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Dados, material documental e período histórico analisados

3 METODOLOGIA, MÉTODO, FONTES DE DADOS E MATERIAL

3.4 Dados, material documental e período histórico analisados

A fim de estudar a construção sócio-histórica do objeto, necessária para a compreensão da gênese de suas divisões, e por aí explicitar e construir a barreira da linguagem, analisamos principalmente documentos. É inevitável uma vez que os supostos primórdios da DC a que devemos no mínimo remontar não são diretamente observáveis ou acessíveis. Já

mencionamos que Bourdieu não estabelece uma diferença fundamental entre dados empíricos e documentais, na medida em que nunca existe relação absolutamente imediata ou espontânea do pesquisador com os dados. Admitimos que tal relação é sempre mediada no mínimo por alguma linguagem situada, que tende a guiar segmentações e seleções particulares no campo da percepção e também do entendimento do observador. Mesmo que usássemos aqui a entrevista de algum especialista em história da DC, ainda estaríamos analisando sua

representação, no caso uma transcrição, e ao fim e ao cabo um documento carregado, como qualquer outro, de valores sociais que resta objetivar.

A esse título vale citar a definição de documento de Suzanne Briet, para lembrar que nunca trabalhamos em cima da realidade em si, mas com recortes observáveis, documentados e descontextualizados: “Uma estrela é um documento ? […] Não, mas as fotografias e os catálogos de estrelas, […] os animais catalogados e expostos em um zoológico o são.”167

(BRIET, 1951, p. 7)

Guardamos de Bourdieu que o método começa por recusar a declaração de uma existência ex-nihilo do objeto, no caso, a barreira da linguagem, duvidando de seu caráter unitário absoluto e da naturalidade ou racionalidade pura de sua origem e divisões. Não se deve aceitar como fato a existência de um objeto auto-instituído ou auto-declarado. A asserção científica do objeto faz-se buscando as regularidades, variações e invariantes temporais que distinguem seus recortes internos e externos nas suas relações com outros objetos

comparáveis. No caso, estudamos a barreira da linguagem através de regularidades históricas na divisão social entre linguagem científica e comum, junto com os objetos e/ou categorias tomados em seu emaranhado de relações (leigo, profano, conhecimento verdadeiro,

conhecimento racional, conhecimento puro, verdade a priori, entendimento, cientista, público, déficit, etc...).

As fontes documentais que usamos na análise sócio-histórica dessa divisão são tanto primárias quanto secundárias, as segundas servindo geralmente para contextualizar ou situar as primeiras. Privilegiamos os critérios das ciências (não em oposição ao conhecimento do leigo, mas a outros critérios especializados: políticos, econômicos, religiosos, etc.) para estudar a gênese da DC pela diferença entre linguagem científica e comum. Em consequência, 167 4. Une étoile elle un document ? Un galet roulé par un torrent il un document ? Un animal vivant est-il un document ? Non. Mais sont des documents les photographies et les catalogues d'étoest-iles, les pierres d'un musée de minéralogie, les animaux catalogués et exposés dans un Zoo. (BRIET, 1951, p. 7)

devemos buscar e destacar propósitos sobre linguagem científica e comum, ou sobre sua diferença, em obras de cientistas dos períodos de interesse, bem como situá-los, na sociedade e na história, em relação a outros atores (políticos, econômicos...) com base em estudos de sociólogos e historiadores das ciências. Usamos fontes secundárias também em abono dos resultados obtidos no decorrer de nossas análises, pois não temos a plena autoridade dos historiadores e sociólogos.

No que diz respeito ao período histórico analisado, tivemos que ampliá-lo. Como muitos autores, conforme o mencionamos no capítulo de preliminares, consideram que a DC emerge junto com a Ciência Moderna, pensávamos inicialmente que nosso recorte fosse abranger, a grosso modo, o período desde meados do século 16 até a atualidade. Mas achamos a evidência que os cientistas modernos tinham feito a revolução heliocêntrica perpetuando uma concepção de linguagem herdada dos escolásticos (seja ela Árabe ou Antiga) e que já se falava em barreira da linguagem a respeito da ciência grega da Antiguidade (SHAPIN, 1990, p. 993). Além do mais, do ponto de visto da história da ciências, ficou claro que partir da modernidade era fundar-se em uma definição de Ciência – portanto de comunicação da ciência e de sua divulgação – redutora e discutível.

