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Divulgação Científica ou “Public Understanding of Science”?

Atualmente a DC é reconhecida e institucionalizada.

Na Royal Society of London, primeira academia científica oficializada em 166036 pelo poder político de uma monarquia inglesa recém restaurada, a DC tornou-se parte integrante da tarefa do cientista. Lê-se no resumo de seu relatório oficial37 de 1985, que marca segundo o pesquisador Bauer (2008, p. 7) a emergência do título “Public Understanding of Science” (geralmente traduzido por “percepção pública da ciência [e tecnologia]38”) (discutiremos adiante esse “rebatizado” da DC):

A ciência e a tecnologia desempenham um papel preponderante em nosso dia a dia, tanto em casa quanto no trabalho. Delas dependem nossa indústria e portanto nossa prosperidade nacional. Quase todos os problemas de política pública envolvem ciência ou tecnologia. Todo mundo, portanto, precisa entender um pouco de ciência, de seus sucessos, benefícios e limitações.39 (ROYAL SOCIETY OF LONDON, 1985)

36Disp. em: http://royalsociety.org/about-us/history/ (Acesso em: 2013-08-01)

37Citado por (BAUER, 2008). Nota-se que Ziman publicou um artigo com um título idêntico na revista Science, Technology and Human Values, 16, p. 99-105, 1991.

38Assim foi traduzida a expressão “Public Understanding of Science” nos estudos do PISA acessíveis no site do Ministério de Ciência e Tecnologia, por ex. http://www.mct.gov.br/upd_blob/0013/13511.pdf.

A ciência, que permeia toda a sociedade e contribui para a riqueza nacional, precisaria ser compreendida por todos.

O relatório contém um capítulo sobre as diretrizes que a “comunidade científica” deve seguir para comunicar com os não cientistas em geral. (Como aceitamos em nossa tese pressuposições de Pierre Bourdieu, evitamos usar a expressão “comunidade”, que ele recusa no que diz respeito aos cientistas: “... o que chamamos a comunidade científica – que aliás não é uma comunidade mas um campo com concorrências...” (BOURDIEU, 1997, p. 66) (trad. nossa)).

No trecho abaixo, a comunicação extra-pares é apresentada como parte integrante da competência do cientista.

6. A COMUNIDADE CIENTÍFICA

6.1. Os cientistas precisam aprender a comunicar melhor com todos os segmentos do público, especialmente a mídia. Os dois temas recorrentes do capítulo precedente sobre mídia foram, por um lado, por parte dos cientistas, a desconfiança, a falta de compreensão e muitas vezes de vontade e habilidade em comunicar-se adequadamente com os jornalistas, e por outro a importância das boas relações entre cientistas entre jornalistas para que a ciência seja correta e adequadamente representada na mídia. Boas relações também são necessárias com o Parlamento, o Serviço Público e a indústria. Nosso grupo, embora não seja exclusivamente composto de cientistas, foi um produto da comunidade científica, por isso cabe que nossa mensagem mais direta e urgente seja dirigida aos cientistas: aprender a comunicar com o público, demonstrando boa vontade e considerando que faz parte de nosso ofício. Esse capítulo trata de tais

problemas de comunicação e sugere várias soluções. (THE ROYAL SOCIETY, 1985, p. 24)40

Estão visados aqui “todos os segmentos da sociedade”.

No que diz respeito aos jornalistas, especialistas da comunicação de massa, o relatório coloca-os na posição de varejistas da ciência perante um “grande público”. Reconhece-lhes o monopólio da mediação da verdade científica, em detrimento de um contato direto entre o cientista e o leigo, com as possíveis derivas subsequentes, conforme denuncia Meadows 39Science and technology play a major role in most aspects of our daily lives both at home and at work. Our industry and thus our national prosperity depend on them. Almost all public policy issues have scientific or technological implications. Everybody, therefore, needs some understanding of science, its accomplishments and its limitations. 406.1. Scientists must learn to communicate better with all segments of the public, especially the media. Two recurring themes of the previous chapter on the media were, on the one hand, the scientist's mistrust, lack of understanding and often unwillingness and inability to communicate adequately with the journalist, and on the other hand the importance of a good rapport between scientist and journalist if science is to be properly and adequately represented in the media. This same good rapport is also needed with Parliament, the Civil Service and industry. Our group, though certainly not exclusively scientific, was a product of the scientific community, and so it is appropriate that our most direct and urgent message is for the scientists--learn to communicate with the public, be willing to do so, indeed consider it your duty to do so. This chapter considers the problems of such communication and various suggestions for their solution.

