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ABORDAGEM HISTÓRICO-SOCIAL DA FAMÍLIA CONCEITO DE FAMÍLIA

No documento Psiquiatria Forense de Taborda (páginas 167-169)

Etimologicamente, a palavra família provém do latim famulus, que significava, na Roma Antiga, o conjunto de empregados de um senhor. Naquela época, o pertencimento a uma família era determinado mais pela autoridade a que alguém estava submetido do que pelos laços de sangue. Os dicionários franceses e ingleses, entre os séculos XVI e XVII, traziam definições de família centradas ora na coabitação, ora no parentesco ou na consanguinidade. Em meados do século XVIII, teve início a redução dos membros da família a uma tríade, assim como a agregação das ideias de coabitação e parentesco. No século XIX, essas noções foram definidas com exatidão, como aparece em Littré, em 1869:17 “[...] as pessoas de um mesmo sangue, vivendo sob o mesmo teto, e, mais

especialmente, o pai, a mãe e os filhos”.

Shorter18 compara a família na sociedade tradicional “como um navio amarrado ao

seu ancoradouro”, a qual, para se transformar em família moderna (do século XIX para o XX), rompeu as amarras, separando-se da comunidade ao seu redor, alijando-se da ideia tanto de linhagem como a de considerar parentes somente os familiares mais próximos. Para esse historiador, tais fatos ocorreram devido ao surgimento de três sentimentos: o amor romântico, presente na escolha do parceiro, quando a prioridade deixou de ser a busca do dote e da linhagem e passou a ser a busca pela felicidade pessoal, pelo autodesenvolvimento e pelo amor conjugal; o amor maternal, pelo qual as mães passaram dar prioridade à relação com seus bebês, considerando o bem-estar dos filhos como seu maior objetivo de vida; e oamor ao lar, com a família deixando de ser uma unidade produtiva e reprodutora, passando a constituir uma unidade emocional, capaz de prover tudo aquilo que antes a comunidade oferecia. Esses fatos geraram a troca da fidelidade ao grupo de iguais pela fidelidade à intimidade emocional, bem como a troca da sociabilidade pela domesticidade. Assim, a família passou a se constituir como uma unidade sociológica, incumbida de transformar organismos biológicos em seres sociais. Os pais, agentes socializatórios por excelência, são os responsáveis primordiais pela transmissão dos padrões culturais, ideológicos e morais. Na perspectiva histórico-cultural, “todo indivíduo é formado nas e por meio das relações sociais”, e:19

Cada um nasce simultaneamente duas vezes: ao mesmo tempo em que nasce biologicamente, por meio do parto, nasce socialmente em um grupo familiar, pertencendo a uma classe social, em determinada época, imerso em signos culturais.

Na sociedade atual, mais mulheres se vincularam ao mercado de trabalho, em uma intensidade só antes vista na Revolução Industrial, no século XVIII. Com isso, elas passaram a ter acesso aos recursos financeiros antes disponíveis apenas aos homens. Esse fato gerou desequilíbrio de poder dentro da família, uma vez que a mulher passou a ter grande importância no orçamento doméstico e a influir na determinação dos destinos da família. Além disso, tem havido maior relaxamento das normas morais tradicionais, que proibiam o divórcio, a separação de fato, a união não legalizada e as expressões da homoafetividade. Esses acontecimentos causaram uma crise relacional e de sentimentos na família pós-moderna, como afirma Shorter:18 “[...] homens e mulheres

ligam-se e separam-se como vagões de mercadorias em um pátio de manobras”. Tal crise gerou dois efeitos: instabilidade inerente ao casal, com consequente aumento na taxa de divórcio, e perda de controle dos pais sobre os filhos, principalmente os adolescentes. Isso tornou-se muito evidente pela ruptura da maioria dos controles sociais que o casal parental era capaz de exercer sobre seus filhos, especialmente a partir das décadas de 1960 e 1970, em quase todos os recantos da sociedade industrial ocidental.

Com a passagem da primazia do dote para a primazia do amor romântico (na família moderna), além da questão da sexualidade (na família contemporânea) como vínculo entre homem e mulher, a instabilidade nas relações conjugais aumentou consideravelmente, uma vez que afetos, amor e sexualidade se assentam em bases transitórias e imprevisíveis. Esse acréscimo, da valorização da sexualidade como fonte obrigatória de prazer no casamento, ajudou a intensificar, ainda mais, a taxa de divórcios, segundo Werner.16

Lévi-Strauss, após estudar famílias e grupos sociais em todas as latitudes, traçou um modelo reduzido que engloba todos os critérios invariantes e estruturais que, a seu ver, distinguem uma família. Esse modelo estruturalista mostra-se bastante inadequado se comparado aos acontecimentos e possibilidades a que as famílias atuais estão expostas (adoção, divórcio e técnicas de inseminação artificial, como doação de sêmen e útero de substituição) e às estruturas familiares contemporâneas (famílias monoparentais, recasadas, sociais, homoafetivas que adotam crianças). Para incorporar e compreender esses e outros fatos relativos às famílias contemporâneas, postulamos que o modelo dos

1) 2) 3) 4) 5) 6)

Estressores Verticais e Horizontais, difundido por Carter e McGoldrick,20 mostra-se

mais adequado. Essas autoras desenvolveram seu modelo a partir do conceito de ciclo de vida da família, criado pelos sociólogos Duvall e Hill na década de 1940, o qual preconizava que as famílias passam por oito estágios em seu desenvolvimento, cada um deles com tarefas desenvolvimentais distintas. O conceito foi modificado, por Carter e McGoldrick, transformando as tarefas desenvolvimentais em processos emocionais de transição e reduzindo de oito para seis os estágios do ciclo de vida familiar:20

saindo de casa: jovens solteiros

a união de famílias no casamento: o novo casal famílias com filhos pequenos

famílias com filhos adolescentes

lançando os filhos e seguindo em frente (etapa do “ninho vazio”) famílias no estágio tardio da vida

Roudinesco21 trouxe à discussão a questão da grande desordem pela qual passa a

família atual, com a ascensão das mulheres no controle da natalidade e a morte da autoridade paterna. Conforme a autora:

Sem ordem paterna, sem lei simbólica, a família mutilada das sociedades pós- industriais seria pervertida em sua própria função de célula de base da sociedade, monoparental, homoparental, recomposta, desconstruída, clonada, gerada artificialmente.

No documento Psiquiatria Forense de Taborda (páginas 167-169)