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Os profissionais da prática forense infantil e juvenil devem estar habilitados para atuar em

No documento Psiquiatria Forense de Taborda (páginas 159-165)

casos que envolvam crianças e adolescentes que

vivem nas ruas, que sofrem violência e que

fazem uso de álcool e outras drogas,

contribuindo para o adequado encaminhamento

de medidas protetivas e garantia de direitos

fundamentais.

V I N H E T A

CASO 1

Por indicação do promotor da infância, o magistrado da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso determinou a realização de perícia psiquiátrica em Vinícius (sexo masculino, 16 anos, pardo, que não frequenta escola há dois anos), na qual consta que “o genitor relatou que seu filho estaria apresentando comportamento alterado, agredindo seus irmãos e cometendo furtos na própria residência”. Verificou-se, no curso da ação, que o adolescente vive em situação de risco, tendo em vista o consumo abusivo de drogas. Ele tem se recusado a fazer tratamento no Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) do município onde reside. Foi internado em hospital psiquiátrico por solicitação dos genitores e determinação judicial há cerca de dois meses, quando evadiu. A questão central é definir o diagnóstico e o tratamento, a ser disponibilizado pelo poder público municipal, mais adequado ao adolescente.

CASO 2

João Carlos, 15 anos, branco, estudante da 8ª série do ensino fundamental, residente em um abrigo municipal no interior do Estado do Rio de Janeiro, foi encaminhado à equipe de serviço universitário de psiquiatria forense da criança e do adolescente. Tal encaminhamento decorre de determinação da magistrada, em razão de quadro com “alterações de comportamento, atos infracionais contra o patrimônio, violência e ameaças contra pessoas, incluindo ato infracional análogo à tentativa de estupro; uso e comércio de drogas ilícitas, uso de álcool, humor muito oscilante, relações interpessoais constantemente conflituosas e dificuldade em aceitar regras”. Além dos processos pelos delitos, há mais dois processos relacionados ao adolescente: um para averiguação de situação de risco e outro contra sua genitora, para a extinção do poder familiar, proposto pelo Ministério Público. Neste último, a genitora-ré declarou, em juízo, que “prefere ir presa a ter de aceitar o filho de volta em casa”. Na análise documental de seu histórico médico-legal, consta: abandono, fuga de casa aos 13 anos e evasão do centro de atendimento onde cumpria medida socioeducativa. Dos 13 aos 15 anos, o adolescente recebeu vários diagnósticos de instituições públicas, e, em laudos oficiais, foram

identificadas várias alterações mentais e de comportamento, como as seguintes: (i) “desprovido de compaixão ou culpa, sem noção de limite, denotando frieza, além de dito ser portador de personalidade psicopática, sem qualquer possibilidade de reversão”; (ii) “quadro de ambivalência afetiva, alucinações auditivas, dissociação do pensamento, ideação delirante de cunho persecutório, sendo seu quadro no momento diagnosticado como transtorno esquizofrênico”; (iii) “retardo mental leve e transtorno da conduta não socializado”. Além dos vários exames psiquiátricos, já haviam sido realizados eletrencefalograma digital e mapeamento cerebral, os quais indicaram instabilidade da atividade das áreas posteriores. Esse adolescente, entretanto, foi novamente avaliado e, em seguida, acompanhado pelo setor de neuropsiquiatria infantil da universidade federal, onde seus primeiros diagnósticos foram reformulados. Depois disso, ingressou em um programa de jurisprudência terapêutica supervisionado pelo juízo.

Os dois casos apresentados representam demandas comuns para profissionais que atuam na interface entre saúde mental e lei, principalmente no que se refere à psiquiatria forense da criança e do adolescente. A propósito, no Brasil, atualmente, foi proposta a redução da maioridade penal, visando processar, condenar criminalmente e encarcerar adolescentes em conflito com a lei a partir de 16 anos, em vez dos atuais 18 anos, sendo mais provável que os parlamentares revejam a idade para a responsabilização criminal apenas nos casos de crime hediondo, homicídio doloso e lesão corporal.

