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Abordagem sócio-histórica

2 OBJETIVOS E PRESSUPOSIÇÕES TEÓRICAS

2.6 História das ciências

2.6.2 Abordagem sócio-histórica

Em concordância com nossa abordagem da comunicação da quantidade, adotamos para a história das ciências em geral a perspectiva sócio-histórica.

Fazemos nossas as asserções do livro “The Scientific Revolution” (A Revolução

Científica) do historiador Steven Shapin140 (1996). Shapin parte da assunção que “a ciência é uma atividade situada social e historicamente, que deve ser compreendida em relação aos

contextos em que ocorre.”141 (1996, p. 9). Por isso, sua história deve abranger não apenas as ideias como também a dimensão coletiva daqueles que a praticam: “a tarefa do historiador voltado para a sociologia é apresentar o fazer e a detenção do conhecimento como sendo processos sociais”.142(1996, p. 9) No que diz respeito a uma ciência ou racionalidade que existiria fora da sociedade e da história, ele corrobora nossas posições teóricas, apoiadas em Bourdieu, que apresentamos na seção 2.3 quando comentamos a teoria do Ator-rede de Callon e Latour:

[…] identificar o que é sociológico na ciência com o que é externo a essa parece uma forma curiosa e limitada de proceder. Há tanta sociedade dentro do

laboratório do cientista, e interna ao desenvolvimento do conhecimento científico, quanto há fora dele.143 (SHAPIN, 1996, p. 10)

Tendo aceito esses pontos, mencionemos as três oposições que, segundo o filósofo Jean-François Braunstein (2008, p. 87-103), marcam a história das ciências e das quais

140Steven Shapin é co-autor da obra de referência “Leviathan and the air-pump” (SHAPIN; SCHAFFER, 1985). 141science is a historically situated and social activity and that it is to be understood in relation to the contexts in which it occurs.

142 the task for the sociologically minded historian is to display knowledge making and knowledge holding as social processes. 143[…] the identification of what is sociological about science with what is external to science appears to me a curious and a limited way of going on. There is as much society inside the scientist's laboratory, and internal to the development of scientific knowledge, as there is outside.

comentaremos apenas a última: internalismo/externalismo,

whiggismo/presentismo/historicismo, continuísmo/descontinuísmo.

O gênero da história das ciências144, afirma Georges Canguilhem (1989[1968], p. 51-58)145, foi inaugurado por Fontenelle, como também, coincidentemente, segundo diversos autores, o da DC. Houve histórias das ciências anteriores, como a da Royal Society do reverendo Thomas Sprat, de 1667146, mas não eram gerais como a do francês – nem, vale mencionar, periodizadas, a periodização sendo um critério definitório da revista científica (MEADOWS, 1999, p. 8).

O descontinuísmo já está presente nos escritos do também 1º secretário da Academia de Ciências francesa em seu “Prefácio sobre a utilidade das matemáticas” (“Préface sur l'Utilité des mathématiques...”) (FONTENELLE, 1699, p. 4-13) e discurso preliminar dos “Eloges des Académiciens avec l'Histoire de l'Académie Royale des Sciences”147. Michel Foucault cita um trecho desse texto cujo final salienta, com muito propriedade para nossa tese, a relação entre história e divulgação.

[Fontenelle] retomou primeiro o tema da “descontinuidade”. Velho tema que se delineou muito cedo, a ponto de ser contemporâneo, ou quase, do nascimento de uma história das ciências. O que marca essa história, já dizia Fontenelle, é a formação súbita de certas ciências « a partir do nada », é a rapidez extrema de certos progressos […] é a distância que separa os conhecimentos científicos do “uso comum” 148 (FOUCAULT, 1978, sem paginação)

O fato de os cientistas se tornarem objeto de um história particular reforça tanto sua instituição como grupo distinto quanto, reciprocamente, a do leigo, relegado em outro tempo, dessincronizado da verdade racional pelo uso e senso comuns.

Quanto às revoluções, Fontenelle já as augurava como inevitáveis:

A história não fornece em toda sua extensão exemplos de virtude nem exemplos de virtude nem Regras de conduta. Fora disso, é só um espetáculo de revoluções perpetuais, de nascimentos e quedas de impérios, […] que arrasta tudo e muda continuamente a face da terra (FONTENELLE, 1699, p. 8)149

Na contemporaneidade, Thomas Kuhn pode ser citado entre os representantes do

144O pioneirismo do ensino acadêmico da História das ciências é atribuído a George Sarton (PORTER, 2007, p. 116). 145“Fontenelle, philosophe et historien des sciences”, em (CANGUILHEM, 1989[1968], p. 51-58).

146“History of the Royal Society of London”. 147Mencionado por (SHAPIN, 2008, p. 36).