Os indícios da partilha entre linguagem comum e científica nos levaram a remontar à Atenas dos séculos 5 e 4 a.C., o que estendeu consideravelmente o recorte histórico de nossa pesquisa. Como o dissemos, pretendemos dar prioridade em nossa contribuição à periodização da DC aos indícios especificamente científicos, além de critérios por exemplo políticos (institucionalização do ensino da Ciência pelo ensino público) ou mercadológicos (a DC passa a existir no século 19 como segmento específico do mercado de impressos). Nossa análise da DC deverá abranger portanto desde a Antiguidade até a atualidade.

A parte dedicada ao período entre a institucionalização da ciência no século 17 e os dias de hoje, por já contar muitos estudos, está bastante resumida. No que diz respeito a esse período, assinalemos que, apesar de conhecê-la e de se tratar de uma fonte de dados inestimável, não usamos diretamente a história da Divulgação de Daniel Raichvarg e Jean Jacques (1991), “Savants et ignorants, Une histoire de la vulgarisation des sciences” (Eruditos e ignorantes. Uma história da divulgação das ciências). Uma frase dessa obra resumiria nossas ressalvas: “A vulgarização comunica portanto um saber àquele que não o detém”. (1991, p. 10) De fato, do ponto de vista da sociologia pelo menos, o leigo detém

saber, sim, mas não na forma mais legítima que é o uso científico, com todos seus desenvolvimentos e forma de acumulação, registro, aceitação e circuitos de difusão

específicos. Não se pode afirmar que é o saber em si que o leigo não detém, mas símbolos de reconhecimento como os diplomas. Ou seja: o leigo pode ter aprendido a contar, mas sabe ele contar de forma a poder registrar e avaliar no tempo as perdas e ganhos em dinheiro, forma dominante do valor econômico, tão bem quanto o faria um contador? E, caso o leigo dominar a contabilidade, ainda falta-lhe ter o diploma para ocupar o cargo de contador caso for

exigido. A problemática da DC não nos parece residir na detenção em si do conhecimento em si, ou não, mas sobretudo, além das formas publicamente adquiridas de legitimação, como o conhecimento válido passa a assumir e conserva a aparência de uma substância racional atemporal, natural, semi divina, eterna e absolutamente detida por alguns apenas, quando nada permite afirmar cientificamente que tenha efetivamente essas características, que são de cunho primordialmente religioso.

No que diz respeito ao aparato metodológico de Bourdieu, como já advertimos, é muito complexo, e não pretendemos usá-lo aqui em totalidade ou ao pé da letra.

Cabe no mínimo explicitar o conceito de campo, central para mostrar a construção do objeto, intimamente ligado ao de capital, inclusive capital simbólico, particularmente interessante para nossa abordagem da DC focada na linguagem. Em rigor, o campo permite situar o ator social relativamente aos diversos capitais que detém (simbólico, social,

econômico, científico,...). Uma aplicação metodológica do campo, estritamente conforme a todas as exigências sociológicas de Bourdieu, como por exemplo em “Homo Academicus” (1984), está fora de nosso alcance no presente estudo. Mas buscamos no mínimo reunir as condições de sua aplicação, proporcionando pela análise histórica uma sucessão de imersões em condições particulares, a partir das quais evidenciar invariâncias efetivas da barreira da linguagem, ao invés de postular esta como se fosse uma essência atemporal necessária. O historiador Roger Chartier fornece-nos uma definição do campo bastante próxima de nossas necessidades, e sobretudo de extrema praticidade e relevância para nossa abordagem da DC, como se vê em particular na análise da linguagem da Lógica na Grécia Antiga: “O conceito de campo […] é inteiramente construído para criar um espaço de mediação, tradução ou

redefinição.” (CHARTIER, 2012, p. 100)

explícita da verdade em geral implica sempre uma prática social discursiva particular, irredutível em sua totalidade à “teórica” comunicação sem perda, sempre relacionamos, em cada momento histórico analisado, a linguagem da partilha de conhecimento ao ator social; sabendo que é justamente a omissão, desconsideração ou denegação do papel do ator, e por aí da dimensão prática, sócio-histórica e primordialmente humana da expressão da verdade, que parece ter perpetuado uma separação absoluta entre linguagem científica e leiga, i.e.

construído a “barreira da linguagem”.

