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A rejeição das pensões

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 178-182)

PADRES PENSIONISTAS E PADRES NÃO PENSIONISTAS

1. A rejeição das pensões

Possivelmente o desejo de que um número elevado de párocos aceitasse o subsídio do governo conduziu a alguma ligeireza na publicação, em Diário do

Governo, de nomes de padres que não haviam manifestado vontade de a receber.

Essa circunstância podia trazer dissabores às vítimas do equívoco, que procuravam publicamente negar qualquer envolvimento com pensões.

Nas listas de padres pensionistas que iam saindo na folha oficial havia nomes de eclesiásticos que declararam não ter solicitado a pensão. Alguns deles, ao serem informados que os seus nomes constavam no rol, encararam isso como uma afronta e uma desonra. Os jornais católicos traziam declarações categóricas de clérigos que afirmavam estar ao lado dos bispos e ter recusado a pensão.

Na publicação desses nomes pode não ter existido má fé. Ou talvez a má fé tenha começado antes, na elaboração da própria lei. É que o processo de atri- buição de pensões era susceptível de originar situações de confusão. No caso dos padres colados, não era necessário requerer a subvenção, visto que ela constituía um direito. Conforme determinava o art. 120.º da Lei da Separação, cada um deveria responder a um questionário, enviado pela comissão de pensões ecle- siásticas do seu distrito, contendo todas as circunstâncias julgadas necessárias para ser fixado equitativamente o valor de cada pensão. Quanto aos padres na situação de apresentados, encomendados e coadjutores, o processo era diferente, determinado pelo art. 116.º. Neste caso, teria de ser requerida até ao dia 30 de Junho de 1911. Aqueles que tinham direito à pensão, mas não desejavam recebê- -la, eram obrigados a fazer um requerimento em papel selado, com assinatura devidamente reconhecida, para cumprirem o estabelecido no art. 115.º. Um processo demasiado burocratizado para rejeitar algo que não se tinha pedido. Dir-se-ia que o legislador esperava apanhar os distraídos, forçando-os a receber o presente governamental.

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Certamente, numa manifestação de desprezo pela benesse que lhe era oferecida e que considerava ofensiva, um elevado número de párocos colados não respon- deu ao questionário enviado nem exprimiu a sua recusa da maneira estabelecida. Talvez essa atitude não tivesse sido considerada como renúncia. Por isso, muitos dos nomes daqueles que não responderam apareciam nas relações publicadas no

Diário do Governo. Foi essa a explicação encontrada pelo periódico Echos do Minho

para justificar a presença de nomes de padres que, ao tomarem conhecimento que constavam da lista, fizeram ouvir o seu protesto3.

Porém, o facto de ter respondido ao questionário não garantia maior tranqui- lidade. O pároco da freguesia de S. Julião de Passos, do concelho de Braga, declarou que esteve indeciso sobre se devia ou não responder ao questionário que lhe foi enviado. Alguém o aconselhou a responder, argumentando que poderia ser pro- cessado por desobediência, se não o fizesse. Respondeu, portanto, tendo declarado recusar. Contudo, propalou-se que tinha aceite4. O prior de Azambuja devolveu o

questionário em branco, com nota de renúncia. De nada valeu, pois que, segundo escrevia o próprio, “aqueles senhores (por muito dó que têm da classe), não se importaram com a [...] declaração”, tendo-o colocado na lista dos pensionistas5.

Também o padre Acácio Barbosa, cujo nome aparecia na lista publicada no Diário

do Governo, enviou para O Poveiro um esclarecimento, afirmando ter renunciado

à pensão6.

O padre Silvestre Gonçalves, pároco de Campo Grande em Lisboa, resolveu tomar precauções, antes que o seu nome aparecesse como tendo aceite. Deu publi- cidade à carta enviada ao presidente da Comissão de Pensões Eclesiásticas do distrito

de Lisboa, exprimindo a sua surpresa por ter recebido daquela entidade um ofício,

através do qual era comunicado que ia ser feito o julgamento do seu processo, para poder receber a pensão. Ora este eclesiástico havia enviado um requerimento em que, embora renunciando à pensão, declarava não renunciar aos emolumentos e benesses que, por “costume ou lei” de direito lhe pertenciam, como padre colado da sua igreja, da qual tomara posse legal e pagara os respectivos direitos de mercê e encarte. A terminar a carta ao presidente da comissão, rogou que lhe fosse poupado o desgosto, sofrido por muitos colegas seus, de ver o seu nome incluído no número dos que aceitavam a pensão, apesar da recusa 7.

Se, com os párocos colados, houve tantas confusões, seria de esperar que, quanto aos encomendados, cujo direito à pensão exigia um requerimento prévio,

3

Echos do Minho, Ano II, nº 80, 15/10/1911, p. 2, col. 1. A lista dos padres cujos nomes apareceram no

Diário do Governo foi publicada por Vítor Neto, “A Questão Religiosa...”, cit.

