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Considerações gerais

3 METODOLOGIA, MÉTODO, FONTES DE DADOS E MATERIAL

3.1 Considerações gerais

Embora teoria e metodologia figurem por força da tradição acadêmica em nomes de capítulos dissociados, viemos desde o início dessa tese tecendo a inter-relação e coerência de ambas, justamente porque a chamada “barreira da linguagem”, apesar de apresentada como justificação da DC, não nos pareceu suficientemente explicitada. Ainda restava construí-la, se quiséssemos constituí-la como um objeto do processo de pesquisa. Daí um primeiro capítulo de questões preliminares, dedicado à contextualização em geral da própria DC e seu enfoque pela linguagem, em meio a CI e subáreas, bem como a outras áreas de estudo, e da própria barreira, mostrando em que essa não é autônoma: depende no mínimo da existência de uma divisão entre linguagem científica e não científica; linguagens que por sua vez não achamos nem sistematicamente analisadas como uma relação de construção recíproca e solidária, ancorada no social e na história, nem apropriadas por área alguma como objetos inter-relacionados de estudo disciplinar específicos.

Na ausência de objeto constituído, não havia de partida como empreender um estudo segundo um método experimental de tipo galileano, que fosse efetivamente conclusivo. Não havia como seguir uma metodologia empírica tradicional, e ainda menos proceder diretamente a um estudo quantitativo, à exemplo do que possibilita a CC com suas unidades relativamente bem delimitadas, situadas, hierarquizadas e estáveis, que são os periódicos científicos e seus artigos. Assim a presente pesquisa dedica-se antes de mais nada à própria construção do objeto “barreira da linguagem”: contextualização, elaboração de pressuposições teóricas e de uma hipótese, consolidadas por uma análise sócio-histórica da gênese da DC, baseada em

fontes ditas documentais; e por fim esboço, apenas, de análise de dados empíricos. Pois, como escreve o cientista social Bourdieu em artigo dedicado ao “ofício de sociólogo”, em referência ao manual de que é co-autor (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2005[1968]): “é somente em função de um corpo de hipóteses derivado de um conjunto de pressuposições teóricas que um dado empírico qualquer pode funcionar como prova”. (BOURDIEU, 1989, p. 24).

Nisso, nossa pesquisa segue em boa parte as recomendações de Bourdieu, inclusive sua metodologia, que pormenorizamos aqui de forma condensada, após apresentarmos

alternativas metodológicas à dele, das quais algumas já foram discutidas nos capítulos 2 e 3 dedicados respectivamente à questões preliminares e às pressuposições teóricas.

No que diz respeito especificamente à pesquisa de DC, resumimos no capítulo de preliminares suas abordagens recentes, desde o surgimento do “Public Understanding of Science” (PUS) em 1985, tal como foram apresentadas por Martin Bauer (2008) (cf. 1.6.1). Nota-se que este, à exemplo de Bourdieu (2005[1968]), é co-autor de um manual de metodologia de pesquisa social (BAUER; GASKELL, 2000)160. Bauer (2008) encerra seu panorama das tendências recentes incentivando-nos a revisitar e aprofundar o estudo histórico das abordagens usadas no estudo da DC, segundo ele notadamente perpassadas pelo conceito de déficit.

O mesmo Bauer já produziu extensos trabalhos de cunho histórico sobre DC em geral, entre os quais um estudo longitudinal de 160 anos ((BAUER, 1998, p. 79) apud

(MASSARANI, 1998, p. 143-144)), que parte de 1830, momento em que, consoante a maioria dos autores da área, surge oficialmente a DC. Ora Bourdieu recomenda que sejamos críticos quando um objeto se apresenta recortado segundo a história oficial, porque essa, logicamente, dá a primazia a critérios políticos, como a implementação de políticas públicas que apenas reconhecem – ou forjam – oficialmente a existência de categorias fundamentais da DC como a de “público”, ou então critérios econômicos, como o surgimento de um segmento de mercado identificado à DC, e por aí de um público definido primordialmente como

consumidor. A utilidade, para o estudo da DC, da cautela bourdieusiana é confirmada à leitura de Bensaude-Vincent (1995), cuja perspectiva histórica mostra que datar no século 19 o surgimento da DC na França é valer-se mais da criação de um público consumidor pela mídia 160BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Qualitative researching with text, image and sound: a practical handbook for social research. London, UK: Sage Publications, 2000.

