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Comunicação da quantidade, verdade e construção matemática, face social dos sistemas numeraissocial dos sistemas numerais

2 OBJETIVOS E PRESSUPOSIÇÕES TEÓRICAS

2.6 História das ciências

2.6.1 Comunicação da quantidade, verdade e construção matemática, face social dos sistemas numeraissocial dos sistemas numerais

Citamos acima autores, como Vallortigara (2013), que fornecem a evidência empírica que a noção da quantidade é uma capacidade cognitiva amplamente difundida não apenas entre os humanos, desde suas primeiras horas de vida130, como também entre diversas classes de animais, distantes de nós, como as aves. Como tratamos aqui especificamente de humanos, nosso foco não é a noção ou percepção da quantidade em si, mas a comunicação desta usando signos perceptíveis.

Entre os clássicos da história da notação matemática figura “A History Of Mathematical Notations”, em dois volumes, de Florian Cajori (1929-1930). Entre as obras recentes

consideradas importantes, que abordam a dimensão cultural da matemática, constam a “Histoire universelle des chiffres” de Georges Ifrah (1981) e “Numerical Notation: A Comparative history” de Steven Chrisomalis (2010). Apesar de o segundo escrever que seu livro foi-lhe inspirado pelo primeiro (2010, p. viii), é considerado pelos pares como o mais confiável dos dois. A obra de Ifrah é tanto alvo de críticas do matemático francês Martzloff quanto a de Chrisomalis é elogiada por ele131.

Chrisomalis define a notação numeral:

Um sistema de notação numérica é um sistema estruturado, relativamente permanente, visual, principalmente não fonético, para representar números […] um sistema de diferentes signos-numéricos discretos: símbolos elementares sós, ou, na terminologia usada nos sistemas escritos, grafemas, que são usados em combinação para representar números.3 Uma expressão-numérica é um grupo de um ou mais signos-numéricos usados para expressar um número específico […] Todos os sistemas de notação numérica (e a maioria dos sistemas numerais lexicais) são estruturados por potências de uma ou mais bases.132

(CHRISOMALIS, 2010, p. 2-3).

Ele afirma, a respeito da tradutibilidade e da comensurabilidade dos números: “Considero as notações numéricas como sendo traduzíveis entre culturas sem perda significativa de 130Ver (VALLORTIGARA, 2013) e outros seminários organizados em 2012-2013 por Stanislas Dehane no Collège de France. Disp. em: http://www.college-de-france.fr/site/stanislas-dehaene/seminar-2012-2013.htm (Acesso em: 2013-12-07)

informação ou mudança de sentido.”133 (2010, p. 8).

Critica um certo relativismo cultural, segundo o qual 1+1 em quéchua não seria equivalente a 1+1 em inglês, porque não existiriam na cultura dos falantes de um e outro idioma objetos estritamente idênticos ou quantitativamente comparáveis. Chrisomalis parece referir-se aqui ao que Bourdieu chama de relativismo radical (BOURDIEU, 2004[2001], p. 13-14).

Sugerimos apreender o problema da “tradutibilidade sem perda” sob outro ângulo. Na seção 2.3 acima, colocamos o sistema como unidade de análise da verdade (além da unidade proposição).

Consideramos aqui sistemas, e não a comparação inter-sistemas das proposições uma a uma (nem os termos um a um), para analisar a tradutibilidade entre si das notações numéricas.

As notações numéricas são um caso de análise da verdade que envolve sistemas de “natureza” diferente: matemático e social. Dentro de sistemas numéricos e entre eles, da forma como Chrisomalis os definiu acima, não há, pelo menos em teoria, perda de verdade quantitativa. O problema é que qualquer sistema numérico, como um todo, é percebido como um símbolo distintivo da cultura (ou grupo social) particular que o usa, quando entra em contato com outra cultura (ou grupo social) que usa uma notação diferente (os símbolos e a base usados podem diferir, como entre a notação maia e a romana); além disso grupos diferentes podem ter usos distintos de um mesmo sistema numeral.

