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Apenas tênisApenas tênis

Apenas tênis

Apenas tênis

Apenas tênis

Tênis. Apenas tênis. Foi o que a Laura alegou, quando o Márcio anunciou sua intenção de massacrar o Martins. Por que, Márcio, perguntara a Laura. Que importância tinha? Era apenas tênis. Foi quando o Márcio disse:

- Isso mostra como você não conhece a alma masculina. Pior, mostra como você não me conhece.

A Laura não conhecer a alma masculina era uma coisa. Nenhuma mulher conhece.

Mas não conhecer o Márcio era outra. Afinal, os dois estavam casados há oito anos. O que o Márcio estava dizendo era que durante oito anos, Laura vivera com um desconhecido.

Dormira com um desconhecido. Dera um filho a um desconhecido. Só isso explicava ela não entender por que ele iria massacrar o Martins. Por que ele precisava massacrar o Martins.

- O Martins não é o seu chefe? - É.

- Não é vaidoso, e odeia perder? - É.

- E então?

Laura disse “vocês”. Reconhecendo que não os conhecia. O gênero masculino em geral e o seu marido em particular. A alma deles era mesmo um mistério para Laura.

Martins soubera que Márcio jogava tênis assim que ele começara na firma e o convidara para uma partida antes do expediente. Depois outra, e outra. Em breve estavam jogando três vezes por semana. Para não haver o perigo de desencontro nos horários, arranjara para Márcio trabalhar diretamente com ele. Ninguém mais na firma jogava tênis. Até Márcio ser contratado, o Martins não tinha com quem jogar. “Você me caiu do céu” disse o Martins, no vestiário, depois de uma partida. E Márcio era claramente favorecido pelo Martins, no emprego. Não importava que comentassem no escritório que o patrão protegia Márcio, uma parceiro para o tênis não era fácil de encontrar. Os dois eram mais ou menos do mesmo nível. Entediam-se bem.

Apenas, quando perdia, Martins costumava dar sinais de irritação. Mas nada que durasse além do banho, no vestiário. Normalmente chegavam ao escritório juntos, comentando o jogo. Até que um dia...

Começou na discussão de uma bola duvidosa. - Fora! - gritou o Márcio.

- Dentro! - gritou o Martins. - Fora! Está aqui a marca. - Dentro. Um palmo dentro. - Como você pode ver daí? - Não interessa. Foi dentro. - Foi fora.

- Eu estou dizendo que foi dentro e eu sou o seu chefe.

Por um instante os dois ficaram em silêncio. Depois o Márcio deu uma risada, disse “Está bem, você é quem manda”, Martins riu também, e o jogo continuou.

Mas naquele dia os dois entraram no escritório sem se falar.

Isso foi numa quarta. Na sexta os dois jogaram com mais empenho do que o normal. No fim, o jogo foi feroz. Disputado até o último “game”. Martins venceu, com uma bola que bateu na rede e caiu no outro lado. Venceu por centímetros. E cerrou o pulso, deu um “jab” no ar e disse “Yes”. Foi o “yes” que fez Márcio reagir. Sabia que não devia, mas não se conteve. Disse “Sorte”.

- Sorte nada, meu amigo. Classe. - Sorte.

- Nós jogamos dez jogos como o de hoje, e eu ganho sete. Oito! - É. Tá bem.

- Você acha que é melhor do que eu, Márcio? - Eu sei que sou melhor do que você.

- Ah, é? Com esse seu joguinho? - É. Com este meu joguinho.

- Então vamos fazer o seguinte. Na segunda-feira o jogo é para valer.

- Quer dizer que até agora não foi para valer? - Da minha parte, não.

- Ah, não? Você joga cada bola como se valesse tudo. A vida. Quando perde um ponto, fica histérico. Isso quando não rouba, e diz que bola fora foi dentro. Eu é que não jogo para valer, para não magoar você.

- Ah, é? Ah, é? - É.

- Então vamos ver na segunda-feira!

- É o melhor emprego que você já teve, Márcio. Ele adora você. Você vai botar tudo isso fora só porque...

- Márcio, pense um pouco. Pense no nosso futuro. Pense no Henrique André.

Henrique André era o filho. Os nomes dos avós. - Ele vai ver só o meu joguinho.

- Márcio, ele disse que você caiu do céu. Quando é que um patrão diz isso para um empregado, Márcio? Você está feito na vida. É só deixar ele ganhar.

- Quero ver ele dizer “yes” na segunda-feira. - Márcio, é apenas tênis!

- Aí é que você se engana.

Era aí que ela se enganava. Era aí que ela não entendia a alma masculina, e muito menos a do Márcio.

- Não é apenas tênis, Laura.

- Então só pode ser burrice. Jogar fora uma carreira, o futuro da sua família, tudo, por uma partida de tênis, só pode ser burrice.

- Não é apenas tênis, Laura - repetiu Márcio. - Então o que é?

Não adiantava.

- Você não entenderia, Laura.

Apetitosos

Apetitosos

Apetitosos

Apetitosos

Àidéia de que não somos mais do que uma erupção passageira na superfície de um planeta menor numa galáxia entre trilhões de outras se antepôs, ultimamente, a convicção - agora não mais religiosa, mas cientificamente plausível - de que o Universo existe para a gente existir. O fato de a Terra estar na distância exata do Sol para haver vida como a nossa - um pouquinho mais perto ou um pouquinho mais longe e nem você, eu ou

qualquer outro mamífero seria possível - é apenas uma amostra dessa grande deferência conosco. Somos a razão de tudo, o resto é cenário ou sistema de apoio. E não fazemos feio entre os mamíferos. Nenhuma outra espécie com a mesma proporção de peso e volume se iguala à nossa. Nosso habitat natural é o planeta todo, independentemente de clima e vegetação. Somos a primeira espécie da História a controlar a produção do seu próprio alimento e a sobreviver fora do seu ecossistema de nascença. Em nenhuma outra espécie as diferentes categorias se intercasalam como na nossa, o que nos salvou do processo de seleção natural que militou nas outras. E o que a nossa sociabilidade não conseguiu, a técnica garantiu. Mutações que decretariam o fim de outra espécie em poucas gerações, na espécie humana são corrigidas ou compensadas pela técnica. Exemplo: a visão. Enxergamos menos do que nossos antepassados caçadores e catadores, mas vemos muito mais, graças à oftalmologia e a todas as técnicas de percepção incrementada.

Mas nosso sucesso tem um preço. Chegamos aonde estamos consumindo tudo à nossa volta e hoje somos tantos que também nos transformamos em recursos consumíveis. Em breve a carne humana superará em valor calórico todas as outras fontes de alimento disponíveis sobre a Terra. E 10 mil anos ingerindo comida cultivada, mesmo com a maioria só comendo para subsistir, nos tornaram cada vez mais apetitosos e nutritivos. Gente já é o principal exemplo de recurso subexplorado do planeta. E as leis da evolução são impiedosas: comunidades virais e bacteriológicas se transformam para nos incluir, cada vez mais, na sua dieta. Já que estamos ali, aos bilhões, literalmente dando sopa.