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Segmentação das unidades linguísticas, comunicação da verdade e uso

2 OBJETIVOS E PRESSUPOSIÇÕES TEÓRICAS

2.4 Linguística, cognitivismo, sociolinguística, unidade, sentido, paráfrase, uso e regrauso e regra

2.4.1 Segmentação das unidades linguísticas, comunicação da verdade e uso

Em virtude do mecanismo chamado Merge, introduzido pelo “Programa minimalista” do linguista gerativista Noam Chomsky (1995)94, admite-se que não existe língua conhecida em que as palavras – sugerimos acrescentar: os signos linguísticos – não apresentam nenhuma relação umas com as outras. Segundo Chomsky, o Merge, relação aplicada recursivamente entre palavras e também frases, e por aí criando novas formas, sentidos, categorias,

construções95 e frases inéditas, seria a condição mínima de existência das línguas.

Do seu lado, o psicólogo Steven Pinker e o linguista Ray Jackendoff (2005, p. 219), de orientação cognitiva diversa de Chomsky, contestam que Merge seja o “mecanismo” genético96 único, exclusivo e suficiente para fazer existir plenamente e explicar as línguas humanas em todas suas dimensões, diversidade e complexidade.

Eles fornecem uma lista de questões (2005, p. 220) das quais, pelo que julgam, o

“Programa minimalista” de Chomsky não dá conta. Uma delas é a segmentação das palavras, ponto fundamental pelo qual as línguas particulares diferem (2005, p. 210-211)97.

Do ponto de vista da comunicação da ciência, não se pode descartar a segmentação: como saber se uma frase é verdadeira, e depois comunicar com os pares a verificação, sem saber segmentar corretamente os elementos postos em relação?

93Isso não exclui uma orientação sócio-fonológica, por ex. os empréstimos de afixos gregos e latinos, frequentes na linguagem científica, difíceis de pronunciar e entender para quem não foi familiarizado com a linguagem da ciência. 94A referência é atribuída pelo editor de “On nature and Language” (CHOMSKY, 2002, p. 4) em seu prefácio: “... the minimalist idea that the basic syntactic operation, “merge,” recursively strings together two elements forming a third element which is the projection of one of its two subconstituents (Chomsky 1995a, 2000a).” 95...the fundamental structure-building operation, “merge,” in the system of Chomsky (1995a).(CHOMSKY, 2002:29) 96 “In the terms of comparative linguistics, Universal Grammar is a theory of linguistic invariance, as it expresses the universal properties of natural languages; in terms of the adopted cognitive perspective, Universal Grammar expresses the biologically necessary universals, the properties that are universal because they are determined by our in-born language faculty, a component of the biological endowment of the species.” Prefácio do editor em (CHOMSKY, 2002, p. 9). 97 “Languages differ in their repertoire of speech segments,...” (PINKER; JACKENDOFF, 2005, p. 210-211)

A questão toca uma das diferenças fundamentais entre a língua “comum”, atribuída ao “leigo”, e a linguagem – melhor dizendo: sistemas de notação – lógica e matemática. Nesta, a segmentação forma-sentido é convencionada previamente. Uma das características que tornaria “universais” tais sistemas seria a regularidade e previsibilidade de sua segmentação (ou, colocando-se no nível não apenas da forma pura mas também da unidade semântica, sua composicionalidade98), a qual não é natural, mas resulta de regras explícitas e de

convencionalização, i.e. de ações normativas sócio-semânticas particulares, que por sua vez resultam de ações convergentes ou conflitantes.

Notemos que Chomsky (1995) representa o Merge por uma árvore binária, deixando supor que se trata de uma capacidade genética pré-determinada e pré-codificada em

linguagem formal: toda relação entre palavras poderia então ser explicitada na forma canônica da razão científica.

A questão é pauta da CI, através da teoria do agir comunicativo do filósofo alemão Jürgen Habermas (1975), fundada na suposição chomskiana de que existe uma forma de razão a priori99, biologicamente predeterminada em sua forma de expressão. Tal teoria permitira fundar em critérios biológicos e racionais uma condição de igualdade linguística e cognitiva, portanto política, efetiva e realmente universal, entre todos os indivíduos. Se tal hipótese fosse verificada, é provável que a DC e sua problemática nunca teriam surgido e todos os

problemas de comunicação da verdade científica ao maior número já estariam resolvidos. Trabalhos recentes em cognição, como os de Giorgio Vallortigara (2013)100, apresentam provas empíricas de que a noção de quantidade existe no mundo animal (mamíferos, aves) e até mesmo nos humanos recém nascidos. A questão que nos interessa aqui, então, não é a capacidade de contar, mas de fazê-lo comunicando e acumulando os resultados mediante signos, símbolos, tendo escolhido certa classe de signos e não outra, e, como o mostrou o matemático Benoît Mandelbrot, partir de um algoritmo em que dados e instruções são absolutamente separados e não chegar a resultados conhecidos, questionando a validade de uma recursividade absoluta (BERLINSKI, 2009[2004], p. 117).