A dimensão cultural ou social dos sistemas numéricos poder ser observada no próprio Chrisomalis. Ele adota a denominação “ocidental” (“western”) (2010, p. 1), e não “Hindu-arábico”, “usado na literatura acadêmica em geral”, para designar o sistema adotado na Alta Idade Média europeia, alegando diferenças “na forma dos signos” (“shape of signs”). Mas, como ele próprio afirma, é o sentido que conta para se ter a inter-compreensão da verdade sem ter perda. Então, se não há diferença de sentido entre um e outro sistema (tirando algumas diferenças de forma, que não afetam a compreensão), porque ele usaria duas expressões lexicais distintas, “indo-arábico” e “ocidental”, que são segundo ele sinônimos, 132A numerical notation system is a visual, relatively permanent, and primarily non-phonetic structured system for representing numbers […] a system of different discrete numeral-signs: single elementary symbols, or, in the terminology used in writing systems, graphemes, which are then used in combination to represent numbers.3 A numeral-phrase is a group of one or more numeral-signs used to express a specific number […] All numerical notation systems (and most lexical numeral systems) are structured by means of powers of one or more bases. 133I regard numerical notation as translatable cross-culturally without significant loss of information or change of meaning.

senão para simbolizar o pertencimento a culturas ou grupos diferentes?

Todo sistema numérico participaria da atividade simbólica, seja essa desempenhada por símbolos visuais ou sonoros, e por isso é associado à algum pertencimento sócio-histórico. Todo sistema numérico seria relativo – não enquanto conjunto fechado de unidades internas mas enquanto tipo de sistema simbólico particular com sua face social perceptível – aos diversos sistemas de significados sociais em curso, em dado momento sócio-histórico da comunicação entre humanos. Nenhum sistema numérico comunicável teria de fato uma autonomia absoluta em relação a seu uso, porque precisaria antes adquirir uma realidade social pela comunicação.

O fato de comunicar o conceito de quantidade usando um dado sistema simbólico, e não outro, quando há escolha entre vários sistemas simbólicos em uso numa mesma sociedade, nunca seria desprovido de algum significado social, independente da exclusiva vontade dos enunciadores. Essa mudança de significado, contudo, não seria completamente irracional, inquantificável, ou incomensurável, pois comparar sistemas semânticos e se for o caso medi-los cientificamente em seus diversos aspectos (psicológico, sociológico, sócio-semiótico...) é justamente um dos propósitos das ciências sociais.

Expressar uma quantidade, por exemplo no sistema numeral quéchua, não muda o valor ou sentido (nesse tipo de sistema valor e sentido são confundidos) relativo dos números estritamente dentro e entre os sistemas numéricos; mas pode afetar o significado social da mensagem que usa esse sistema para expressar quantidades. Pode fazer variar a forma como a mensagem é recebida (percebida, entendida, registrada, acumulada, reproduzida, em suma tal como o definem (BOURDIEU; PASSERON, 1970, p. 34) supracitados) por membros de outras sociedades, cada qual com seus sistemas de valores e significados sociais diferentes. Deparamo-nos novamente com o problema da aceitação ou rejeição da informação,

independentemente de sua validade semântica, por causa de possíveis conotações sociais associadas pelo receptor à forma da mensagem.

Esclarecemos que, em nossa concepção, existe bi-univocidade quando um signo tem um só sentido e vice versa, não em absoluto, mas única e exclusivamente em relação aos outros signos pertencentes ao mesmo sistema que ele, signos os quais também devem todos ser unívocos nessas mesmas condições. Com efeito, se admitirmos que, como não existe apenas

um único sistema de signos isolado, e que sistemas diferentes, passados, atuais ou por vir, reutilizam no mínimo alguns dos mesmos signos individuais com sentidos diferentes, então não existe bi-univocidade absoluta, e tampouco criação ex-nihilo de sistemas de signos ou, como já o notamos, signos absolutamente isolados. Em linguística, tal reutilização

corresponderia ao princípio de persistência: “algo do estágio x é mantido no estágio y […] que permite associar esses dois estágios, como dar equilíbrio ao sistema.”

