente inadequados, as manifestações agressivas de caráter destrutivo podem se manifestar com alguma freqüência no trabalho policial. Além disso, o próprio grupo desempenha papel importante nesse processo, pois, segundo Dejours (1988), a ideologia defensiva para ser operatória deve obter a participação de todos e aquele que não participa, cedo ou tarde, acaba sendo discriminado pelo grupo.

Assim, a utilização de agressividade exagerada no trabalho policial, dentro do aspecto coletivo da ideologia defensiva passa pela aprovação de um significativo número de integrantes que possui valores pessoais próximos entre si. Com essa aprovação, não resta nenhum tipo de angústia pessoal posterior a uma ação violenta, sendo esta considerada um resultado natural do trabalho policial.

Uma outra forma de pensar a agressividade exagerada no trabalho policial é considerar a possibilidade de existência de um falso-self entre os policiais que participam de ações violentas. Retomando o pensamento de Winnicott (2000), deve- se considerar o falso-self como uma das organizações defensivas mais bem sucedidas e que tem por finalidade proteger o verdadeiro self da falha ambiental, que resulta em processo de de-privação com conseqüente congelamento dessa falha, na esperança de tê-la corrigida futuramente. Se o ambiente não é suficientemente bom para permitir a construção do verdadeiro self, o indivíduo reage a essa intromissão ambiental e os processos de construção do eu são interrompidos. Com isso, surge o falso-self, construído a partir de uma submissão defensiva como reação à intrusão. Esse processo pode dar início ao ciclo de tendência anti-social que, segundo Winnicott (2000), implica em esperança de recuperar o que lhe foi retirado precocemente na primeira infância, ainda que por vias transgressivas. O roubo – ou furto – caracteriza bem esse processo, em que a criança não está em busca do objeto roubado – ou furtado – mas está atrás da mãe, sobre a qual ela pensa ter direitos, já que, na sua vivência imaginária, existe a crença de que a mãe foi criada por ela e não o contrário.

Já a destrutividade caracteriza processo em que o principal fundamento é a falha ambiental decorrente da atitude paterna, no estágio de dependência relativa.

A figura do pai, encarregada de dar a moldura em meio a qual a criança vai operar a sua agressividade, falha nesse propósito, não estabelecendo limites definidos, o que leva o indivíduo, em todo o seu desenvolvimento emocional, a procurar esses limites no ambiente.

É possível pensar na existência dessa falha ambiental naqueles que procuram a carreira policial, como forma de operar o falso-self e toda a sua destrutividade de forma dissimulada, pelo pressuposto da legitimidade de sua ação violenta. Para Winnicott (1987), os agentes de contenção devem estabelecer as bases para um tratamento humano do infrator, não deixando que o crime produza sentimentos de vingança pública em termos de sentimentalismo, o que poderia ser perigoso por colocar em evidência o ódio. O policial que opera com um falso-self, em que as características de destrutividade estão presentes, pode permitir a eclosão do ódio como um pseudo-sentimento de vingança pública, mas que, em verdade, serve apenas para permitir a expansão de tendência que lhe é inerente.

Belmont (2000), ao tratar do falso-self e violência, assegura que uma polícia verdadeiro self é aquela em que a agressividade é usada de forma controlada para conter a violência e o crime, enquanto um agente da lei falso-self é aquele que está submetido à violência do ambiente, transformando-se ele mesmo em agente do crime.

3. A IMPLANTAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE UM PROGRAMA

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