De qualquer forma, será mantido o processo de culpabilização da vítima, uma vez que se exige com rigor os deveres, mas denega-se os direitos básicos desse segmento da população, haja vista que

[...] um jovem habitante das nossas periferias tem 300 vezes mais chance de ser vítima de homicídio do que um senhor de meia-idade residente em bairro de classe média.1

Quanto à criminalidade, sabe-se que a intervenção preventiva é muito mais eficaz que as políticas meramente repressivas. O psiquiatra forense da infância e

adolescência, portanto, deve estar preparado para opinar se o menor de 18 anos apresenta desenvolvimento mental completo e é capaz de agir de acordo com esse grau de entendimento, tendo em vista que, pelo critério biológico hoje adotado, a idade (seja 18 ou mude para 16 anos) é o único modo de aferir a maioridade penal, independentemente do grau de discernimento do indivíduo.

Da mesma forma, o profissional precisará estar a par do que se compreende hoje por família. No momento em que um projeto de lei no Brasil tenta engessar o que venha a ser família na contemporaneidade, torna-se necessário fundamentar o conceito de família, que vem sofrendo transformação pelas mudanças culturais, sociais e econômicas, conforme mostra Werner,2 exigindo a permanente atualização da equipe

psiquiátrica forense em função do elevado número de crianças e adolescentes que se encontram no centro de disputas judiciais geradas por dissolução do vínculo conjugal ou por situações sociofamiliares complexas e desafiadoras. Escreve Werner:2

[...] nos dias de hoje, constituir uma família, que nasce com a chegada de um filho, independentemente de sua origem, é montar um quebra-cabeças, sem olhar o desenho da cena que está na capa da caixa que o trouxe; não se sabe ao certo como será o “desenho final” a ser produzido, mas se confia no bom andamento do processo.

Encontra-se em tramitação, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei que trata do Estatuto da Família,3 fato que vem gerando muita polêmica, em função da definição que

essa proposta legal está apregoando: entidade familiar é o núcleo formado a partir da união entre homem e mulher. Em tempos de diversidade cultural e social, reduzir a ideia de família apenas ao núcleo formado por heterossexuais em co-habitação é ir contra todos os avanços sociais e políticos que vêm se descortinando no mundo, como o ocorrido, recentemente, nos Estados Unidos, a partir da aprovação do casamento homoafetivo em todos os Estados que compõem aquela federação.

É sabido que mudanças sociais esbarram em obstáculos (barreiras oriundas da própria estrutura social) e em resistências (atuações conscientes e deliberadas para impedir a mudança social). A partir do momento em que tal projeto de lei define entidade familiar como núcleo social formado a partir somente da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou derivações dessa união, como viuvez ou divórcio, estimula-se intenso debate social, com posições tradicionais – e às vezes reacionárias –, de um lado, em oposição a posturas mais progresistas – e às vezes revolucionárias –, de outro. Assim, entre posições

ideológicas, igrejas e partidos políticos, muitas crianças e adolescentes, oriundas de famílias homoafetivas (por adoção, recasamento ou técnicas de reprodução assistida [TRAs]), serão consideradas filhos sem status, por não terem pais, mães e famílias dentro da norma social vigente, que é excludente, atemporal e injusta.

Nesse sentido, analisar questões relacionadas à função parental de proteger e educar os filhos,4 as quais vão além dessa função, torna-se mister, considerando que os

profissionais forenses terão de lidar com famílias constituídas desde pela forma tradicional – nuclear, casada pela primeira e única vez (e nem por isso com garantia de equilíbrio ou harmonia) – até:4

Famílias pós-separação, que sempre geram duas famílias monoparentais, quando um dos cônjuges pode ficar com a guarda unilateral do(s) filho(s) da família nuclear original, ou ambos os cônjuges podem dividir formalmente as responsabilidades, por meio da guarda compartilhada.

Famílias monoparentais ou uniparentais não oriundas de separações, mas já fundadas na situação de um só genitor. É o caso das chamadas mães solteiras – caso em que um pai conhecido, em uma relação estável, rompe a relação afetiva diante de uma situação de gravidez, restando à mulher assumir sozinha a gestação e a criação do filho; daquelas constituídas por técnicas de inseminação artificial – a partir de doadores anônimos, por meio de bancos de sêmen, chamadas de “produções independentes”; e também daquelas oriundas de relações sexuais fortuitas, com ou sem consentimento, anuência, concordância ou conhecimento do doador do sêmen, quando a mulher deseja ficar grávida ou aceita a gestação após sua constatação, mesmo sem apoio ou conhecimento do parceiro.

