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4 O ESTUDO DA CONSTRUÇÃO DO NÚMERO: IMPLICAÇÕES HISTÓRICAS E

4.2 ABORDAGEM EPISTEMOLÓGICA DA CONSTRUÇÃO DO NÚMERO

Com o arcabouço histórico apresentado no tópico anterior, foi possível perceber, sem dúvida alguma, que o caminho percorrido por aqueles povos que ainda viviam na Idade da Pedra, os quais foram desafiados, por suas necessidades, experimentar as primeiras noções sobre a contagem, foi fundamental para o desenvolvimento da humanidade. Até hoje, a construção do número e os aspectos da contagem ainda intrigam pesquisadores e estudiosos da área, inclusive historiadores, a entender, a partir de uma visão do passado, as implicações e as percepções acerca dos números pela criança.

Isso nos leva a algumas indagações: a partir de quando as crianças constroem os números? Os registros dos símbolos e a contagem dos numerais garantem que o aluno já construiu o conceito de número? Essas e outras perguntas buscaram ser respondidas e ainda permeiam os estudos de diversos pesquisadores interessados em compreender as nuances psicológicas e cognitivistas ligadas aos números e percebidas pela criança.

Um dos pesquisadores que teve uma grande influência nos estudos com as crianças e com as estruturas psicológicas envolvidas na construção do número, foi Jean Piaget (1896- 1980), “postulando que existia um paralelismo entre a gênese do número, na criança, e a história dos números” (CHALON-BLANC, 2005, p. 25). Em um de seus livros, como “A gênese do número na criança”, publicado pela primeira vez em 1941, em parceria com Alina Szeminska, percebeu-se que, a partir de observações precisas, desencadeadas por tarefas inerentes à provas cognitivistas realizadas com crianças, uma explicação coerente e precisa da construção do número, no qual foi possível estabelecer que há relações com o desenvolvimento da própria lógica, em etapas.

Piaget e Szeminska (1975), em sua obra, estabelecem que, para a existência do número, é imprescindível levar em consideração os aspectos necessários à sua construção: a conservação das quantidades, a correspondência termo a termo, a determinação do valor cardinal e ordinal (de maneira indissociável). Segundo Nogueira (2006), tais “qualidades” ou “necessidades” para que o número possa existir, levou Piaget e Szeminska, ao longo de toda sua obra a confirmar a hipótese, de que o número é a síntese da classificação e seriação.

O número se organiza, etapa após etapa, em solidariedade estreita com a elaboração gradual dos sistemas de inclusões (hierarquia das classes lógicas) e de relações assimétricas (seriações qualitativas) com a sucessão dos números constituindo-se, assim, em síntese operatória da classificação e da seriação (PIAGET; SZEMINSKA 1975, p. 12).

Essas evidências estão presentes a partir do momento em que a criança consegue estabelecer relações com os objetos, intermediados por experiências, que favoreçam o desenvolvimento das estruturas lógicas, imprescindíveis ao conhecimento, pois segundo Piaget e Szeminska (1975, p. 12), “a hipótese da qual partimos é, obviamente, que esta construção é correlativa do desenvolvimento da própria lógica e que ao nível pré-lógico corresponde a um período pré-numérico”.

De acordo com esta colocação é possível inferir que existem momentos da aprendizagem das crianças, relacionadas à compreensão do que seja número, estabelecidas a partir da elaboração de situações que as coloque diante do pensar, ou seja, que as permitam contemplar o período pré-numérico, sem a necessidade ou interposição da contagem enquanto mecanismo motriz do entendimento de número. De acordo com Panizza (2006), esta etapa está relacionada com atividades como classificar, seriar e estabelecer correspondência termo a termo.

Todas as atividades seriam intermediadas por abstrações das ações exercidas sobre os objetos, através de experiências lógico-matemática. De acordo com Rangel (1992), de um lado, tem-se a experiência física que se volta para a descoberta dos objetos a partir das ações exercidas sobre eles, que se dá através da abstração, o que permite perceber suas características e as propriedades físicas que os modificam; do outro, a experiência lógico-matemática, que considera importante as coordenações/relações que ligam essas ações, o que tem a ver com a propriedade das ações e não apenas dos objetos.

Dessa forma, conforme defende Chalon-Blanc (2005), a correspondência estabelecida entre duas coleções/objetos heterogêneos, os quais a criança tem disponível para si, marcou um progresso radical no desenvolvimento das capacidades de abstração, pois assim o sujeito consegue perceber elementos que os diferenciam e são incorporados internamente, a partir da interação com eles.

