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Perturbações nos povos relacionadas com a pastoral

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 75-79)

DA EXPECTATIVA BENEVOLENTE AO EPISÓDIO DA PASTORAL

4. Perturbações nos povos relacionadas com a pastoral

Talvez as autoridades civis tenham exagerado nos seus receios. Possivelmente, se não se levantasse tanta celeuma e a pastoral fosse lida com inteira liberdade, não teria originado uma sensível reacção por parte das populações. Como exemplo desta afirmação, pode apontar-se o processo levantado ao Pe. João Barata dos Reis, pároco de Lousa, freguesia do concelho de Castelo Branco. Acusado de desobedi- ência à autoridade, uma das testemunhas interrogadas declarou não saber do que tratava a pastoral pela pouca atenção que lhe prestara. Um outro declarou não ter ouvido a leitura, porque o padre tinha a voz fraca116.

Assim, mesmo considerando a eventualidade de essas testemunhas terem fugido a prestar declarações embaraçosas para o pároco, provavelmente teria razão

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M. Abúndio da Silva, Cartas a um Abade, cit., p. 254.

113 O Dia, nº 26, 4/03/1911, p. 1, col. 3. 114 Eurico de Seabra, ob. cit., p. 1116. 115 O Dia, nº 64, 20/04/1911, p. 1, col. 1.

116 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Ministério da Justiça, M. 133, cx. 227. Em futuras refe-

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o articulista de O Dia, opinando que não valia a pena o governo ter dado “tantas honras” à pastoral, um texto “mais cheio de efeitos literários do que fértil em conclusões combativas”, dificilmente compreensível para a maioria dos fiéis e até “pouco acessível aos espíritos dos nossos curas”117.

Toda esta aventura, apesar de, aparentemente, ter terminado com a vitória das hostes governamentais onde se gerou um clima de euforia, acarretou ressentimen- tos e uma certa perturbação em muitas paróquias. Os padres que desobedeceram às ordens governamentais sofreram grandes dissabores. O de Lousa, referido acima, tomara a iniciativa de participar ao administrador que tinha lido a pas- toral. Conforme ele próprio declarou, com a sua participação não fazia “gala” de desobediência. Porém, devido a um incidente ocorrido durante a missa, ele estava certo que o administrador tinha conhecimento – ou iria ter – do que se passara. Na ocasião em que procedia à leitura, o regedor interrompera-o para lhe pergun- tar se não tinha recebido o ofício da administração. Mas o padre entendera que devia continuar a leitura, pois que, conforme declarou, embora aconselhasse aos paroquianos a obediência à República, neste caso não podia ir de encontro à sua consciência de cristão e sacerdote118. Alguns sacerdotes, mais exaltados ou menos

conscientes das circunstâncias em que viviam, consideraram a ocasião oportuna para mostrarem a sua altivez frente ao Estado. O pároco de Paião, no concelho da Figueira da Foz, depois de ter lido uma parte do documento, informou, “em altas vozes”, que tinha recebido um ofício do administrador concelhio intimando-o a não fazer a leitura. Ele, porém, só recebia ordens do seu prelado e, por isso, continuaria a leitura no domingo seguinte119.

No auto de investigação a que foi sujeito o padre de Ataíde, freguesia do concelho de Amarante, o incriminado declarou que, verificando-se um conflito entre o poder civil e o poder eclesiástico, havia optado por este, apesar do respeito que sentia por aquele e pela sua autoridade. Declarou ainda que, se o bispo lhe ordenasse que continuasse com a leitura nos domingos seguintes, obedecer-lhe-ia “cegamente”120.

Actos destes, reveladores de alguma coragem e coerência, mostram como diversos párocos estavam dispostos a sacrifícios em nome da obediência e da dis- ciplina. No concelho de Felgueiras, o administrador, que informara o seu superior sobre a detenção de catorze padres que haviam lido a pastoral, acrescentou-lhe depois mais um, o da freguesia de Rande. Este não se limitara à leitura. Provavel- mente porque previa as consequências do seu acto, despediu-se dos paroquia- nos – de uma forma que o administrador classificou de “pouco correcta”. Chegou

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O Dia, nº 27, 6/03/1911, p. 1, col. 1.

118 ANTT, Min. Justiça, M. 133, cx. 227.

119 Arquivo Municipal da Figueira de Foz, Copiador da Correspondência para o Governo Civil, L. nº 11, fls. 308. 120 Arquivo Distrital do Porto, Correspondência recebida pelo Governo Civil, M. 873.

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a verificar-se um “princípio de sublevação”, quando foi intimado a comparecer perante o administrador121.