No que diz respeito à aplicabilidade eventual dos conceitos bourdieusianos de campo, como também de capital simbólico, para poder dar conta dos atores sociais com construtores da diferença entre linguagem científica e leiga no decorrer da História, já foi atestada nos períodos e sociedades abrangidos. O próprio Bourdieu os usa em sua análise do Atenas do séc. 5 a.C. em “Genèse et structure du champ religieux” (Gênese e estrutura do campo religioso) (1971), e da autonomização da ciência europeia moderna em “Le capital scientifique” (O capital científico) (1975), período geralmente identificado aos balbuciamentos da DC. O historiador Peter Burke escreve, em sua “História social do conhecimento de Gutenberg a Diderot”, que a teoria do capital (cultural, no caso) e da reprodução de Bourdieu aplicam-se adequadamente à análise da organização do saber desde a Alta Idade Média até a Europa Moderna. (2003[2000], p. 38, 51).

Entre as fontes primárias, examinamos autores de destaque na Ciência ou na DC que têm uma concepção explícita de linguagem científica. No período da Modernidade, analisamos trechos de Galileu, Mersenne e Descartes, primeiros modernos a publicarem textos científicos em língua vulgar, além de tratarem explicitamente da relação entre linguagem e

conhecimento. Analisamos trechos de Platão, que permitiram confirmar a perpetuação ou renovação pelos modernos de sua concepção de linguagem científica, junto com a de Pitágoras, justificando que se remonte à Antiguidade Grega. Neste período, com base em historiadores como Lloyd e Vuillemin, especialistas da Filosofia e Ciência antigas, citamos em particular Aristóteles, que explicita uma série de regras e características da linguagem filosófico-científica, registradas por escrito. Seus textos permitem-nos datar certas práticas e observar nosso objeto no início de sua construção, conforme o exige nosso método.

Poderíamos ter continuado pela Índia Antiga afora, analisando, na antiguidade indiana, o Nyaya, obra canônica de lógica, ou a gramática de Panini, mas ficará para trabalhos futuros. A

diferença fundamental entre a abordagem dogmática e, no caso, aquela que mostra a

construção sócio-histórica ou gênese humana do conhecimento, é que a primeira parte de uma omnisciência original. A nossa é sempre relativa ao momento em que pudemos fazer recuar nossa ignorância, com a única certeza de, no final, vê-la crescer.

Quanto às fontes secundárias, são compostas em maioria de sociólogos e historiadores (muitas vezes também filósofos) das ciências, do conhecimento e do livro. Foram escolhidas em sua maioria através de referências achadas em autores da CI, como Bachelard em Pinheiro (1997), e outras ciências sociais, mas também de DC, como José Reis, que nos levou ao estudo histórico da DC de Annette Laming (1952), capital para o avanço de nossa tese, e à Antiguidade. Mencionemos algumas publicações particularmente ricas em descobertas de novos autores que acabamos usando, como um livro de Chartier (2000), autor chave porque é tanto historiador das práticas de leitura e do livro em geral, quanto do livro e autoria de ciência em específico (2012), além de aderir à sociologia de Bourdieu, fundamental para viabilizar nossa abordagem da DC. A esse título, a última aula de Bourdieu no Collège de France (2004[2001]), sobre sociologia da ciências, nos levou a Vuillemin, Bouveresse e a toda a rede de professores dessa instituição. Bourdieu também nos levou à Kuhn (1977)(1957) (2009[1962]) e a Hacking (2002[1975]) e a Canguilhem, que nos levou a Koyré e a Lenoble. Esse, por sua vez, nos fez descobrir Mersenne, personagem prominente dos primórdios da Ciência Moderna, da Comunicação Científica e sobretudo da Divulgação.

Como viemos apresentando esses autores ao longo de nossa tese, quando o contexto o exigia, não seria útil listá-los aqui isoladamente. Por isso nos limitaremos a enumerar alguns daqueles ligados à Sociologia, História e Filosofia, a maioria dos quais já mencionamos: Bachelard, Laming, Kuhn, Mattelart, Bouveresse, Bourdieu e colaboradores, Canguilhem, Lenoble, Foucault, Shapin, Schaffer, Vuillemin, Chartier, Martin, Hacking, Habermas, Daston, Callon, Latour, Lloyd, Vernant, para citar apenas esses.

No que diz respeito especificamente à CI, introduzimos ao longo dos preliminares e das pressuposições teóricas os autores usados, a saber, entre outros: na epistemologia, Brookes, Capurro, Hjorland e Pinheiro; na CC, Ziman, Meadows e Garvey; na organização do

conhecimento Souza e Dahlberg; na RI, Jones; além de outros “clássicos” como Price e Saracevic.

Moirand, Mortureux, Maingueneau; na lexicografia de corpus e semântica, Halliday e colaboradores; nas vertentes cognitivas: Chomsky, Pinker, Bybee e Dehaene.

4 ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA DA DIVULGAÇÃO PELA