(1997, p. 337,338).

Do lado dos cientistas, o relatório usa a expressão “comunidade científica”, que o

sociólogo Bourdieu rejeita (2004[2001], p. 67), porque não se trata de um segmento composto de unidades pré-construídas e homogêneas, em consenso ou em entendimento puro, mas antes em concorrência e luta pela imposição da verdade segundo regras distintivas, dinâmicas, mais ou menos comuns, uniformes e aceitas.

Entendido do ponto de vista da ciência social de Bourdieu, a Royal Society propõe construir um consenso em torno da Ciência, mas essa busca de consenso, próxima daquela descrita por Ziman (1979, p. 24-25), é um efeito ou fato da políticacientífica, na qual o relatório inclui o que se convinha chamar até então a DC. Em suma, esse documento concebe a DC como parte de uma política, que serve o management, i.e. a produção e gestão das riquezas nacionais, e não como uma comunicação explícita e cientificamente construída dos valores específicos da ciência aos não cientistas.

Conceber a ciência como uma atividade social ao mesmo tempo pressionada (e até certo ponto estruturada) pelas demais e distinta delas, parece-nos fundamental para o estudo da DC. O pesquisador que parte do pressuposto que existe uma ciência completamente autônoma pode ser induzido a procurar, em vão, certos problemas de comunicação entre cientistas e leigos quando esses problemas originam-se de fato nas esferas política, econômica, religiosa, ou outras, que, quando dominam fortemente uma sociedade, estruturam com seus valores a maioria das relações entre atores em esferas dominadas, inclusive a relação de comunicação entre cientistas e leigos.

O estudo da DC pode então requerer a compreensão prévia da posição ocupada pelo cientista em uma sociedade particular, até identificar características que de fato o distinguem, dissociando-as daquelas características de outras esferas, mesmo quando nos são

universalmente apresentadas como sendo as da ciência. A dissociação entre o universal supostamente atemporal e o universal efetivo, por sua vez, pode pedir uma análise histórica que re-contextualize a DC como um processo de construção relacional – tanto intra-pares quanto extrapares – no tempo, produto tanto de conflitos de poder entre esferas e dentro delas, quanto da necessidade de entendimento. A esse título, conforme o pormenorizaremos no capítulo 3, a abordagem metodológica de Bourdieu parece-nos adequada à DC.

sobre “percepção pública sobre ciência” empreendidas pelo programa PISA da OCDE. Martin Bauer condensou essas pesquisas em uma tabela em “Survey research and the public

understanding of science” (2008, p. 3).

No Brasil, as conclusões do mesmo PISA encontram-se resumidas por Désirée Motta-Roth (2011) em seu artigo intitulado “Letramento científico: sentidos e valores” (grifemos que ela usa o conceito de “capital simbólico” de Bourdieu, em harmonia com nossa abordagem):

No Brasil do século XXI, uma ínfima parte da população tem acesso ao capital simbólico do conhecimento, conforme os Relatórios PISA 20002, 20033 e 2006,4 da OECD-Organisation for Economic Co-operation and Development (www.pisa.oecd.org) têm demonstrado. Segundo esses relatórios, grande parte da população brasileira de 15 anos apresenta resultados insatisfatórios na aprendizagem de matemática, linguagem e outras ciências, seu conhecimento e interesse por letramento científico é mínimo e sua consciência das

oportunidades que o letramento científico oferece é praticamente inexistente. (MOTTA-ROTH, 2011, p. 12)

O último relatório do PISA foi publicado em dezembro 210341.

