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Aquele nosso tempoAquele nosso tempoAquele nosso tempo

Aquele nosso tempoAquele nosso tempo

Aquele nosso tempo

O Alfredo contou para o Binho que estava escrevendo um livro sobre “o nosso tempo”. O Binho entendeu que o Alfredo estava escrevendo sobre “o nosso tempo” no sentido, assim, de “O Nosso Tempo”, o século 20, a era moderna, mas o Alfredo esclareceu:

- Não, não. O nosso tempo. Nosso, da turma. A nossa juventude. O Binho achou uma boa idéia, depois pensou melhor. Perguntou:

- Você não vai contar tudo, vai? - Por que não?

_ Você acha? - Por que não?

E, como o Binho fizesse uma cara de “sei não”, o Alfredo o cutucou e disse:

- Nós aprontamos algumas, hein? Hein?

O Régis ficou sabendo do livro pelo Binho e telefonou para o Alfredo. Não se falavam há horas. Conversa vai, conversa vem, o Régis falou no livro. Era verdade que o Alfredo estava escrevendo um livro sobre a turma, sobre “aquele nosso tempo”? Era, confirmou, o Alfredo.

- Romanceado? - perguntou o Régis. - Como, romanceado?

- Você vai usar os nomes verdadeiros? - Claro.

- Você acha?

- Por que não? Tem histórias fantásticas. Aquela vez em que nós fomos com a Maria Estela pra...

- Alfredo: usa pseudônimos.

Quem procurou o Alfredo não foi a Maria Estela. Foi o Argeu, que, apesar de tudo que a Maria Estela aprontara, tinha casado com ela. Queria saber sobre o livro.

- Não tem nada demais... - começou a dizer o Alfredo.

Argeu interrompeu. Alfredo nunca mais tinha visto o Argeu depois do casamento. O Argeu era o mais cabeludo da turma. O Argeu estava completamente careca.

- A Maria Estela hoje faz muito trabalho na Igreja - disse o Argeu. - Sim, mas...

- Não põe a Maria Estela no livro, Alfredo. O próximo foi o Pinto, que não fez rodeios.

- Pois é. Estou pensando em escrever sobre aquele nosso tempo. Acho que tem algumas histórias...

- A da galinha no velório, por exemplo? - É. Essa é uma delas.

- Não bota o meu nome. - Mas você foi um dos que...

- Não bota o meu nome. Ou bota um pseudônimo. - Mas foi uma coisa de adolescente, perfeitamente...

- Tá doido? Você sabe o que eu sou hoje, Alfredo? E você se lembra de quem era o velório?

- Mas...

- Quer um conselho? Esquece esse livro.

O Alcides disse que era uma boa idéia escrever o livro, que o livro resgataria uma época, que seria divertido e ao mesmo tempo importante, que muita gente ia se lembrar do seu próprio passado lendo o livro, e meditaria sobre as loucuras e os sonhos perdidos de uma geração, e que o Alfredo devia, sim, escrever o livro - desde que não o citasse.

- Mas Alcides, você era o nosso líder. O nosso guru. O livro seria quase todo sobre você. O livro não tem sentido sem você.

- Usa um pseudônimo.

Alcides explicou que sua terceira mulher tinha uma carreira política e que o livro poderia prejudicá-la. E ela não sabia nada do seu passado. E, além do mais, ele já era avô.

- Pô, Capitão - disse Alfredo. - Capitão?

- Você não se lembra? Seu apelido na turma era Capitão Fumaça. - Sabe que eu não me lembrava?

Alfredo decidiu reunir a turma para falar sobre a sua idéia para o livro. Conseguiu reunir o Binho, o Régis, o Pinto, o Farelo, a Suzaninha

(que foi com o marido, um comerciante desconfiado que ninguém conhecia) e o Argeu representando a Maria Estela. Não encontrou os outros, ou encontrou, mas eles não foram à reunião, e descobriu que o Ferreira tinha morrido do coração. Alfredo explicou que ele mesmo financiaria a edição do livro. O que significava que seria uma edição pequena, que sua circulação seria restrita, que poucas pessoas leriam. Explicou que sua intenção era capturar um momento na vida deles, da turma. Para que todos pudessem lembrar “aquele nosso tempo”. O tempo em que todos eram jovens, e o que eles sentiam, e pensavam, e tinham aprontado. Ninguém seria prejudicado, só se divertiriam. Tudo tinha acontecido há muito tempo. Como se fosse em outro país. E com o tempo tudo vira literatura. Mesmo com os nomes verdadeiros.

Depois que o Alfredo terminou de falar, todos ficaram em silêncio. Aí o Pinto disse:

- Tá doido.

E o Régis disse que se o livro saísse com o nome dele ele processava e sugeriu que o Alfredo usasse pseudônimos. E a Suzaninha disse que queria mais era esquecer o seu passado e até já tinha um pseudônimo pronto. Celeste.

- Sei lá. Acho que combina comigo.