148Il a repris d'abord le thème de la « discontinuité ». Vieux thème qui s'est dessiné très tôt, au point d'être contemporain, ou presque, de la naissance d'une histoire des sciences. Ce qui marque une telle histoire, disait déjà Fontenelle, c'est la soudaine formation de certaines sciences « à partir du néant », […] c'est la distance qui sépare les connaissances scientifiques de l’ « usage commun ». Disponível em: http://1libertaire.free.fr/MFoucault239.html (Acesso em: 20 de dezembro de 2011)

descontinuísmo. Sua abordagem interessa-nos porque, como Price (1963, p. 64-65), destaca a acumulação do conhecimento, aproximando-se da problemática da reprodução simbólica que consideramos central na CI. Kuhn sugere que a reprodução simbólica da sociedade não significa apenas reprodução literal, mas também, imprescindivelmente, rupturas inovadoras que levam à “violação ou distorção” do sentido normal e puramente formal (1987, p. 21). É compatível com nossa concepção da linguagem científica: para Kuhn, a superação das rupturas entre pares causadas pelas revoluções científicas passa pela linguagem e a ambígua metáfora. Metáfora que é um dos traços característicos da obra de Fontenelle considerada pioneira da DC, “A pluralidade dos mundos” (1686), como o nota Marie-Françoise Mortureux (1971)(1991), bem como no gênero de DC em geral. Kuhn chega até a identificar as grandes mudanças com momentos em que a ciência se torna mais acessível ao público:

Na dinâmica, a pesquisa tornou-se igualmente esotérica nos fins da idade Média, recapturando sua inteligibilidade mais generalizada apenas por um breve período, durante o início do século XVII, quando um novo paradigma substituiu o que havia guiado a pesquisa medieval. (KUHN, 2009[1962/1970], p. 41) Mas, se a Ciência não desce até o cidadão, esse ainda pode subir até ela. A mudança de paradigma pode ser acompanhada de mobilidade social (BOURDIEU, 2001, p. 126): os valores das ciências “baconianas” (KUHN, 1977), que valorizam o contato com a realidade pela experimentação, contra a verdade exclusivamente livresca, favorecem a ascensão de classes antes desvalorizadas, como os alquimistas, associados inclusive à venalidade.

No que diz respeito aos continuístas, podemos citar o físico Pierre Duhem (1861 – 1916), que cunhou a “sub-determinação da teoria pelos dados”, reelaborada por Latour e Callon sob o nome de “tese Duhem-Quine”. Mas nos referiremos sobretudo a Alistair Crombie, através do filósofo e historiador das ciências Ian Hacking. Crombie, autor da obra “Styles of

Scientific Thinking in the European Tradition” (1995), apesar de continuísta, foi discípulo de Alexandre Koyré, outro “revolucionário” contemporâneo e um pouco anterior a Kuhn.

No trecho abaixo, Ian Hacking condensa o propósito de Crombie além de nos apresentar um panorama dos quadros de análise atualmente em curso na História da ciências:

Recapitulamos, acrescentando algumas modificações e clarificações, a teoria dos estilos de pensamento da aula de 2003. Na lista original de A. C. Crombie 149L'histoire ne fournit pas dans toute son étendue des exemples de vertu, ni des règles de conduite. Hors de là, ce n'est qu'un spectacle de révolutions perpétuelles dans les affaires humaines, de naissances et de chutes d'empires, de moeurs, de coutumes et d'opinions qui se succèdent incessamment, enfin de tout ce mouvement rapide, quoiqu'insensible, qui emporte tout et change continuellement la face de la terre.

constavam os estilos de pensamento seguintes:

1. O método por demonstração e de derivação das consequências dos postulados, em matemática.

2. A exploração e a medida experimental de relações observáveis mais complexas.

3. A construção por hipótese de modelos analógicos. 4. A ordenação do diverso pela comparação e a taxonomia.

5. A análise estatística das regularidades nas populações e o cálculo das probabilidades.

6. A derivação histórica própria ao desenvolvimento genético.

Na verdade, o conceito de estilo de pensamento científico de Crombie (1978, 1994) é um exemplo entre muitos outros quadros de análise encontrados na história, sociologia e filosofia das ciências. Não exclui os demais: cada qual tem um objetivo próprio. Discutimos o valor e a utilidade, por exemplo, dos

conceitos de Denkstil e Denkkollectif (Ludwik Fleck, 1935) ; conjetura e refutação (Karl Popper, 1935) ; obstáculo epistemológico, corte (Gaston Bachelard, 1938); paradigma, anomalia, crise, ciência normal (Thomas Kuhn, 1962) ; episteme, formação discursiva, enunciado, arquivo (Michel Foucault, 1966, 1969) ; programa de pesquisa (Imre Lakatos 1970) ; temata (Gerald Holton, 1978) ; actante — rede (Bruno Latour, 1980) ; e o « interesse » da escola de Edimburgo (nos anos 1980). Mantemos um certo ecletismo, usando cada um desses quadros por seus objetivos próprios. (HACKING, 2005-2006, p. 417-418)150

Nos apoiaremos na história das ciências em particular para indagar se a concepção de linguagem científica influi sobre a continuidade ou a descontinuidade da acumulação de conhecimento. Como a lógica é considerada por Crombie não como um estilo particular, mas como um constituinte constante da ciência, e que essa mesma lógica é baseada em regras linguísticas explícitas, então temos reunidas as condições para analisar ao longo da História das ciências, desde a Antiguidade até a atualidade, as diferenças de linguagem tanto intra-pares quanto extra-intra-pares.

2.7 Classificação de conhecimento, “tipos naturais”, univocidade e