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Abertura de Guilherme TellAbertura de Guilherme Tell

Abertura de Guilherme Tell

Abertura de Guilherme Tell

Abertura de Guilherme Tell

Situação clássica. Marido volta de viagem mais cedo do que o esperado e encontra a mulher na cama, nua sob o lençol. Estranha, porque são 4 horas da tarde. Pergunta o que ela faz na cama àquela hora.

- Enxaqueca.

Há um telefone celular sobre a mesa de cabeceira. O telefone toca. - O que é isso? - pergunta o marido.

- Acho que é a abertura de Guilherme Tell. - De quem é?

- Puccini.

- É meu. - Não é não.

A mulher estende um braço nu para pegar o telefone mas o marido a detém.

- Deixa que eu atendo.

Este é o começo da história. A abertura. A continuação você pode escolher, entre três possibilidades. A primeira:

- Alô?

- É o seu Gastão?

O marido hesita. Depois: - É.

- Ele acaba de entrar no prédio. Se manda! - Ele quem?

- Como, “ele quem”? O marido. O ... Espera um pouquinho. É o seu Gastão que está falando?

- Não, é o marido. Mas pode deixar que eu dou o recado.

Nisso o Gastão salta de dentro do armário, nu, e corre para a porta. O marido fica onde está, segurando o celular. Olha para a mulher.

- Quem era? - pergunta. - Pela bunda não deu pra ver. - Você não conhece.

- Gastão. Ele se chama Gastão? - É.

- Há quanto tempo isto vem acontecendo? - Foi a primeira vez.

- Você sabia que tinha alguém vigiando o prédio, para avisar da minha chegada?

- Pois é. Você não diz que eu sou incapaz de um pensamento seqüencial? Pois planejei tudo. Dispensei a Noemia. Montei todo o esquema. Só não deu certo porque o seu Inácio demorou para avisar.

- O seu Inácio?! - É.

- Quando a gente pensa que conhece as pessoas... - diz o marido. Está se referindo ao porteiro.

- E depois de todos os abonos de Natal!

A notícia da traição do porteiro dói mais no marido do que a traição da mulher. O que talvez explique a traição da mulher.

* *

Segunda possibilidade. Marido atende o celular que toca a abertura de Guilherme Tell.

- Alô.

- Gastão? Sônia. Beijo. Você pode trazer presunto cru? - Ahn, mmm...

- Gastão? Quem é? Quem é que está falando? Ai meu Deus! - Calma, eu...

- Onde está o Gastão? Quem é você? Por que está com o celular dele? O que aconteceu com o Gastão?

- Não aconteceu nada. Calma. Ele está aqui. Em algum lugar. - Quem é você?

- Não interessa. Um amigo. Está tudo bem com o Gastão.

- Você está me mentindo. Ele teve um acidente. Você está assaltando o Gastão!

- Não é nada disso, ele... - É seqüestro?!

- Escuta! O Gastão está bem. Você vai falar com uma pessoa que pode lhe dizer tudo sobre o Gastão. O que eles estava fazendo e onde está neste momento. Notícias frescas. Espere só um minutinho.

E o homem passa o celular para a mulher, que faz uma cara de pânico.

- O quequieu digo?

O homem senta na beira da cama e cruza as pernas. Diz: - Mal posso esperar pra ouvir.

* *

Terceira possibilidade. - Alô.

- Gastão? Sônia. - Arrã.

- Eu sei onde você está. - Arrã.

- Não tente me conversar. Eu sei. O seu Inácio, do edifício dela, me conta tudo.

- Arrã.

- Me deixa falar! Só quero dizer uma coisa. Você está ouvindo? Onde existe um homem traindo, existe uma mulher frustrada.

- Arrã.

- E onde existe uma mulher traindo, existe um corno abandonado. - Arrã.

- Quieto! E uma mulher frustrada e um corno abandonado podem se juntar, meu caro. E podem ser vingativos. Entende? Nós vamos humilhar vocês. Eu e o marido dela. Vou fazer coisas com ele que você não imagina. Só estou avisando.