E como o marido não entendesse, acrescentou: - Naquele tempo, Abílio, naquele tempo.

Ar e Chumbo

Ar e ChumboAr e Chumbo

Ar e Chumbo

Eu estava na Rua da Praia. Não me lembro por que ou com quem. Ouviu-se o som de uma sirene. Todos, na rua, começaram a andar na

mesma direção, na direção da sirene. Alguns corriam. A pessoa que estava comigo me puxou pela mão. Seguimos a multidão.

Seria um ataque aéreo? Impossível, a 2ª Guerra Mundial acabara três anos antes. O nosso lado ganhara. Durante a guerra era comum ouvir- se a sirene anunciando o blecaute na cidade, para prevenir contra um ataque inimigo. Nunca se soube bem de onde viria um ataque alemão a Porto Alegre, talvez de Novo Hamburgo, mas era melhor não facilitar. Falava-se muito que uma guerra entre o Brasil e a Argentina era inevitável, em algum ponto da nossa história. Por isso a bitola das nossas ferrovias era mais estreita do que a deles, para a Argentina não nos invadir de trem. Aviões argentinos podiam estar se aproximando de Porto Alegre para bombardear o Largo dos Medeiros, o Café Central e as sedes do Grêmio e do Internacional, aniquilando com um golpe só toda a nossa capacidade de reação. Mas ninguém estava olhando para o céu.

A multidão se aglomerava na frente do edifício do Diário de Notícias, de onde vinha o som da sirene. Todos queriam ler uma notícia escrita às pressas num cartaz preso à fachada do prédio ou pendente de uma janela. Gandhi assassinado! Não era guerra. Entre aliviado e perplexo - onde fora o assassinato de Gandhi, por que tinham matado o Gandhi e, acima de tudo, quem era o Gandhi? -, fiquei ali, maravilhado diante daquela coisa mística, aquela entidade misteriosa onde as notícias do mundo chegavam em minutos, pelo ar, e eram propagadas daquela maneira. Com espalhafato, se merecessem o espalhafato.

No dia seguinte lá estava, na capa do Diário, tudo sobre o assassinato. A foto e a biografia de Gandhi e os detalhes da notícia que não cabiam no cartaz escrito à mão. Foi a primeira vez que me detive na primeira página do jornal antes de passar automaticamente para a seção de esportes. Tinha um interesse particular na história. Como parte da multidão

convocada na rua pela sirene para saber da novidade, eu praticamente era uma testemunha ocular do crime.

Também foi a primeira vez que pensei no mecanismo de um jornal e imaginei como seria aquela alquimia, captar o acontecimento no ar e transformá-lo em informação. Transformá-lo naquela sintética lição de história, de grandeza e selvageria ao mesmo tempo, que eu estava tendo ali, estendido de barriga no chão lendo o Diário. Depois passei para o noticiário do futebol e para os meus ídolos do cotidiano. Um jornal era isso, o sobressalto da novidade e a garantia de que a nossa rotina continuava. Simultaneamente um espalhafato - um espalha fatos - e um repetidor das nossas confortáveis banalidades municipais. O grande Gandhi fora assassinado, mas em compensação o grande Tesourinha estava curado da lesão e jogaria o Grenal e um novo seriado completo estava para estrear no Apollo.

Quando entrei na oficina de um jornal pela primeira vez, me decepcionei. O processo não era nada como eu imaginara. A notícia não era destilada do ar, entrava por uma grande e barulhenta usina de transformação ocupada por pessoas sem o menor ar de alquimistas. E os linotipos! Até hoje penso nos linotipos como dinossauros: bichos fantásticos e improváveis, de um tamanho que os jovens digitadores de hoje não podem nem imaginar, e que no entanto existiram, e há restos fossilizados para provar.

Metabolizavam texto em chumbo. E durante muitos anos, como os dinossauros, elas também dominaram o mundo.

A informatização das redações e a progressiva “limpeza” das oficinas gráficas com a composição e a impressão a frio tiveram o mérito de devolver, pelo menos a pré-eletrônicos como eu (confesso que ainda não assimilei o princípio da torneira), um pouco do velho mistério. Voltei à

fascinada ignorância dos meus 10 anos e estou de novo convencido de que tudo passa do ar para o papel por mágica.

Mas, seja feito do ar ou com chumbo, o jornal sempre me deu a mesma sensação simultânea de urgência e conforto que senti há 50 anos. Nenhum outro meio de comunicação consegue isso: a autoridade para nos contar o que aconteceu com detalhes e distanciamento e a intimidade para compartilhar tudo conosco num contexto doméstico cálido e próximo. O rádio nos diz, a televisão nos mostra, mas só o jornal nos envolve.

O Diário de Notícia de Porto Alegre não existe mais, o prédio que o sediava veio abaixo e eu mesmo já não estou bem aqui, mas 50 anos depois o deslumbramento daquele dia na Rua da Praia persiste.