Em um artigo intitulado “Diferença entre pesquisa básica e aplicada: perspectivas sociológicas e linguísticas” (MERIGOUX, 2014, p. 11-48), examinamos como a OCDE, da qual o PISA depende, concebe a pesquisa científica, inclusive a diferença entre pesquisa básica e aplicada, em seu “Manual de Frascati”, hoje referência internacional incontornável. Mostramos que sua definição concede um lugar preponderante a critérios não científicos, nomeadamente políticos e econômicos, aceitando inclusive que estruturem o conjunto da ciência, com o risco de instrumentalizá-la completamente. Também mostramos como a ciência social, em particular a sociologia de Bourdieu, fornece-nos fundamentos científicos (i.e. 'de dentro da ciência' por assim dizer, mas não exclusivamente42), para conceber a ciência como uma atividade imersa na sociedade, onde está em relação com outras como a política e a economia, e das quais não pode portanto ser absolutamente cortada até mesmo para ser entendida, mas às quais não pode ser reduzida. Como o comprovam os estudos empíricos do sociólogo fundados em seu conceito de campo, a ciência tem estrutura e valores distintos, embora, vale mencionar, “impuros”, em particular o de não ser, segundo ele, uma teoria pura, como muitas vezes se o pretende, mas uma teoria da prática, ou praxeologia. Para Bourdieu, a própria divisão da pesquisa entre básica (teórica) e aplicada (prática), que funda a definição da OCDE, não é nem constante nem definitória da ciência. O exame da gênese sócio-histórica 41Disp. em: http://www.oecd.org/pisa/keyfindings/PISA-2012-results-brazil.pdf (Acesso em: 2014-01-10) 42Aprofundamos adiante a questão da ciência externa ou interna à sociedade. Cf. seção 3.3. dessa tese.

dessa divisão indica que se deve primordialmente às ordens religiosa, econômica e política (divisão, organização e direção das atividades de produção, sejam elas produção de

conhecimento ou não) (BOURDIEU, 1989, p. 11-12). A concepção particular da OCDE vem impondo-se ao mundo, inclusive ao Brasil, através do PISA, por isso devemos mencioná-la, e discuti-la, em particular no que diz respeito à linguagem, e à sua imposição da expressão “Public Understanding of Science” – PUS, como o faremos adiante.

No que diz respeito às abordagens da DC desde o advento do PUS até hoje, remetemos ao artigo de Bauer (2008), que fornece-nos delas um panorama repartido em dois períodos, que resumiremos muito sucintamente aqui. O primeiro, de 1985 até meados de 1990, que ele intitula “Public Understanding of Science” – PUS, e o segundo, de meados de 1990 até a atualidade, “Science in-and-of Society”, que poderia ser traduzido tanto por “ciência em e da sociedade” quanto por “ciência dentro e fora da sociedade”, o “of” (de) podendo ser ouvido como “off” (fora de)). Bauer caracteriza o período PUS por sua herança (herança de onde?) da noção de “déficit do público”, que passou de déficit de conhecimento para déficit de atitude (2008, p. 7). Segundo BAUER, o “axioma” do PUS, que poderia se resumir a “quanto mais sabem [eles, i.e. o público/não cientistas, supõe-se] ciência, mais a adoram” ou “mais se interessam por ela”, não se verificou. Isso gerou uma desconfiança dos cientistas em relação ao público, que lhes a devolveu (2008, p. 8-10). Bauer menciona de passagem os apelos de autocrítica em favor da “'busca da alma', i.e. reflexividade entre os atores cientistas”43 (2008, p. 10) (cf.4.2.10 para uma análise da lógica de Aristóteles que relaciona justamente a alma, indivisível, ao déficit público). Desde meados de 1990, o déficit mudou de lado, entrou na conta do cientista. O “science expert” (especialista em ciência) teria sido o responsável por uma quebra de confiança que precisa agora ser restaurada junto ao público, através da implementação de técnicas deliberativas. Mas essas são terceirizadas e caras, envolvem dinheiro público, e acabam exigindo auditorias, que por sua vez levanta questões sobre com qual método avaliá-las, questões geralmente polarizadas de forma um pouco caricatural entre qualitativa e quantitativa. Bauer termina seu panorama voltando ao “conceito de déficit”, que ele “deplorou tanto quanto apreciou na pesquisa de PUS” (2008, p. 13). Convida-nos a superar seu estigma e reabrir 40 anos de estudos acumulados para se empreender uma análise 43Negative public attitudes then confirm the assumptions of scientists: the public is not to be trusted. This circularity of the ‘institutional unconscious’ calls for ‘soul searching’, i.e. reflexivity among scientific actors, and even endorsement of a post-modern epistemology of a plurality of knowledge centres.

histórica mais ambiciosa que simples estudos pontuais. Se, segundo ele, “a PUS é um processo histórico”(2008, p. 13)44, marcado pelo conceito de déficit público, devemos então ser ambiciosos e remontar às raízes históricas do déficit público não apenas na PUS, mas na DC. Pensamos que a melhor compreensão da barreira da linguagem, apreendida pela

diferença entre as linguagens ditas científica e comum, pode ser uma via de exploração fértil dessa história. Achamos na abordagem pela gênese social – e histórica – , e no conceito de capital simbólico e outros com os quais está em relação (capital social, econômico...), tal como os desenvolve Bourdieu, os elementos necessários para empreender nosso estudo da DC, alias PUS, pelo enfoque da linguagem. Pormenorizaremos essas questões no capítulo da tese dedicado à metodologia.