As abstrações consideradas por Piaget referem-se à abstração reflexiva, no qual é construída pela mente do sujeito ao criar relacionamentos entre os vários objetos e coordenar essas relações entre si; e a abstração simples ou empírica é a abstração do próprio objeto, ou seja, de suas propriedades, mediante a observação das respostas que o objeto dá à ação exercida sobre ele (RANGEL, 1992, p. 23).

Tais abstrações estão intimamente ligadas entre si, de forma que elas se dão durante os estágios de desenvolvimento24 da criança, e que durante os estágios sensório-motor e pré-

24 Piaget definiu quatro estágios de desenvolvimento: (I) sensório-motor: ocorre até os 2 anos de idade; (II) pré-

operatório: ocorre na faixa dos 2 aos 7 anos de idade; (III) operatório concreto: ocorre na faixa dos 7 aos 11 anos de idade; (IV) operatório formal: ocorre na faixa dos 12 aos 15 anos de idade.

operacional, a abstração reflexiva não pode acontecer independentemente da abstração empírica, o que pode acontecer mais tarde, quando o sujeito já é capaz de conceber o entendimento de número, sem que seja necessário a sua representação simbólica. Assim, [...] “é possível entender números como 1.000.002 mesmo que nunca tenhamos visto ou contado 1.000.002 objetos num conjunto” (KAMII, 1994, p. 19).

Inicialmente, a experiência lógico-matemática se relaciona com ações materiais exercidas sobre os objetos; porém, com os progressos da inteligência, ela pode dispensar a aplicação sobre os objetos, e esta criação e coordenação de relacionamentos ocorre sobre as operações simbolicamente manipuláveis (RANGEL, 1992, p. 24).

Nesse sentido, é possível dizer que o conhecimento lógico-matemático é uma invenção dada por cada criança, ao estabelecer interações ativas com o meio físico e social, mas que só é possível ser construído a partir de dentro de si mesma. Logo, o número, conforme essa visão, é visto como uma “estrutura mental que cada criança constrói a partir de uma capacidade natural de pensar e não algo aprendido do meio ambiente” (KAMII; DECLARK, 1991, p. 23).

Levando em consideração esses aspectos, os quais a criança precisa estar inserida em um contexto que favoreça a sua aprendizagem, em íntima relação com objetos, para que possa trazer sentido para si, concordamos que:

Não basta, de modo algum, à criança pequena saber contar verbalmente “um, dois, três etc.” para achar-se na posse do número. Um sujeito de cinco anos pode muito bem, por exemplo, ser capaz de enumerar os elementos de uma fileira de cinco fichas e pensar que, se se repartir as cinco fichas em dois subconjuntos de 2 e 3 elementos, essas subcoleções não equivalem, em sua reunião, à coleção total inicial (PIAGET; SZEMINSKA, 1975, p. 15).

Ainda com relação a esse aspecto, os estudos de Vergnaud (2014) apontam que, quando a criança anuncia essa sequência numérica de contagem verbal, ela pode estar situada em dois níveis diferentes, a saber:

- no nível da simples recitação (do “canto” se diz às vezes): a criança então se limita a recitar as palavras que ela sabe que devem vir uma após a outra. Muitas vezes, aliás, ocorre de ela se enganar. Mas, mesmo quando ela não se engana, e recita a sequência dos n primeiros números, não se poderia afirmar que, por conta disso, ela sabe “contar até n”, como às vezes se diz de forma errônea. Na verdade, a atividade de contar implica não apenas que a criança recite a sequência numérica, mas que, ao mesmo tempo, faça corresponder esta recitação à exploração de um conjuntos de objetos; - no nível de contagem, propriamente dito: a recitação da sequência numérica é então acompanhada de gestos da mão e de movimentos dos olhos que mostram que a criança executa sua atividade de estabelecer uma correspondência entre o conjunto de objetos, de um lado, e a sequência falada, de outro (VERGNAUD, 2014, pp. 125-126).

Nesse sentido, é possível considerar que a contagem em si não está ligada diretamente ao fato de a criança entender o significado atribuído ao número, mas ela necessita “colocar todos os tipos de conteúdos (objetos, eventos e ações) dentro de todos os tipos de relações para chegar a construir o número” (KAMII, 1994, p. 18).