Afinal de contas, não é a aritmética em si que separa o leigo do cientista.

98 A composicionalidade “refere-se ao grau de previsibilidade do significado do todo a partir do significado das partes” (CEZARIO; PINTO; ALONSO, 2012, p. 9)

99Segundo a História das Filosofia da Linguagem de Lia Formigari (2004, p. 199), o termo a priori aplica-se ao inatismo de Chomsky, embora o próprio não o use.

Segundo Joan Bybee, linguista seguidora da linha dos modelos linguísticos baseados em uso, a convencionalização do sentido depende da exposição do indivíduo à repetição das palavras, portanto no mínimo ao uso (BYBEE, 2010, p. 36)101. E, por aí, exposição a condições linguísticas sócio-históricas particulares além daquelas universais e genéticas contempladas por Chomsky. Tal constatação aplica-se inclusive às unidades semânticas chamadas “multi-word” (BYBEE, 2010, p. 35-36)102, muito usadas na linguagem científica e que, por isso, constituem um ponto de marcada diferença em relação à língua “comum”. A linguística baseada em uso mostra que nem a própria divisão entre as categorias de palavras gramaticais e lexicais é estática, estanque ou definitivamente dada, mas resulta de mudanças gradativas correlacionadas ao uso. A partir daí, Bybee elabora uma teoria geral da cognição (CEZARIO; PINTO; ALONSO, 2012, p. 7) que, ao contrário daquela de Chomsky, é baseada em uso, sem por isso ignorar as condições biológicas da linguagem.

Por outro lado, se recusamos que o Merge de Chomsky seja concebido como absolutamente inato e a priori, por outro o aceitamos como explicação a posteriori da capacidade humana de juntar duas "palavras" com sentido autônomo para formar outra, um “multi-word”, que possua um terceiro sentido distinto daquele de cada palavra individual (sentido então que não é o resultado a priori de alguma operação formal, ou que não pode ser predeterminado por uma única e exclusiva regra gramatical, tirando obviamente o caso dos sistemas declaradamente composicionais elaborados no decorrer da história).

Guardaremos para nosso eixo teórico que, se as palavras de uma língua estão sempre em relação, como o postula aliás o Merge, não existe segmentação ou categorização gramatical a priori das palavras. Se, na comunicação linguística em geral, não se pode prever o pareamento forma-sentido fora do uso e da interação, logo não se pode afirmar a priori, mecanicamente e com absoluta certeza, quais são as unidades visadas por uma relação de verdade e portanto afirmar que existe a priori a afirmação de uma relação efetivamente verificável. Isso não implica que as situações de uso e interação linguísticas escapem de tudo à verdade científica, pois acontecem dentro de relações sociais que apresentam regularidades, e a esse título observáveis, sujeitas à indagação científica e a hipóteses de mudanças regradas.

Assim, no caso da comunicação entre cientistas, em que se busca idealmente a 101Bybee corrobora a posição de (Haiman, 1994) a esse respeito.

102Há uma pletora de termos concorrentes para designar de perto ou de longe o fenômeno. O linguista Kocourek identifica 27 deles (JACOBI, 1986, p. 126-127).

composicionalidade, a regularidade do pareamento forma-sentido e composicionalidade na expressão da verdade poderá ser mais provável que na comunicação entre não cientistas (o que não exclui que a língua comum desenvolva estratégias de desambiguização eficientes e suficientes para a comunicação de outros valores, em particular valores indeterminados, embora tais estratégias de desambiguização não tenham os diversos níveis de sistematicidade semântica e sígnica das notações simbólicas). Assertamos que tal probabilidade não existiria exclusivamente por causa de capacidades genéticas, mas também porque a

composicionalidade é uma regra adquirida em uso no grupo social particular dos cientistas – caberia obviamente mais nuança, pois os cientistas não formam segundo os sociólogos um grupo social homogêneo – , regra que os cientistas procuraram aplicar sistematicamente à expressão da verdade a partir de condições e normas sócio-históricas que propomos examinar aqui.

Se não é exclusivamente genético, o conhecimento e sua segmentação – e por aí seu gerenciamento e organização – requerem para ser comunicados técnicas de transmissão e, inevitavelmente, em graus diversos, de acumulação. Um dos pontos que evidenciaremos aqui é como as regras da linguagem científica, em particular, contêm hipóteses implícitas sobre a otimização dessa transmissão e sua economia, através da acumulação de conhecimento.