Notemos, enfim, que Bauer, no artigo citado, apesar de ser autor de um método de pesquisa social que inclui análise do discurso45, menciona apenas uma vez a linguagem, referindo-se à “body language of science” (2000, p. 6), que, pelo que entendemos, poderia ser assimilada a uma ciência incorporada, próxima do habitus de Bourdieu.

Tendo evocado brevemente as novas tendências da DC, comentemos, como o anunciamos no início dessa seção, a emergência da expressão “public understanding of science” (PUS), adotada pelo programa do PISA-OCDE, cuja emergência deu-se a favor do referido relatório da Royal Society of London de 1985, como o nota Bauer, pesquisador ligado a esse mesmo programa e à London School of Economics. De fato, uma vez que os nomes dos conceitos influem na compreensão da Ciência, porque nunca são socialmente neutros, como poderíamos deixar de problematizar o rebatismo da Divulgação pela expressão que traduziremos por “entendimento público da ciência”?

Em que medida explicitar em sua denominação as partes que a DC envolve,

nomeadamente público e ciência, contribui para uma melhor relação de entendimento, mas também relação social, entre essas partes?

Falar em “entendimento público da ciência” pressupõe que as categorias do público e da ciência – tanto quanto a do entendimento aliás – já sejam aceitas e reconhecidas como realidades objetivas, universais, homogêneas, suscetíveis de serem clara e consensualmente distinguidas, além de mutuamente excludentes. Ora, para as ciências sociais, tal pressuposição 44Public understanding of science is an historical process.

45BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Qualitative researching with text, image and sound: a practical handbook for social research. London, UK: Sage Publications, 2000.

não se verifica.

Basta lembrar alguns dados históricos e sociológicos, que desenvolvemos em nossa análise sócio-histórica, para constatar quanto as categorias envolvidas hoje na DC são particulares e por isso não são suficientes para fundar um estudo mais aprofundado.

O substantivo “cientista”, i.e. o reconhecimento da categoria socioprofissional de quem exerce a atividade científica, data apenas de 183046, quando a Ciência, para autores como Price (2000), remonta à Babilônia Antiga. O cientista só emerge como categoria

socioprofissional distinta na virada do século 18 para 19, em particular na França

(CROSLAND, 1975). A preexistência de uma homogeneidade da categoria dos cientistas é refutada pelo sociólogo Bourdieu. Ele mostra, fundado em sua teoria dos campos (1976), que os cientistas pares são concorrentes em luta, segundo regras que lhes são específicas47, ou distintivas, embora, como vivem em sociedade com outros grupos, também ajam segundo regras que não lhe são exclusivas. A possibilidade de distinguir claramente o cientista na sociedade, não do ponto de vista político-administrativo ou socioprofissional, mas

sociológico, é questionável e variável justamente porque grupos externos intervêm na sua definição (é o problema do Manual de Frascati da OCDE). Como veremos adiante de forma pormenorizada, no início da modernidade, período a que a emergência da DC é geralmente identificada, são os poderes políticos europeus locais que consagram definitivamente, contra Roma, a vitória do heliocentrismo; tanto que são eles que criam as Academias de ciência oficiais, não o poder do Papa, embora esse tivesse fundado as primeiras universidades (LE GOFF, 2005, p. 123). Houve o grito de independência de Galileu, “a ciência é dos cientistas”, como diz Bourdieu (1976, p. 98), mas o reconhecimento definitivo da autonomia da ciência em relação à religião e sua institucionalização em academias reais deveram-se a grupos externos particulares – os tais poderes políticos locais, marcadamente absolutistas segundo a História contemporânea, diga-se de passagem. Há portanto um viés particular na definição das categorias modernas de ciência, cientista e não cientista, constitutivas da DC atual, que devemos considerar sob pena de privilegiar um enfoque predominantemente político do 46Sobre o surgimento do substantivo “científico”, ver o artigo “Genèse du terme “Scientifique”” do linguista Benveniste (1974, cap. 17), Maurice Crosland (2009[2006], p. 9) ou ainda Steven Shapin (1996, p. 5-6). 47Daí a recusa por Bourdieu de falar em “comunidade” científica (1997, p. 66). Kuhn emprega a expressão, em um sentido que seria insuficiente aos olhos de Bourdieu, pois não inclui a característica social distintiva dos cientistas, a concorrência regrada entre pares: “uma comunidade científica é formada pelos praticantes de uma especialidade científica.” (KUHN, 2009[1970], p. 222)

momento atual, ao invés do científico.