4 Echos do Minho, nº 80, 15/10/1911, p. 1, col. 4. A lista de pensionistas referida (apresentada por Vítor

Neto) contém o nome do pároco de S. Julião de Passos.

5 Ibidem, nº 89, 16/11/1911, p. 2, col. 2. 6 O Poveiro, Ano II, nº 67, 3/11/1911, p. 4, col. 3. 7 Echos do Minho, Ano II, nº 104, 11/01/1912, p. 2, col. 4.

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tudo decorresse sem incidentes. Mas não foi assim. Sete presbíteros de Arouca surpreenderam-se ao saber que os seus nomes faziam parte da famigerada lista pois que, sendo encomendados, devia ser-lhes atribuída a pensão somente no caso de a terem pedido, o que afirmavam não ter feito8.

Dá a impressão que as comissões distritais de pensões se aproveitavam de qualquer distracção ou de qualquer ponto que inspirasse dúvidas para inscrever mais um pensionista. O acontecido com o padre António Ferreira da Motta, da freguesia de Alcabideche, que expressamente declarou não poder aceitar “por motivos de consciência”, é um caso exemplar. A comissão não teve em conta a rejeição, considerando que o mesmo renunciara no prazo devido, mas não em forma devida9.

Uma verdadeira guerra de números se iniciou. Aos apoiantes do governo – entre os quais consideramos os próprios pensionistas –, embora não podendo negar que a maioria dos párocos recusara, interessava mostrar que um número considerável de presbíteros, que devia ser tido em consideração pelos chefes da Igreja, havia aceite a pensão. Os defensores da Igreja esforçavam-se por desvalori- zar o peso dos “traidores”. Enquanto os primeiros apontavam para cerca de oito- centos10, alguns órgãos da Igreja calculavam que seriam cerca de quatrocentos11. Uma carta do secretário da nunciatura, Mons. Masella, dirigida ao arcebispo de Évora, aponta para trezentos e cinquenta12.

Seja qual for o número exacto, uma coisa é certa: não podia deixar satisfeitos aqueles que esperavam ter um capital de pensionistas, prontos a canalizar o seu fer- vor para a causa republicana. Em Portugal existiam 3921 freguesias, mas o número total de ministros da Igreja Católica era muito superior, chegando aos 595313.

8

A Verdade (S. Pedro do Sul), Ano II, nº 27, 28/01/1912, p. 2, col. 5.

9

ANTT, Min. da Justiça, M 114, macete 1, caixa 196. Se alguns padres ficaram magoados por aparecerem entre os pensionistas, houve casos de presbíteros que, depois de terem recusado, repensaram e receberam a pensão. Um jornal católico referiu-se a cerca de dez padres, pertencentes a oito concelhos do sul do país, que seguiram esse caminho. Cf. Echos do Minho, nº 73, 21/09/1911, p. 1, col. 1. Este exemplo pode mostrar-nos a luta que se travava no espírito dos clérigos.

10

Vítor Neto, pelos nomes publicados no Diário do Governo, contou 766 pensionistas. Cf. V. Neto, “A Questão Religiosa...”, cit., p. 693. A 28 de Novembro de 1912, o ministro da Justiça informava o ministério dos Negócios Estrangeiros – correspondendo a um pedido feito pela legação portuguesa em Roma – que o número de ministros da religião católica a receber pensão ascendia a 791. Cf. Arquivo Histórico Diplomático,

Relações Diplomáticas com a Santa Sé..., cit., M 329, A 11. Num discurso parlamentar, em 19 de Março de

1914, Afonso Costa afirmou que a pensão fora requerida por 700 padres e 400 serventuários. Veja-se Afonso Costa, Discursos Parlamentares 1914-1926, Amadora, Livraria Bertrand, 1977, p. 54.

11 A Guarda, Ano VIII, nº 362, 22/09/1912, p. 1, col. 3.

12 Destes 350, um grande número – 114 – eram das dioceses de Évora e Beja. Cf. Chantre Jerónimo de

Alcântara Guerreiro, ob. cit., p. 29. Mas a imprensa oficiosa do Vaticano apontava para um número ainda mais baixo – 200. Veja-se Echos do Minho, Ano II, nº 195, 24/11/1912, p. 2, col. 2.