- Quem era? - Era para ele. - Sei.

- O Gastão... - Sei.

- Faça-me o favor. Gastão?! - Pelo menos ele...

- E outra coisa - interrompe o marido. - Você se enganou.

- O quê?

- Guilherme Tell... - Quequitem?

- Não é Puccini. É Rossini.

Abstraindo

Abstraindo

Abstraindo

Abstraindo

- Há coisa melhor do que isto?

Os braços abertos do Fabião incluíam tudo: a mesa, os chopes, o último bolinho de bacalhau, os quatro além dele em volta da mesa, as outras pessoas em volta das outras mesas no terraço do bar, o dia que acabava, o verão que começava, a cidade, o país, o mundo inteiro naquele momento.

Como os outros só fizessem comentários neutros - “É...”, “Beleza, né?” “Podes crer...” - Fabião repetiu a pergunta.

- Não. Existe coisa melhor do que isto? Não é pergunta retórica. É enquete.

- Isto! Este momento. Nós aqui tomando este chope, neste fim de tarde. Todo mundo amigo, todo mundo se sentindo bem.

O Remi começou a dizer alguma coisa, mas o Fabião o deteve com um gesto.

- Você não vale, Remi.

O Remi era hipocondríaco. Estava sempre sentindo alguma coisa. Fabião se dirigia aos outros.

- O que que falta para este ser um momento perfeito nas nossas vidas? Hein? Hein?

O Carlos Alberto, cujo apelido era Holofote, olhou em volta. Não queria ser um estraga-prazer, mas...

- Eu estou desempregado... - Abstraindo isso - disse Fabião.

- Estou bem - reconheceu o Holofote. E depois, para não decepcionar o Fabião: - Estou ótimo.

- Então ótimo. E você, Márcio?

Márcio pensou um pouco. Depois revelou, como se fosse informação privilegiada:

- A situação do país não tá boa, viu? - Abstraindo isso.

Márcio teve que reconhecer. Não podia pensar em nada melhor do que estar ali, tomando aquele chope com os amigos, naquele momento, apesar da situação do país. Não faltava nada para o momento ser perfeito.

- Sei não - disse o Remi. - Sei não...

Já que não podia introduzir sua indiscutível gastrite, sua possível diabete e seu provável câncer na avaliação do momento, Remi decidira não ceder tão facilmente.

- Abstraindo isso.

Remi sacudiu a cabeça, fazendo nem sim nem não, querendo dizer que não estava convencido. Insistiu na rebeldia.

- O que eu ganho é uma merda.

- Se é por isso, o que eu ganho também é uma merda - disse Márcio.

- Abstraindo isso.

Remi não se entregou. Disse: - Eu vou morrer.

E antes que o Fabião impugnasse sua intervenção dizendo que não valia porque ele estava sempre à morte, Remi continuou:

- Quero dizer, nós todos vamos morrer. Este é só um breve momento no processo irreversível da nossa degradação física. Eu tenho poucos dias de vida, mas vocês todos vão morrer, mais cedo ou mais tarde. Até o Holofote, que faz exercício. É um dado que tem que ser levado em consideração.

- Abstraindo isso.

Abstraída a mortalidade comum da mesa, ninguém mais tinha argumento contra o Fabião. Até que o Sabóia, que ainda não falara, limpou a garganta e falou:

- Tem o Nada. - O quê?

- O Nada. “N” maiúsculo. - Que Nada?

- O grande vazio. Além das estrelas, além do Universo. - Isso não existe. Além das estrelas tem mais estrelas.

- Se o Universo está em expansão, tem que se expandir para algum lugar. Está se expandindo para o Nada.

Ficaram discutindo se o Infinito era alguma coisa ou era nada, ou se nada era mesmo o Nada, e se precisava ter lembrado que a Humanidade não passa de um limo passageiro numa pedra insignificante solta num espaço inexplicável num Universo absurdo, como se não bastasse o bolinho de bacalhau ser só batata. Até que o Fabião perdeu a paciência, deu um soco na mesa e gritou:

- Abstraindo o Nada!

