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Amores de verãoAmores de verãoAmores de verão

Amores de verãoAmores de verão

Amores de verão

Eu sei, eu sei. Não duram mais do que a marca do maiô os amores de verão, e lavarás meus beijos dos teus pés junto com o sal. E procurarás aquela concha que eu te dei na praia para lembrar de mim pra sempre e dirás “Ih, esqueci”, aquela concha com a minha vida dentro. Eu sei, eu sei, meu coração também não coube na sua mochila, ficou numa gaveta, junto com o protetor solar número 3 e o Harry Potter. Nos encontraremos na cidade e eu pedirei meu coração de volta e você dará um tapa na testa e dirá, “Ó cabeça” e dirá “Desculpe, viu Renato” e isso não será o pior. Nos encontraremos por acaso, não como combinamos, mas isso também não será o pior. Nada do que combinamos aquela noite na praia, sob aquela lua, com aquela lua nos seus cabelos, com seus cabelos fosforescendo sob aquela lua, nada do que combinamos naquela noite sob aquela lua acontecerá, e isso também não é o pior. Eu sei, eu sei, eu não esperava que nossos grandes planos dessem certo, o juramento de não voltar para a escola mas fugir para os Estados Unidos, cada um com o seu sonho e o seu inglês do Yázigi, e dar duro e ser feliz e só voltar famoso, você como cantora e eu, sei lá, como o melhor entregador de pizza do mundo, ou o plano de casar ali mesmo, o luar como grinalda, a espuma do mar como testemunha, a concha em vez de um anel e ninguém ficar sabendo, e ficar vivendo na praia ou voltar e ir viver juntos numa cobertura com piscina se nossos pais concordassem com o preço, para sempre, ou o plano de nunca, nunca mais, nunca nos separarmos. Mas pelo menos os planos menores, como a data certa para nos encontrarmos na cidade, na volta, eu esperaria que você não esquecesse, e você esquecerá, mas tudo bem, o pior não é isso. Nos encontraremos por acaso, meses depois, com o bronzeado desbotando, e você dirá “Desculpe, viu Renato” e eu direi tudo bem, quem precisa de um coração enganado, mesmo? Fique com ele, plastifique, use

como centro de mesa, quem se importa? Eu já beijei os seus pés, eu já beijei todo o seu corpo enluarado, mas quem se importa? E direi: o pior, viu? O pior, o que dói, e doerá por muitos verões, é que meu nome não é Renato, é Roberto.

Danem

Danem

Danem

Danem---se-sesese

(Da série Poesia numa Hora Destas?!)

Vem, alma minha já que tão vizinha está do nosso ninho a ventura que cá dela se sente a vinha...

Vem, vem - e danem-se os cacófatos!

Engano

EnganoEngano

Engano

Ela acordou na quarta-feira de cinzas ao lado do Saddam Hussein. Os dois nus, ele só com a máscara tapando o rosto, e roncando. Onde é que eu estou?

Pensou ela. E, mais importante, com quem? Que fim levou o Lula? Ela se lembrava de pouca coisa da noite anterior, mas de uma coisa tinha certeza.

Fora para a cama com o Lula. Ou com um Lula. E agora acordava com um Saddam.

dúvida nenhuma, era o Lula. Ou teria ido para a cama com dois? Um Saddam e um Lula? Ou, meu Deus, com três. Com um Bush também! Não, com o Bush não. Por mais bêbada que estivesse, não iria para a cama com o Bush. Mas onde estava o Lula?

Levantou a máscara do homem, que dormia profundamente. Não o conhecia.

Sacudiu- o.

- Ei, Saddam! Acorda!

O homem parou de roncar. Mais uma sacudida e abriu os olhos. Sorriu para ela. Disse:

- Oi.

- Quem é você?

- Você não se lembra? Passamos toda a noite juntos. Brincamos junto.

Trocamos confidências. Você...

- Péra lá. O homem com quem eu passei a noite, brinquei e troquei confidências tinha a máscara do Lula.

- Não. A máscara era esta mesmo. Do Saddam.

- Impossível. O Lula tem barba, o Saddam não tem. Eu não poderia me enganar.

Ou poderia?

- Você se enganou.

- Também, essas máscaras são tão malfeitas... Ele acariciou o braço dela e perguntou:

- Faz alguma diferença? Ela puxou o braço, irritada: - Claro que faz, né?

Ela não sabia bem que diferença fazia, mas enfim. Tinhas seus princípios.