que de uma necessidade de saber expressada por um público cidadão. Grifemos que nossa abordagem não rejeita a priori critérios políticos ou econômicos para periodizar a DC, como se fossem “impuros”. Simplesmente nosso “ofício” impõe que devamos procurar explicitá-los e objetivá-los com tais, ou então procurá-los objetivados pelas ciências que lhes

correspondem, no caso a história, a economia ou as ciências políticas, sempre que pudermos. Dentre as pesquisas históricas de Bauer (BAUER et al., 2006), também consta um estudo longitudinal sobre tendências de longo prazo na representação da ciência através da 'cortina de ferro' entre 1946-1995, que usa conceitos oriundos de certas teorias econômicas

controvertidas, em particular o de “ciclo”, deveras naturalizante (embora Bauer também fale em “ondas” de DC (1998, p. 79)). Refere-se, entre outros, a “cycles of public attention” (ciclos de atenção pública/de atenção do público) (2006, p. 122), cuja “naturalidade”, aliás, Bauer contesta em um artigo publicado três anos depois161 (2009, p. 8). Parece-nos que, para além da conotação naturalizante, falar em ciclo é problemático: supõe verificar primeiro que todo processo de abertura de comunicação entre cientistas e não cientistas em questão conclui-se necessariamente por alguma institucionalização dessa comunicação, e, se não for sempre o caso, exigiria uma classificação prévia entre processos de DC cíclicos e não cíclicos.

Como se pode notar, a influência da economia é recorrente na DC. Já é manifesta no empréstimo da noção de déficit, que, segundo o próprio Bauer, foi herdada pela pesquisa recente e nessa mal ou bem tem-se mantido central. Pensamos que a economia de trocas simbólicas, tal como foi elaborada na antropologia por Durkheim e Mauss (1924), e estendida pelas noções de capital e de mercado linguístico (BOURDIEU, 1982)(1972), aplicadas à diferença entre linguagem científica e comum, permitem dar uma explicação satisfatória da noção de déficit público na DC ou, talvez, de dívida simbólica impagável.

Enfim, em seu panorama das abordagens de DC desde o surgimento do PUS em 1985, Bauer evoca um mal que assola a pesquisa, a oposição quase caricatural entre método

quantitativo e qualitativo (2008, p. 12). Bourdieu ratifica sua crítica. Considera essa oposição uma ficção em meio a outras rotulações do conhecimento (“macro-sociologia/

micro-sociologia, estrutura/ história, etc.”) danosas para a pesquisa e o avanço do conhecimento: Se, como todas as falsas sínteses de uma teoria sem prática e todas as

prevenções esterilizantes e inúteis de uma «metodologia» sem conceitos, estas 161“Contrary to assumptions of a natural cycle of public attention, science news does not move from initially negative news and public outcry to more considerate and positive news with time (e.g. Haldane, 1925). To the contrary: initial hype, as with new genetics, gives later way to more considered coverage.”

operações de catalogação são muito úteis para afirmarem a existência do professor, colocado assim acima das divisões por ele descritas, é sobretudo como sistemas de defesa contra os progressos verdadeiros da ciência […] As primeiras vítimas são, evidentemente, os estudantes […] (BOURDIEU, 1989, p. 46)

Para mostrar que qualidade e quantidade constituem uma oposição pouco confiável, parece-nos suficiente remeter à ausência de recorte a priori das unidades linguísticas

entendidas não apenas como formas mas unidades de sentido. Deve-se quantificar morfemas ou unidades de sentido (monemas e/ou sintemas)? A resposta é relativa ao método de

segmentação adotado, que geralmente não dá conta de determinar todos os casos.

Em suma, aderimos à necessidade apontada por Bauer de análises históricas da DC sobre seus produtos tanto destinados ao público quanto aos pares, sem se deter em oposições metodológicas estéreis. Justificamos, ao discutirmos a expressão PUS no capítulo de

preliminares (1.6.1) e novamente aqui, que nossa contribuição mais ambiciosa para a DC seria uma análise sócio-histórica, cuja periodização privilegie – ou pelo menos explicite – o ponto de vista distintivo da ciência e da linguagem, em relação aos da religião, política, economia, para citar apenas esses. É em obras de cientistas (filósofos-cientistas, pois a análise levou-nos à remontar à Grécia Antiga) que abordam a linguagem, não em consagrados fatos da história política e econômica, que fomos procurar, de preferência e quando possível, os indícios de uma eventual periodização da DC.

Haveria, certamente, outras obras sobre metodologia a mencionar aqui, que poderão ulteriormente ter grande utilidade para desdobramentos futuros de nosso estudo da DC. Pensamos em particular na “Metodologia da Pesquisa-ação” de Michel Thiollent (2011), pesquisador ligado ao IBICT. Ele adota a via da argumentação racional, não necessariamente formalizada, fazendo dessa uma ponte entre entrevistado e entrevistador, e por isso de sumo interesse para a DC. Nos limitaremos aqui a algumas citações de Thiollent sobre a vertente do empiricismo, que situam, pela mesma ocasião, Bourdieu no quadro geral da metologia, bem como ajudam subsequentemente a esclarecer nossa concepção de dado.