13 Segundo o Relatório da Comissão Central da Execução da Lei da Separação do Estado das Igrejas desde a

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Possivelmente na intenção de fazer subir o número de pensionistas, os agentes governamentais confundiam o direito à aposentação – que já existia muito antes do 5 de Outubro – com a pensão concedida pela República. Um padre, muito magoado por fazer parte da odiosa lista – como ele a considerava –, declarou ter renunciado à pensão. Contudo, na resposta ao questionário, declarara que aceitava a aposentação a que se julgava com direito – o que, como já foi visto, não tinha a ver com a pensão –, pois contava setenta e seis anos, tendo quarenta e seis como pároco, com as quotas para a caixa de aposentações em dia14. O padre Eduardo

Ribeiro Cabral, pároco colado na freguesia do Santíssimo Sacramento de Jesus, em Lisboa, tendo recusado a pensão, mostrou-se irritado com a confusão estabelecida pelo governo que pretendia meter no mesmo saco a pensão da República, apresen- tada como um favor do governo, com o direito à aposentação que ele tinha, com quase setenta anos de idade e mais de quarenta de serviço15.

Embora a recusa dos padres tivesse desiludido e, mesmo, irritado os sectores mais radicais, alguns republicanos mostraram compreender esse procedimento. No Pátria Nova, de Bragança, escrevia-se que a maioria desses padres era digna de consideração, pois que, sobre a sua consciência, “bem ou mal informada”, não pre- valecera a razão do interesse. Acrescentava-se, porém, que a recusa de alguns não era motivada por espírito religioso, mas por pensarem que, por meio da “parede”, obrigariam os poderes públicos a capitular16.

Não se pode pensar, como alguma imprensa republicana, que se apressou a colar aos não pensionistas o rótulo de reaccionários, que padres “liberais” eram só os que tinham aceite a pensão. Será difícil imaginar os momentos vividos por muitos sacerdotes, de reflexão e angústia, entre a certeza de ter assegurada a sobrevivência quotidiana e a censura, carregada de desprezo, de superiores e amigos17. Muitos

padres, que passavam por apoiantes da República e da Lei da Separação, não quiseram aceitar as dádivas do Governo. Certamente, num grande número de casos, o temor de perder a amizade dos colegas e incorrer no desagrado dos superiores pesou na decisão. Nesse sentido, alguns declararam ter recusado a pensão por “camaradagem”. Um padre, a quem O Mundo se referiu como “um padre patriota e digno”, não aceitou a gratificação, “não por qualquer intuito de hostilidade às leis do Estado”, mas por “um bocadinho de escrúpulo de consciência” e de solidariedade para com a sua classe18.

padres, que não exerciam funções como párocos, receberam pensões. Como exemplo, podemos apresentar os numerosos beneficiados da Sé Patriarcal de Lisboa.

14

Echos do Minho, nº 88, 12/11/1911, p. 2.

15

O Dia, nº 152, 6/01/1912, p. 2, col. 2.

16 Pátria Nova, Ano III, nº 143, 22/07/1911, p. 1, col. 1-3.

17 O Comércio de Viseu, em 11/06/1911, p. 1, col. 2, referia-se à crise que atravessava o clero e à luta que se

travava no espírito dos padres.

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Contudo, este modo de apresentar desculpa, querendo ficar de bem com todos, nem sempre defendia esses eclesiásticos não pensionistas de censuras vindas de padres “fiéis” mais radicais, que consideravam tais declarações como sinal de falta de carácter, cobardia e “respeito humano”. Aceitavam apenas que a recusa fosse motivada por um sentimento de “dever sagrado”19. Também, como já foi visto, não

os defendia de problemas com o lado contrário.

De um modo geral, os jornais católicos eram extremamente violentos para com os pensionistas. Um leitor do Algarve, escrevendo para O Grito do Povo, identificava os “traidores” pensionistas com os maçónicos ou carbonários. Para ele, os nove padres que haviam aceite a pensão na sua província eram “os ven∴ ir∴ da choça eclesiástica do Algarve”20. O mesmo jornal apontava os pensionistas como “os sem vergonha”.

Verdade seja que alguns padres aceitaram a dádiva do governo sem se apercebe- rem do que lhes era exigido em troca. Veriam as pensões como forma de indemniza- ção de proventos que haviam sido abolidos e compensação pelos serviços prestados ou a prestar ao Estado. Era esta a opinião do padre Guilherme Tavares, pároco no concelho de Elvas. Entendia que a atribuição de pensão aos párocos não devia ser dramatizada, pois que ela substituía simplesmente a anterior côngrua. E rematava:

“Pelo amor de Deus não façam dum caso político um caso de consciência, com os anátemas da apostasia e com os terrores do inferno”21.

Apesar de toda a severidade com que os católicos mais radicais olharam os pensionistas, pedindo para eles a excomunhão, reconhecia-se, por vezes, que o facto de receber a pensão, embora provocando estranhezas e reservas, não era acto condenável em si mesmo, atentatório do carácter sacerdotal22. Tempos depois, quando o assunto foi arrefecendo e outros problemas mais graves vieram ensom- brar o horizonte, alguns reconheceram ter havido demasiado rigor23.

No documento A «guerra religiosa» na I República (páginas 178-182)