Família recasada ou recomposta (“família mosaico”), com toda sua complexidade devido aos diversos arranjos possíveis; compreende a união de pessoas com estado civil distinto (homens que podem ser solteiros, casados, separados, divorciados ou viúvos; com mulheres que podem ser solteiras, casadas, separadas, divorciadas ou viúvas), em presença ou não de filhos, biológicos ou adotados, oriundos do casamento anterior de qualquer um dos cônjuges, ou advindos da atual união, dando origem à famosa frase “os seus, os meus e os nossos”. Essa complexidade de arranjos torna o trabalho do profissional de saúde mental, dos peritos e dos operadores da lei um desafio a mais.

Famílias homoafetivas, possíveis a partir da adoção por um dos membros do casal (de acordo com a lei vigente) ou por ambos (de acordo com algumas decisões da jurisprudência). Essas famílias também podem surgir pelas técnicas de inseminação

artificial, pela doação de um gameta masculino a um casal de mulheres ou pela doação de óvulo e uso de “barriga de aluguel” por um casal masculino. Também podem ocorrer por acordos entre casais masculinos e femininos, em que o sêmen do doador masculino é introduzido na receptora feminina, de forma manual, ou por meio de fertilização in vitro, comum na reprodução assistida. Assim, todos se tornam pais e mães, em arranjo familiar peculiar (nesses casos, em geral, os outros dois cônjuges que não participaram da fertilização tornam-se padrinhos da criança gerada, e essa criança tem pai e mãe biológicos conhecidos, mas que nunca moraram juntos em razão da orientação sexual de cada um). Há, ainda, outra possibilidade: quando um dos parceiros dessas uniões homoafetivas viveu em união heterossexual anterior e, ao romper essa relação, levou consigo seu(sua) filho(a) para o novo arranjo familiar. Nesse caso, o par do casal homoafetivo irá se tornar pai ou mãe socioafetivo, uma vez que exercerá a função materna ou paterna – dependendo do caso – como madrasta ou padrasto de enteado(a), filho(a) biológico(a) de seu par atual.

Famílias formadas por transexual e sua parceria, constituída por um(a) transexual que se submeteu, ou não, a cirurgia de redesignação sexual, para a construção de nova genitália (neopênis ou neovagina). Nesses casos, a possibilidade de serem pais ou mães seria muito próxima à dos casais homoafetivos: por adoção, por doação de gametas e uso de TRAs no parceiro não transexual ou pela utilização de útero de substituição; ou, ainda, a maternidade/paternidade socioafetiva, através dos(a) filhos(as) de casamentos anteriores dos parceiros, tanto do parceiro trans como do parceiro não trans. A diferença dessas famílias em relação às famílias homoafetivas é que, se um dos parceiros tiver optado pela transgenitalização, ficará infértil, pois a cirurgia limita a reprodução. Entretanto, os gametas podem ser retirados e congelados antes da cirurgia definitiva, possibilitando sua utilização por meio de TRAs.

Famílias, em futuro próximo, com crianças geradas por engenharia genética, criando dilemas bioéticos já previstos por Jürgen Habermans5 e Francis Fukuyama.6

A disponibilização de técnicas científicas reproduzirá novos seres humanos, possibilitando aos pais idealizarem, projetarem e criarem a prole com características orgânicas previamente definidas. Tudo isso aconteceria, obviamente, sem a autorização prévia dos filhos, os quais poderiam mais tarde questionar as escolhas – baseadas em gosto, credo, cultura, preconceito, etc. – dos pais, inclusive juridicamente.

Outro aspecto a ser ressaltado é a máxima a respeito do melhor interesse da criança, que reflete o paradigma atual do ordenamento jurídico brasileiro consagrado tanto na Constituição Federal (CF)7 como no Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA)8 e no atual Código Civil (CC).9 Nessa perspectiva, este capítulo visa contribuir

na construção de uma base conceitual que articule princípios éticos e jurídicos com o conhecimento sobre as peculiaridades das crianças e dos adolescentes. Para tanto, será feito um breve resumo da evolução histórica do conceito de família, fornecendo algumas indicações socioculturais para a compreensão dos problemas familiares contemporâneos. Serão também apresentadas noções de direito de família, principalmente no que diz respeito à base legal do novo direito de família no Brasil. No tópico referente à psiquiatria forense da criança e do adolescente, será apontada a necessidade de se utilizar o modelo mais adequado de articulação da psiquiatria da infância e adolescência com o direito, apresentando, ainda, parâmetros operacionais para sua concretização na prática.

No documento Psiquiatria Forense de Taborda (páginas 159-165)