Remetendo-se aos aspectos que perpassam à construção do número, a conservação das quantidades é um elemento de destaque na pesquisa de Piaget e Szeminska (1975, p. 23), de forma que “todo conhecimento, seja ele de ordem científica ou se origine do simples senso comum, supõe um sistema, explícito ou implícito, de princípios de conservação.” Para isso, foram realizados experimentos cognitivos com crianças, referenciadas na análise psicogenética, voltadas ao estudo das quantidades contínuas (experiência de transvasamento de líquidos) e descontínuas (coleções de contas)25.

Do ponto de vista psicológico, a necessidade de conservação constitui, pois, uma espécie de a priori funcional do pensamento, ou seja, à medida que seu desenvolvimento ou sua interação histórica se estabelece entre os fatores internos de seu amadurecimento e as condições externas da experiência, essa necessidade se impõe necessariamente (PIAGET; SZEMINSKA, 1975, p. 24).

A primeira experiência de Piaget para análise das quantidades contínuas26, consistia em submeter os líquidos presentes em recipientes “a todas as deformações possíveis, colocando-se de cada vez o problema da conservação sob a forma de uma questão de igualdade ou não- igualdade com o vidro-testemunha” (PIAGET; SZEMINSKA, 1975, p. 25).

Sobre essa experiência, Nogueira (2007) salienta que, como se trata de verificar a “invariância” do número, as quantidades são sempre apresentadas aos pares para os sujeitos, pois é preciso verificar se o número permanece idêntico a si mesmo, ao se mudar as configurações espaciais entre os elementos. Do mesmo modo, a autora reitera que a conservação das quantidades é construída progressivamente segundo um processo intelectual complexo, pois conservar quantidades significa, em última instancia, acreditar que

25 Para um melhor entendimento e maior aprofundamento das diversas provas realizadas por Piaget e Szeminska

(1975), sugere-se a leitura na íntegra do livro A gênese do número na criança.

26 Apresenta-se em primeiro lugar ao sujeito dois recipientes cilíndricos com as mesmas dimensões (A1 e A2),

contendo a mesma quantidade de líquido (sendo a igualdade das quantidades reconhecível pela igualdade dos níveis); depois, despeja-se o conteúdo de A2 em dois recipientes menores e semelhantes um ao outro (B1 e B2), para perguntar à criança se a quantidade transvasada de A2 para (B1 + B2) permaneceu igual à de A1. Se for preciso, pode-se a seguir verter o líquido contido em B1 em dois recipientes iguais entre si e menores ainda, C1 e C2; após, se se apresentar o caso, despejar B2 em dois outros recipientes C3 e C4, idênticos a C1 e C2; coloca-se, então, as questões de igualdade entre (C1 + C2) e B2 ou entre (C1 + C2 + C3 + C4) e A1 etc.

necessariamente a quantidade se conserva mesmo contrariando as informações dadas pela percepção imediata.

De maneira geral, a avaliação dos resultados, a partir dos experimentos das quantidades contínuas e descontínuas delimitam em três fases sucessivas (Quadro 4), relacionadas à conservação, as quais são construídas pouco a pouco, a partir do desenvolvimento do pensamento lógico da criança.

Quadro 4 – Fases da conservação das quantidades contínuas e descontínuas

FASES/ ETAPAS CARACTERÍSTICAS RESULTADOS

Ausência de reversibilidade. A criança não acompanha as transformações/movimentos dos objetos. Os processos não são considerados, apenas seu resultado final. Respostas baseadas nas configurações dos objetos.

Ausência de conservação

Oscila suas respostas de acordo com as configurações (perceptiva).

Respostas intermediárias (semiconservação)

A quantidade permanece a mesma. Respostas baseadas nas transformações.

Conservação necessária

Fonte: Elaborado a partir de Piaget e Szeminska (1975)

Na primeira fase da conservação, “a criança não se confunde, pois não tem consciência das contradições de seus julgamentos, e não se sente perturbada diante dos resultados de uma experiência que se opõe a suas predições” (RANGEL, 1992, p. 36). Nesse período, o que se observa, quanto as esquemas cognitivos da criança, é fruto da percepção das configurações dos objetos, o que as leva fixar aos resultados finais e não se prendendo aos processos que deram origem a eles.

Uma manifestação importante desta fase é o caráter intuitivo da criança, o qual não permite à criança lidar com diversas informações diferentes na situação apresentada, pois, segundo Goulart (2005, p. 60), ela “não tem ainda uma clara representação conceitual que permita chegar à resposta correta.” Assim, mesmo que acompanhe as transformações, esta ação não é relevante, logo, não é concebida como uma passagem reversível de um estado ao outro, o que deixa a quantidade invariável.