A categoria estrita de “público” da ciência, que supõe uma comunicação impessoal entre cientistas e não cientistas, é praticamente inexistente na Europa até o início do século 18, fora dos próprios pares eruditos, apesar de já existirem uma literatura científica na Idade Média (“sobre cosmologia e os céus, medicina e doenças, ciências naturais ou geografia”)

(CHARTIER, 2012, p. 42) e uma institucionalização da ciência (as academias reais inglesa e francesa dos anos 1660). A própria ideia de se revelar a ciência a não cientistas é rejeitada por ninguém menos que Copérnico (KUHN, 1957, p. 150).

Quanto ao conceito de entendimento, édefinido na filosofia a grosso modo como uma categoria a priori, o que exclui o conhecimento prático, que é a marca do leigo, por aí desclassificando esse como possível detentor de verdades racionais “puras”, teóricas ou legítimas.

Observemos por fim que o fato de não existir, em certos períodos históricos ou

sociedades, um público da ciência ou mesmo uma ciência pública em forma rigorosamente institucionalizada, não impede a existência de comunicação da ciência a não cientistas; e o fato de essa comunicação da ciência ser descrita como privada ou informal não a exime, para além dos rótulos e das aparências, de ter sido efetiva e problemática, inclusive do ponto de vista linguístico. Nem sempre a ciência é ciência só porque é “pública” no sentido estrito, e não raro a institucionalização do “público” deve-se mais ao poder político de poucos que à ação da massa da população.

Em suma, “público”, “ciência” e “entendimento”, tal como os entendemos hoje, não são substâncias, ou categorias invariantes, universais em si ou preexistentes da problemática geral da DC. Por isso não estamos convencidos que se justifica, para o efeito do presente estudo, a denominação “entendimento público (ou percepção pública) da ciência”, mais restritiva que necessariamente representativa da atualidade.

“Divulgação” permite focar não as partes situadas da DC, mas, de forma mais ampla e conceitual, a relação social que liga aqueles que dominam, controlam, regram, definem, (re)produzem e distribuem o (re)conhecimento na forma de símbolos legítimos, e aqueles que, por necessidade de existência social, os trocam e usam. A constância de tal relação se verifica de fato, pelo menos desde que existem sociedades com grupos específicos para a atividade simbólica, qualquer que seja seu rótulo (sacerdote, filósofo, escolástico, intelectual...) e o da

categoria de conhecimento (religião, ciência...). Mas nada permite afirmar a priori que o entendimento seja uma constante ou uma característica predominante dessa relação: mesmo quando se conhece o valor semântico “correto” de símbolos do conhecimento científico e se os usa para produzir e encadear verdades, na ausência de aplicação prática em atividades profissionais (acadêmicas ou não) que reconheçam esse conhecimento, esses símbolos ainda podem funcionar como meros fetiches (BOURDIEU; BOLTANSKI, 1975).

É preciso, portanto, duvidar que as designações atualmente em uso ou prescritas, possam ser imparciais ou naturais, ou entendidas isoladamente, perguntando: em que contexto sócio-histórico emergiram as categorias da DC, hoje oficialmente concebidas como absolutamente distintas: categoria do que é entendimento da ciência e do que não é; de quem sabe ciência e quem não sabe (e sobretudo de quem deveria ou não sabê-lo); de quem detém o conhecimento legítimo, socialmente mais valorizado, e quem não o detém; e, por fim, foco de nosso estudo, do que são linguagem científica e linguagem comum (i.e. da forma “correta”, ou legítima, de se comunicar a ciência)?

Ao contrário da denominação “Public Understanding of Science”, que fixa de partida as categorias a considerar (o público e os cientistas), seu tipo de relação (exclusivamente cognitiva de entendimento) e tipo de espaço social em que se produz (espaço público,