Anônimos

AnônimosAnônimos

Anônimos

Todas as histórias são iguais, o que varia é a maneira de ouvi-las. No grupo comentava-se a semelhança entre os mitos e os contos de fada. Na história de Branca de Neve, por exemplo, a rainha má consulta o seu espelho e pergunta se existe no reino alguém mais bonito do que ela. Os espelhos de castelo, nos contos de fada, são um pouco como certa imprensa brasileira, muitas vezes dividida entre as necessidade de bajular o poder e de refletir a realidade. O espelho tentou mudar de assunto, elogiou o penteado da rainha, o seu vestido, a sua política econômica, mas a rainha insistiu.

Existia no reino uma beleza maior do que a sua?

“Existe”, disse, finalmente, o espelho, maldizendo o seu mínimo compromisso profissional com a objetividade. Uma menina de pele tão branca, de cabelo tão loiro e de rosto tão lindo que era espantoso que ainda não tivesse sido procurada pela agência Ford, apesar dos seus 12 anos incompletos. Seu nome:

Branca de Neve. A rainha má esbravejou. Espumou. Chutou o espelho. E mandou chamar um lenhador. Sua missão: levar Branca de Neve para a floresta, matá-la, desfazer-se do corpo e voltar para ganhar sua recompensa.

Nada se sabe sobre esse lenhador. Seu nome e sua biografia não constam em nenhuma versão do conto. A rainha má é A Rainha Má, claramente um arquétipo freudiano, a mãe de Electra mobilizada para eliminar a filha rival que seduzirá o pai, e os arquétipos não precisam de nome. O Príncipe Encantado que aparecerá no fim da história também não precisa. É um símbolo reincidente, talvez nem a Branca de Neve se dê o trabalho de descobrir seu nome e, na velhice, apenas o chame de “Pri”, ou,

personalidade, hábitos, fobias, CIC, tudo. Mas do personagem principal da história, sem o qual a história não existiria e os outros personagens não se tornariam famosos, não sabemos nada. Um lenhador, pronto.

Toda a história depende da compaixão do lenhador, que deixou Branca de Neve fugir e levou um coração de passarinho para trocar pela recompensa da Rainha Má. O lenhador não é símbolo de nada. Salvo talvez da importância do fortuito em qualquer história, mesmo as mais preordenadas. Ele só entra na trama para fazer uma escolha, mas toda a narrativa fica em suspenso até que ele faça a escolha certa, pois se fizer a errada não tem história. O lenhador compadecido representa os dois segundos de livre-arbítrio que podem desregular o mundo dos deuses e heróis. Por isso é desprezado como qualquer intruso e nem aparece nos créditos.

Laio ouve do seu oráculo que seu filho recém-nascido um dia o matará, e manda chamar um pastor. É o lenhador, numa caracterização anterior. O pastor é incumbido de levar o pequeno Édipo para as montanhas e eliminá-lo. Mais uma vez um universo inteiro fica parado enquanto um coadjuvante decide o que fazer. Se o pastor matar Édipo, a psicanálise como nós a conhecemos nunca existirá, com previsíveis efeitos, inclusive financeiros, em tantas vidas.

Se não matar, Édipo crescerá com pais adotivos, que abandonará quando ouvir de um oráculo - os oráculos são símbolos dos chatos que sempre contam o fim da história - que matará seu pai, casará com sua mãe e será pai do seu irmão e seu próprio enteado. Enfim, aquela confusão. O pastor poupa Édipo, que matará Laio por acaso e casará com Jocasta, sua viúva, sem saber que é sua mãe, e dá início ao mito, ao complexo e a 5 mil anos de culpa.

O pastor podia se chamar Ademir, nunca ficamos sabendo. Como o lenhador, também não se sabe que fim levou. Talvez um dia, anos depois,

com o drama acabado, tenha cruzado com Édipo, que não o reconheceu. Mesmo porque, sem os olhos, seria difícil. Se tivesse matado Édipo, nada daquilo teria acontecido. Pode-se imaginar a conta da análise do pastor.

Todos no grupo concordaram que as histórias reincidentes mostram como são os figurantes anônimos que fazem a História, ou como, no fim, é a boa consciência que move o mundo. Mas uma discordou e disse que tudo aquilo só provava o que ela sempre dizia: que o maior problema da humanidade, em todos os tempos, era a dificuldade em conseguir empregados de confiança, que fizessem o que lhes pediam.