No nível da primeira fase, Piaget e Szeminska (1975) estabelecem que a quantidade reduz-se às relações assimétricas fornecidas entre as qualidades, ou seja, às comparações para “mais” ou para “menos”, implícitas em juízos tais como “é mais alto”, “menos largo” no movimento dos líquidos. Desse modo, o sujeito não está atento para a invariância dos transvasamentos dos líquidos, de modo que “tudo se passa como se a criança ignorasse a noção de uma quantidade total, ou multidimensional, e não pudesse jamais raciocinar, a não ser sobre

uma única relação de cada vez, sem coordená-la às outras” (PIAGET; SZEMINSKA, 1975, p. 32), a ponto de não perceberem a conservação da quantidade.

O que esta primeira fase demonstra é que, pela ausência de conservação, a criança, ao estar diante dessas situações, não consegue estabelecer e admitir que uma mesma quantidade de líquidos permanece invariante diante das mudanças nas formas dos recipientes. Logo, se ela não compreende a conservação da quantidade, então, não chegou a construir a noção da própria quantidade, no sentido de quantidade total, o que indica que ela não pode compor relações que ultrapassassem as suas percepções, o que leva Piaget e Szeminska (1975, p. 33) afirmarem que “as relações perceptivas de quantidade bruta utilizadas pelas crianças deste nível não são exatamente componíveis entre si, nem aditiva, nem multiplicativamente”, como serão esclarecidas mais para frente.

Já a segunda fase, o “elemento perturbador” (RANGEL, 1992, p. 37), que no caso é representado pela largura ou altura do recipiente, torna-se fundamental para a percepção da criança, no qual permite considerar, ora o nível como determinante da quantidade, ora a largura do recipiente, e em outros momentos, os dois simultaneamente. São processos lentos, que começam a ser notados pela criança, mas que ainda se “perdem” aos olhos delas.

Nesse nível, Piaget e Szeminska (1975, p. 38) admitem que “a criança compreende bem o problema, mas não se acha de modo algum convencida, a priori, da invariância da quantidade total.” Diante disso, a criança oscila sua resposta, diante dos resultados apresentados, por não conseguir a satisfação das respostas, evidenciadas do seguinte modo:

[...] apercebe-se, então, comparando as duas colunas da mesma altura, que uma é mais larga que a outra e declara então que o primeiro vidro contém mais líquido, porque é “mais grosso”, “maior” etc. Uma segunda relação, a de largura, é portanto explicitamente invocada ao lado da dos níveis e “logicamente multiplicada” com esta última [...]. A criança esquece as larguras e acredita que o primeiro desses recipientes contém mais que o segundo. Por outro lado, assim que reestabelece a igualdade dos níveis, fica novamente impressionada pela desigualdade das larguras e assim sucessivamente (PIAGET; SZEMINSKA, 1975, p. 39).

Em suma, nesta fase, as crianças conseguem estabelecer uma comparação com seus resultados e suas hipótese inicias, a ponto de colocá-las em jogo novamente em seu teste. Entretanto, essa coordenação ainda é incompleta, uma vez que elas acabam retornando a sua atenção somente para uma das dimensões consideradas. De todo modo, segundo Piaget e Szeminska (1975, p. 39), a criança procura coordenar as relações perceptivas em jogo e transformá-las em relações verdadeiras, ou seja, operatórias, ainda com dificuldades, pois, “é somente com os níveis iguais que ela tenta multiplicar logicamente as relações de altura e

largura entre si, mas assim que essa relação se esboça, uma das relações leva a palma sobre a outra, numa alternativa sem fim.”

Ainda nessa fase, as crianças começam a compreender que o todo permanece idêntico a si mesmo se for repartido em duas metades. Mas, do mesmo modo, que a multiplicação das relações permanece incompleta, tal partição permanece breve e fragmentária, ou seja, Piaget e Szeminska (1975) perceberam que nesta fase, a multiplicação e a partição parecem caminhar juntas, detendo-se nas mesmas dificuldades e limitações, sentidas pelas crianças.

Já no estágio três, as crianças já são consideradas conservadoras, cujos resultados apontam para respostas corretas, mesmo que interferidas com contra argumentações ao contrário. Nesse momento, portanto, a criança já percebe o movimento de transformações que ocorrem nos objetos e o elemento perturbador (largura x altura) não lhe causa mais estranhamento como antes.