Mas aí já era tarde, o próprio Fabião decretou que a excepcionalidade do momento tinha passado sem que ninguém a aproveitasse e, mesmo, parecia que ia chover.

Agendas

Agendas

Agendas

Agendas

Obrigado pelas agendas, gente. Não precisava tantas, mas tudo bem. Gosto de ganhar agendas. Elas trazem um ar de otimismo e confiança no futuro. E de certeza implícita que eu vou estar vivo e ativo pelo menos durante mais um ano e um mês, já que todas incluem janeiro do ano seguinte. Obrigado pela força, gente.

As agendas se dividem em dois tipos. As que existem simplesmente para nos organizarmos e não perdermos a hora, e só nos dizem a que dias da semana correspondem os dias do mês e, vá lá, quando cai o carnaval, e as que nos tratam como recém-chegados ao mundo. Para estas, cada passagem de ano é um renascimento. Elas são nossos manuais de sobrevivência, com tudo que precisamos saber sobre o Tempo e o Universo para nos situarmos neles no novo ano, com espaço para anotações. Já conhecemos o lugar, inclusive de outras agendas, mas não importa. As informações repetidas são uma forma de nos assegurar que tudo continua

mudou. A capital da Malásia (código DDI: 60, moeda: ringgit) continua sendo Kuala Lumpur que continua à mesma distância de Bangcoc, e uma légua de sesmaria continua equivalendo a 6.600 metros. E por mais que tentasse, a Terra não conseguiu diminuir seus 12.760 km de diâmetro no Equador. Elas nos dizem tudo isso, e também a data do carnaval.

Algumas informações precisam ser atualizadas de ano para ano, no entanto, e se é certo que a conversão de quilogramas para libras não vai mudar num futuro previsível não se pode dizer o mesmo do nome da moeda do Brasil, que obriga os redatores de agendas a viver em alerta. Gosto de agendas com mapas e numa das que recebi este ano os mapas estavam devidamente atualizados - todos os novos países da África com seus nomes certos, por exemplo - mas um cartógrafo desafiador se recusou a trocar o nome Leningrado por São Petersburgo, na certa confiando que a História ainda dará uma reviravolta e ele só teria que trocar de novo.

Coisas como tabelas de conversões e códigos telefônicos são mais ou menos óbvias mas que outras informações dar numa agenda depende da inspiração de cada editor, e dos seus critérios sobre o que é importante para nos integrar no mundo prático, que é o mundo das agendas. Saber quais são os feriados oficiais de todos os países da Terra pode ser importante. Vá você chegar no Açafrão sem saber que é o Dia do Bode Sagrado, quando fecha tudo. Mas eu preciso mesmo saber o índice pluviométrico da Sumatra nos últimos 50 anos? Algumas agendas não se limitam a dar as informações sumárias sobre o dia que o próprio dia seria obrigado a dar sob interrogatório inimigo: nome e número. Muitas dão o nome do dia em várias línguas, para enfatizar o seu caráter internacional. Informam, por exemplo, que o dia 14 de maio, além de ser sexta, friday, viernes, vendredi da 19ª semana, é o 134º dia do ano. Outras, querendo personalizar ainda mais a informação, incluem o nome do santo do dia, o que tem ajudado muito na escolha de nomes para filhos. Os nascidos em 14 de maio são do

Dia de São Matias e antigamente isto não seria apenas uma sugestão de nome, seria quase uma ordem. Felizmente meus pais não consultaram nenhuma agenda para escolher meu nome e eu não me chamo nem Cosme nem Damião, o que teria mudado tudo.

Como são muitas as agendas e só posso usar uma por ano, resistindo à tentação de ficar com todas e planejar várias vidas clandestinas em loucos anos paralelos, decidi ficar sempre com a que traz, além das tabelas e dos mapas, as fases da lua. Nem todos os editores de agenda se dão conta da importância de saber exatamente quando é a próxima Lua Cheia. Somos uma minoria de obsoletos, reconheço. Românticos e lobisomens. Mas temos nossos direitos.