Embora os casos de desobediência à autoridade civil tivessem sido mais numerosos no norte – a diocese do Porto esteve na vanguarda das ocorrências –, igualmente no sul se verificaram comportamentos semelhantes por parte do clero. Aliás, nem era preciso fazer a leitura para ser envolvido. O pároco de Santa Maria, em Tavira, foi preso logo depois da missa, apesar de ter acatado a ordem dada – embora de uma forma que não agradou aos adversários. Tendo iniciado a leitura no domingo anterior, ao ser intimado pelo administrador a interromper, decidiu obedecer. Contudo, na missa do domingo seguinte referiu-se à proibição que lhe fora feita, tecendo algumas considerações sobre o assunto. Um dos presentes não concordou com o que ouvia e, em pleno templo, intimou-o a não prosseguir. Terminada a missa, o mesmo militante deu voz de prisão ao padre, conduzindo-o até ao administrador. A iniciativa deste republicano foi muito elogiada. Segundo o redactor do Província do Algarve – que entendeu que o pároco estava a transformar a missa num comício –, actos destes, em que civis davam voz de prisão a um padre, eram vulgares em outras regiões. No Algarve é que ainda não se verificara um caso semelhante: alguém ter tido coragem suficiente para obstar à “propaganda dos reverendos”122.

Tendo em atenção, pelos exemplos apresentados, que alguns elementos do clero não ficaram paralisados pelo receio de arcar com as consequências possíveis da desobediência ao poder político, é sabido que a maioria dos padres obede- ceu à autoridade civil. Seria – como acusava um leitor do jornal O Dia – pelo medo de perder “os víveres” que a República prometia ao clero na futura Lei da Separação? Seria pelo receio de perseguições? Seja qual for a resposta, há que ter em conta que o acatar da proibição em nada prova que estivessem de acordo com essa intromissão do poder civil. Colocados entre ordens antagónicas, o medo ditou a actuação. Mas ficaram sentimentos de vergonha e ressentimento contra um poder que, tendo surgido com promessas de liberdade, os forçava a seguir por um caminho que feria a dignidade individual. Mesmo os leigos entendiam isso, até os que haviam recebido o novo regime com entusiasmo. No concelho de Freixo de Espada à Cinta foi levada a efeito uma investigação crime contra um homem que, apesar de conhecido como grande defensor da República, declarara, num grupo de amigos, que o pároco deveria ter lido a pastoral, não reconhecendo à junta de paróquia competência para impedir. Uma das testemunhas ouvidas no processo declarou ter o padre afirmado que, se não tivesse mãe e uma irmã, não teria dúvida em fazer a leitura. Uma outra testemunha afirmou mesmo ter-se

121 Idem, M. 872.

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comentado desfavoravelmente a atitude dos bispos em terem enviado a pastoral. Entendia-se que os párocos não tinham qualquer responsabilidade, mas sobre eles recairiam as consequências123.

Este episódio é exemplar, revelando como o assunto era tratado nas conversas de rua e o que sobre o mesmo pensava o cidadão comum. Porém, nem sempre o tema da pastoral se ficava pelas conversas entre amigos. Em algumas localidades, as populações, ao som dos sinos que tocavam a rebate, ergueram-se em auxílio dos seus párocos, conduzidos à prisão por terem desobedecido às autoridades, ao fazerem a leitura da pastoral124.

Os círculos governamentais, satisfeitos com a vitória, tentaram justificar os actos de violência cometidos contra alguns membros do clero, à frente dos quais se encontrava o bispo do Porto – o bispo mais prestigiado de todo o episcopado português – fazendo propalar a ideia de que os prelados haviam tentado, sem êxito, um levantamento popular contra as instituições. Como não convinha manter um grande conflito com o baixo clero, o que teria repercussões no seio dos povos, o governo procurou resolver o problema. Em conselho de ministros foi decidido amnistiar os padres que continuavam presos. Num semanário de Aveiro, comen- tando o perdão concedido ao clero que, por “medo ou ignorância”, não acatara “as ordens do poder civil, seu legítimo patrão”, dizia-se que não ficava mal um gesto de clemência, “mas só por esta vez”125.

Foi naturalmente uma derrota para a Igreja. Mas alargou o fosso entre a República e muitos clérigos e leigos. Um grande número de padres liberais ia compreendendo que o novo regime lhes negava o mínimo dessa liberdade tão profusamente prometida, no passado, pela propaganda republicana.

Poder-se-á estranhar a ausência de estratégias de atracção, por parte do governo, relativamente a um grupo social que, pelo seu contacto directo com as populações, tanta importância assumia. Entendendo, porém, que essa classe estava somente interessada no aspecto material do modo de vida que escolhera, os responsáveis governamentais imaginariam que, com promessas de uma lei onde fossem assegurados esses interesses ou com ameaças de sanções no caso de não acatamento das directrizes do poder político, manteriam a maioria do clero submissa e, mesmo, disposta a utilizar a sua influência no sentido de dissuadir os fiéis de qualquer veleidade de revolta.

123 Arquivo Distrital de Bragança, Governo Civil, Correspondência Interna, cx. 0055. 124 Estas revoltas populares serão tratadas no Capítulo VI.

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No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 75-79)