Nesta fase não existe mais o fator perturbador, pois o sistema cognitivo se torna ao mesmo tempo móvel e fechado e os dados exteriores não se constituem mais em fontes de contradições. Ocorre, assim, a generalização das antecipações e retroações sob a forma de composições operatórias direta e inversa (RANGEL, 1992, p. 39).

A resposta da criança nesse nível, quando da descoberta da invariância da quantidade, ela afirma “como uma coisa tão simples e tão evidente que parece independente de qualquer multiplicação das relações e de qualquer partição” (PIAGET; SZEMINSKA, 1975, p. 40). Agora, a criança já se encontra em um nível capaz de um pensamento lógico e abstração de relações operatórias, com a reversibilidade concluída, o que a faz perceber a relação nitidamente entre os movimentos e as transformações, deduzindo, dessa maneira, a igualdade da quantidade no experimento entre os líquidos, por exemplo.

Em relação ao conceito de reversibilidade, Piaget (1967) esclarece que uma operação mental é reversível quando, a partir do resultado desta operação, se pode encontrar uma operação simétrica com relação à primeira, e que leva de volta aos dados desta primeira operação, sem que estes tenham sido alterados. Desse modo, para que isto seja possível, é preciso que haja operações propriamente ditas, isto é, construções ou decomposições, quer sejam manuais ou mentais, tendo por finalidade prever ou reconstituir os fenômenos.

De acordo com Rangel (1992), o conceito de reversibilidade é básico para o entendimento do processo de construção da inteligência. Esta se orienta, desde o início, para uma reversibilidade que aumenta sem cessar em importância no curso do desenvolvimento. É ela que torna o pensamento móvel e dinâmico, pela possibilidade do “ir” e “vir” no ato de

pensar, coordenando diferentes relações simultâneas, ao perceber que qualquer transformação realizada sobre os objetos pode ser corrigida por uma transformação inversa.

Entretanto, é válido ressaltar, segundo as proposições de Piaget e Szeminska (1975), que não é a descoberta da conservação das quantidades que acarreta a possibilidade de multiplicar as relações entre largura e altura por exemplo, mas antes o seu inverso. Ou seja, a possibilidade de estabelecer a multiplicação que leva à conservação e ao entendimento de que os elementos, independente das modificações, permaneçam o mesmo em quantidade.

Ainda que as características das fases de conservação se mantenham também em relação à conservação das quantidades descontínuas ou discretas (de ordem aritmética), um elemento importante aparece como uma das fontes do próprio número: a correspondência biunívoca e recíproca. As crianças, submetidas a estes testes, ao invés de líquidos, faziam uso de “coleções de contas”, as quais permitiram o aparecimento da contagem pelas crianças. Em um nível inicial ou da primeira etapa, temos, por exemplo:

[...] faz-se pôr uma conta num recipiente determinado todas as vezes em que se coloca uma outra no recipiente paralelo. Ora, esta correspondência biunívoca e recíproca, que equivale, assim, a uma enumeração prática, não basta tampouco para garantir a conservação (PIAGET; SZEMINSKA, 1975, p. 54).

Como podemos perceber, a correspondência não conduz, de modo algum, a uma equivalência, o que leva a criança ainda não perceber que o número de contas é a mesma, independente das mudanças ocorridas e com os diferentes recipientes utilizados.

Não somente a correspondência termo a termo, mas a própria enumeração aparecem, assim, à criança da primeira fase, como processos de quantificação muito menos seguros que a avaliação direta devida às relações perceptivas globais (quantidades brutas). Com efeito, a numeração falada que o meio social impõe, às vezes, à criança, deste nível, permanece inteiramente verbal e sem significação operatória (PIAGET; SZEMINSKA, 1975, p. 56).

De fato, como salienta Rangel (1992), a invariância numérica (conservação) só é atingida quando o sujeito é capaz de conceber que um número permanece idêntico a si mesmo, seja qual for a disposição das unidades que o compõem. Nesse sentido, a totalidade passa então a ser resultante da coordenação de diversas relações percebidas, cujo julgamento transcende os próprios dados fornecidos pela percepção. Ressalta ainda que, o desenvolvimento da correspondência biunívoca e recíproca constitui-se numa das fontes do número operatório. Porém, se a correspondência termo a termo surge no decorrer da evolução desta estrutura, a sua