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A Retirada

A Retirada

A Retirada

Idéia para uma história. Uma pequena cidade é invadida por um exército em retirada. Os habitantes da cidade acordam com os ruídos da chegada do exército. Ouvem o som de cascos de cavalos e de rodas de canhões e dos passos arrastados de soldados nas pedras das ruas. Quando abrem suas janelas dão com o lento desfile do exército derrotado, que antes do raiar do dia ocupa toda a pequena cidade. As pessoas que saem de casa tropeçam em soldados exaustos estirados na calçada. Mas a maioria não sai de casa, assustada. Que exército é esse? De onde ele vem? E em que guerra ele foi derrotado? Não há notícia de nenhuma batalha perto da pequena cidade. Não há notícia de nenhuma guerra, em parte alguma, perto dali.

O comandante do exército em retirada instala a sua tenda na praça principal da pequena cidade. O prefeito da cidade espera em vão sua visita à prefeitura, para explicar aquela inesperada invasão na madrugada. Mas o comandante não sai da sua tenda. Finalmente, o prefeito e seus secretários decidem ir eles mesmos ao encontro do general. Ninguém os detém, na entrada da tenda. Os guardas estão estirados no chão, dormindo. O general está dormindo. Os cavalos estão dormindo. Todo o exército está dormindo.

Provavelmente dormirá o dia inteiro. A batalha perdida deve ter sido terrível. A retirada deve ter sido longa e penosa. Mas que batalha? De onde o exército está se retirando?

No fim da tarde o general aparece na entrada da sua tenda, se espreguiçando.

Chuta os guardas, para acordá-los. Atravessa a praça e entra na prefeitura.

Mas não quer falar com o prefeito. Quer usar o banheiro.

viu uma cara assim. Todo o sofrimento do mundo está nessa cara, pensa o prefeito.

Nem imagina o que o general passou, para ter uma cara assim. Todo o sofrimento do mundo, sofrido ou causado. O general agradece ao prefeito a hospitalidade da sua pequena cidade. Hospitalidade? “Vocês nos invadiram” pensa em dizer o prefeito. Mas não diz. Não quer ser o responsável por mais um sulco naquela cara. Diz que espera que a estada na sua modesta cidade ajude o exército a se recuperar, e que todos são bem- vindos, e, por sinal, quanto tempo pretendem ficar? O general oferece um licor ao prefeito. Diz que ele verá que seus homens são rudes mas não são desleais, e que sua convivência com os habitantes da cidade será pacífica. O prefeito diz que já houve contato entre os soldados e a população, que lhes ofereceu comida, agasalho e um melhor lugar para dormir do que a calçada, e que tem certeza que não haverá problemas enquanto o exército estiver na pequena cidade. E, por sinal, quanto tempo pretendem ficar? O general sorri, com um esforço.

Diz que o prefeito pode ir. Sim, aceita o convite para jantar na prefeitura na noite seguinte. Mas agora precisa dormir mais um pouco.

Curiosamente, não há feridos entre os soldados. Todos estão muito cansados, e deprimidos, e se queixam da saudade de casa, mas nenhum está ferido. Aos habitantes da cidade que lhes perguntam sobre a batalha que perderam, respondem vagamente. Só dizem que foi terrível, terrível. Falam de companheiros que morreram. Falam dos horrores que viveram, na batalha e na retirada. Mas desconversam quando alguém pergunta em que guerra, mesmo, eles estão lutando. Preferem falar da casa que deixaram ou dos amigos que perderam. No jantar do general e dos seus oficiais com o prefeito e figuras ilustres da pequena cidade, na prefeitura, a conversa é a mesma. Quando o prefeito, no seu discurso, declara que todos estão curiosos para saber de que batalha o exército em retirada se retirou,

certamente por estar em insustentável desvantagem numérica ou por sido traído, pois por falta de heroísmo e sacrifício pelas pátria todos sabem que não pode ter sido, e, por sinal, em que guerra - e, aliás, por que pátria - está lutando, o general responde que naquele momento de congraçamento não devem falar de coisas tristes e propõe um brinde a uma coisa que os militares amam mais do que os civis: à paz. E quando perguntam quanto tempo o exército em retirada pretende ficar na cidade, o general propõe outro brinde. À convivência.

Mas, como não pode deixar de ser, começa a haver problemas entre os soldados e a população. Compreensíveis, pois os soldados são homens rudes, longe de casa, marcados pela batalha terrível e a longa retirada, pela tristeza e o horror. Há estupros, casos de bebedeira e pilhagem e, no fim de um mês, o prefeito toma coragem e visita a tenda do general para protestar contra o comportamento do seu exército. Encontra-o estirado na sua simples cama de campanha, olhando para o teto, com todo o sofrimento do mundo no rosto. O general não se ergue para receber o prefeito. Continua olhando para o teto enquanto o prefeito diz que entende que os soldados são homens rudes, marcados pela batalha perdida e a penosa retirada, mas que assim não dá para continuar. A pequena cidade está sendo aterrorizada. A convivência é impossível.

- Vocês, então, estão nos mandando embora? - pergunta o general, sem tirar os olhos do teto.

O prefeito hesita. Não sabe qual será a reação do general. E se ele mandar destruir a cidade, queimar tudo e matar todo o mundo, começando pelo prefeito? Já deve ter feito coisas piores na sua vida, pensa. Não se consegue uma cara assim sem ter sofrido e causado coisas piores. Posso propor um entendimento. Pedir que o general tente controlar a sua tropa. Com o tempo, os soldados talvez se integrem à vida da pequena cidade.

Talvez esqueçam o que passaram, e se tornem cidadãos comuns, pacatos e desarmados.

O próprio general, que parece gostar tanto da cidade, pode se estabelecer ali, trocar a tenda de comando no meio da praça por uma casinha, quem sabe conhecer uma boa moça... Mas o prefeito decide ser firme.

- É - diz.

- Muito bem - diz o general. - Nos retiraremos ao amanhecer.

Na manhã seguinte a população da pequena cidade é acordada pelos ruídos do exército em movimento, continuando a sua longa e penosa retirada.