Críticas de caráter global relativas ao empiricismo sociológico foram formuladas por autores de diferentes escolas e a partir de diferentes problemáticas. Entre os mais conhecidos, podemos citar P. A. Sorokin e C. Wright Mills no contexto da sociologia americana,T. W. Adorno e outros pensadores da Escola de Frankfurt no contexto da sociologia alemã e, no contexto da sociologia francesa, Pierre Bourdieu [...]. (THIOLLENT, 1982, p. 16)

sistemas de signos especializados na comunicação humana da quantidade – de objetos senão daqueles cujo conhecimento explícito se origina no humano, e por aí em algum ponto de vista particular situado no tempo e no espaço, e exija algum trabalho de construção humana e comunicação sígnica para ser trocado, controlado e se constituir como verdade científica.

Ambas a Astronomia e a Astrologia atuais usam matemática, embora os objetos a que a aplicam sejam, na primeira, racionalmente construídos, e não na segunda. Analisar a realidade como se fosse uma entidade real em si, uma substância, absolutamente independente do conhecimento humano, de origem exclusivamente divina ou expressada em uma linguagem cujas entidades também são de essência divina e por isso inquestionáveis, parece-nos um método propício para a propagação de mitos ou de dogmas, talvez indispensáveis para nossa vida psíquica, mas avesso à produção de verdades primordialmente científicas. Sem proceder a uma construção discursiva de nosso objeto, estaríamos praticando uma variedade da

astrologia.

A recusa de qualquer corte efetivamente absoluto – absolutismo in fine de caráter religioso, ou político-religioso, análogo àquele da separação especificamente cristã entre divino e profano ou corpo e espírito – entre o sujeito cognoscente e seu objeto de

conhecimento (e não algum objeto que existiria em decorrência de um performativo pura e exclusivamente divino, do tipo Let there be light) implica logicamente a recusa do

empiricismo radical. Este sustenta-se pela pressuposição que existe uma objetividade imediata e direta dos dados – i.e., objetividade não discursiva e portanto acima da contradição,

pressuposição refutada pelo conjunto das ciências atuais, tanto exatas ou experimentais, como já explicava Bachelard (1934), quanto sociais –. Os dados perdem sua objetividade em si e total autonomia para se tornarem uma noção ambígua, problemática, reconhecida como uma construção humana mediada por sistemas sóciossimbólicos históricos particulares, situada e relativa a estes, embora muitas vezes inconsciente, implícita e/ou naturalizada.

Os sociólogos empiricistas pretendem construir teorias não a partir de problemáticas prévias, mas sim a partir do processamento de dados de onde deveriam surgir os conceitos, as hipóteses e as teorias entendidas como generalizações de hipóteses empiricamente comprovadas. A crítica mostra que todas essas operações sempre são alimentadas por uma problemática implícita, muitas vezes ideológica. Os dados por si só não são geradores de conceitos e de explicações. Sempre intervém uma problemática. (THIOLLENT, 1982, p. 17) Assim sendo, a própria diferença entre as categorias de dados comumente aceitas na pesquisa, empíricos e documentais, é mais tênue e problemática do que aparenta, e deixa de

implicar uma objetividade maior dos primeiros. Em nossa abordagem, um e outro tipo de dados não se excluem, pelo contrário, completam-se em momentos diferentes do processo de pesquisa, embora comecemos pelos documentos. (Na conclusão dessa tese (cf. 5.1), encontra-se o início de um estudo empírico quantitativo, que aplica rigorosamente aos “dados” todas nossas pressuposições teóricas e metodologia.)

Devemos perguntar, enfim, se a perda da objetividade absoluta quebra o princípio da neutralidade axiológica, garantia fundamental de cientificidade. Responderemos que, para que a ciência seja absolutamente neutra, necessitaria repousar exclusivamente em alguma entidade absoluta, eterna, omnisciente, à imagem do Deus leibniziano, “geometral de todas as

perspectivas” (BOURDIEU; CHARTIER, [2010]2011, p. 56). Mas se a ciência, e sua

linguagem, forem de origem humana, deveremos então nos contentar com a garantia perecível de um profano mortal, irredutível, situado em alguma sociedade e em algum momento da história particulares, embora relativamente objetiváveis, universalizáveis e suscetíveis de se constituir em construção verdadeira até que sejam refutadas.

(Apesar de citarmos invariavelmente Bourdieu como se fosse uma panaceia, não nos iludimos sobre as dificuldades e a exigência de trabalho redobradas a que nos obriga a aceitação de cada uma de suas rupturas. Seus propósitos sobre metodologia, que remontam a mais de quarenta anos, são hoje um lugar comum; aparentemente apenas, por que a liberdade e responsabilidade que nos deixam os tornam tanto mais árduos de se aplicar efetivamente.)