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Ariosto não tem sangue de barata Ariosto não tem sangue de barata Ariosto não tem sangue de barata

Ariosto não tem sangue de barataAriosto não tem sangue de barata

Ariosto não tem sangue de barata

- Não me beija que eu estou toda suada! Depois:

- Ariosto! Eu recém-saí do banho! Depois:

- Não-o. Olha o meu penteado. Depois:

- Quer fazer o favor? Estou tentando ver a novela. Depois:

- Agora não, Ariosto. Eu já botei o creme. De manhã:

- Ó Ariosto. Eu ainda não escovei os dentes! Depois:

- Não dá tempo, bem. A Nelinha daqui a pouco vem me buscar pra ginástica.

E depois da ginástica:

- Me larga que eu estou toda suada! Finalmente:

- Ariosto!

- Vai ser aqui mesmo.

- Mas...Você está se molhando todo! - Não interessa.

- Eu estou toda ensaboada! - Melhor assim.

- Ariosto! Ai! Espera!

Mas Ariosto não esperou. Foi ali mesmo. Debaixo do chuveiro. Ariosto nem tirou as calças.

À mesa do jantar, naquela noite, ela se queixou. - Nunca pensei.

Ariosto, sem saber se a frase se aplicava: - Eu não tenho sangue de barata.

- Precisava me atacar? - Só tomei o que é meu. - Precisa ser grosseiro?

- Agora vai ser assim. Quando você menos esperar. - Ariosto!

- Quando você menos esperar!

Dois dias depois, quando ela chegou da rua (banco, pedicure, supermercado) no meio da tarde, ele estava esperando atrás da porta.

Tinha chegado mais cedo do trabalho para pegá-la. Pacotes do supermercado pelo chão, ele tomou o que era seu em cima dos congelados.

Na manhã seguinte, esperou ela se levantar da cama, escovar os dentes, se vestir - e só então atacou.

Foi na mesa do café mesmo e não teve conversa. - A Nelinha vai chegar a qualquer momento! - Azar.

Outra vez foi no cinema. Ela devia ter desconfiado quando ele quis sentar atrás, ele que gostava de sentar na frente. Atrás não tinha ninguém.

- Ariosto, o que é isso?

- Chega um pouco pra cá... Assim... Agora a outra perna. - Ariosto, vão nos ver!

- Não vão. - Vão nos ouvir!

Mas era um filme do Schwarzenegger e ninguém ouviu.

Ela decidiu que o jeito era restabelecer uma rotina convencional. Ariosto tinha vencido. Voltariam a fazer sexo em lugar e hora apropriados, sempre que ele quisesse. Só assim ela conteria a fúria compensatória do Ariosto. Só assim se livraria da ameaça constante de ser atacada pelo Ariosto quando menos esperava - como na vez em que ele a estava aguardando na garagem do prédio, e eles quase tinham sido flagrados dentro do carro pela dona Elcina do 702. Ela decidiu que começaria a ir para a cama antes de botar o creme.

Mas era tarde demais. - Negro...

- Hmmm? - Vamos? - O quê?

Ariosto, lendo uma revista e se fazendo de desentendido. Ela:

- Você não quer? Ele (bocejando): - Agora não.

E, quando ela desistiu e levantou-se para botar o creme, ele perguntou:

- Aonde você vai amanhã? - Não digo!

Todas as terças-feiras ela almoçava com a turma. Amigas antigas, muitas ex-colegas da escola, um grupo de 15 - quando apareciam todas. Ela e a Nelinha, que morava no mesmo prédio, iam juntas e não perdiam um almoço, sempre nas terças, sempre no mesmo restaurante. Naquela terça a conversa na mesa estava animada, como de costume, mas as amigas notaram que ela não parava de olhar para a porta do restaurante, como se esperasse a chegada de alguém. E viram ela, de repente, se levantar com uma expressão de pânico no rosto. Alguém que entrara pela porta e agora se aproximava da mesa era a causa do seu terror. Ela recuou, derrubando sua cadeira, e achatou-se contra a parede. E gritou:

- Ariosto, tu não é louco!

Arredondados

ArredondadosArredondados

Arredondados

A estabilização da moeda acabou com uma velha mania brasileira, que era arredondar. Tínhamos uma certa impaciência com frações, detalhes e coisas muito exatas, e a conta arredondada era o equivalente matemático do “isso a gente vê depois”, um dos lemas nacionais. Na dúvida, para ganhar tempo e poupar ou adiar trabalho, determinava - se:

- Arredonda.

Não era um artifício contábil, era uma vingança. O centavo valia tão pouco que o brasileiro vivia irritado com ele. O centavo era um estorvo, um anacronismo. Aquele toco inútil depois da vírgula. Como o cóccix, que

Quando dois brasileiros combinavam uma conta, sempre surgia a sugestão, num tom conspiratório, de liquidar os centavos.

- Vamos arredondar? - Arredonda, arredonda.

E os centavos eram reduzidos a zero, sem piedade.

Claro que se podia arredondar a favor ou contra, dependendo de quem fazia a conta. Ou simplesmente se ignoravam os centavos ou o último número antes da vírgula subia de status, e nesse caso o pagador pagava mais. Mas ainda tinha a satisfação de ser cúmplice na eliminação dos centavos. Os centavos nos humilhavam com sua inutilidade e nos desafiavam com sua persistência. Durante muito tempo, o troco foi um dos incômodos diários dos brasileiros.

Substituíam-se os centavos pelo comprimido e pela bala até que o comprimido e a bala passaram a valer mais do que os centavos que faltavam. Eram lançadas novas moedas de centavos tão leves e frágeis que pareciam nos dizer para não lhes dar atenção, pois não durariam muito e em breve voariam.

Às vezes até dava briga.

- O senhor deixou cair uma moeda. - Eu, não. Essa moeda no chão é sua. - Imagina! É sua.

- É sua. Vi quando ela caiu do seu bolso e planou até o chão. - Perdão, a moeda é sua.

- É sua!

Certos cheques, para poupar a seu dono tinta e incomodação com as desprezíveis frações, traziam impresso no espaço para escrever a quantia por extenso: “E centavos...” Ou ainda “E (ah, ah) centavos”. Ou, com desdém: “E aquelas coisas.” O melhor substituto para o centavo, em vez do

Fontol, seriam as reticências. Três pontinhos, significando ironia e resignação filosófica.

Hoje tudo mudou. O centavo vale alguma coisa. O troco continua sendo um problema, mas ninguém mais diz “arredonda”. E muito menos “esquece”. As pessoas hoje brigam pelos centavos. É verdade que há o outro lado dessa história. Como a situação da maioria continua ruim e o dinheiro pode estar estabilizado, mas continua longe do seu bolso, alguém poderia dizer que hoje se briga “até” por centavo. Mas seria alguém mal- agradecido, talvez um nostálgico dos centavos evanescentes, cheio das arestas da insubmissão e das pontas do ceticismo.

Quer dizer, alguém que ainda não foi arredondado.