(LIMA-HERNANDES, 2012, p. 153). A supor que a noção de quantidade seja inata e traduzível sem perda, o sistema de signos específico que permite medir as trocas seria sempre histórico e sua prática é associada a grupos sociais mais ou menos poderosos que lhe conferem seu valor social.

Chrisomalis distingue a expressão numérica, essencialmente visual, e a lexical:

[…] ao passo que os numerais ocidentais podem ser estendidos ao infinito – pode-se acrescentar ad infinitum zeros à direita de um número – os numerais lexicais em inglês são apenas potencialmente infinitos, dado que é preciso forjar novas palavras à medida que se quer expressar valores cada vez maiores. O maior número na maioria dos dicionários ingleses é o decilhão.134(2010, p. 22) Mas, ao contrário do que afirma Chrisomalis, não é preciso forjar indefinidamente novos numerais “lexicais” para poder expressar indefinidamente valores cada vez maiores. Basta usar recursivamente os numerais lexicais existentes: uma vez que tenho uma “expressão-numérica” para denominar a potência da base, posso reiterá-la um número infinito de vezes para expressar qualquer uma de suas potências. Por exemplo, no caso da base 10, cem são dez dezenas, mil são dez dezenas de dezenas, e assim por diante. Também é possível expressar qualquer número gigantesco proferindo seus algarismos um a um.

Uma análise mais cuidadosa evidencia que, no que diz respeito à numeração dita lexical, essa pode expressar uma infinidade de números teoricamente sem perda de sentido e sem requerer a introdução de novas palavras, e, no que diz respeito à representação visual, nada obriga que os números possam ser comunicados oralmente sem perda a não ser por questões de tempo ou facilidade de manipulação e memorização.

Não parecem sólidos os argumentos de Chrisomalis para sustentar que a comunicação dos números seja um problema de diferença entre expressão visual e lexical. Não se trataria de um 134[…] while Western numerals are infinitely extendable – one can add zeroes to the right of a number ad infinitum – English lexical numerals are only potentially infinite, since one needs to develop new words to express higher and higher values. The highest number in many English dictionaries is decillion.

problema exclusivo de alguma modalidade perceptual particular como a visão ou a audição135. Seria antes uma questão comunicacional mais geral e primordialmente prática: trata-se de comunicar qualquer quantidade com o máximo de facilidade de memorização, inter-compreensibilidade e eficiência, em suma, de comunicar de modo a facilitar as trocas em geral, ou de bens simbólicos, ou de bens “externos” mediados por símbolos.

Em reforço a nossa posição, observamos que um sistema numeral, que não é lexical mas visual, também pode exigir que sejam “forj[adas] novas palavras a medida que se se quer expressar valores cada vez maiores”: é o caso do sistema numeral romano. O sistema numeral romano possui, como o indo-arábico, a composicionalidade (embora seja mais complexo atribuir-lhe posicionalidade e pareamento regulares). Mas, como sempre introduz signos novos para expressar novos valores, não é absolutamente previsível: não é finita a classe de todos os algarismos que usa na expressão de todas as expressões-núméricas possíveis.

Notamos que do ponto de vista estritamente cognitivo, o sistema romano seria suficiente para a verificação introspectiva dos valores computados, mas não do ponto de vista da partilha dessa verificação, em sociedade, usando signos. É a previsibilidade absoluta da expressão do sentido que garante (no sentido de dar certeza, crédito, garantia) a intercompreensão do símbolo comunicado, e daí a maior certeza que a transação simbólica entre dois atores possa ser efetivada, e que o valor transmitido possa ser acumulado, sem sofrer perda quantitativa devida à transação.

Por isso afirmamos que é a troca simbólica, a prática da comunicação, que cria a necessidade de um novo sistema de signos específico, no caso um sistema de signos absolutamente previsível. É no quesito da maior previsibilidade, e não na diferença entre modalidade visual e lexical, que reside a especificidade dos sistemas binário, indo-arábico ou maia.

A previsibilidade opera, de passagem, um salto crucial rumo à automatização: o uso de uma classe finita de signos, os algarismos, para comunicar, seja visual ou lexicalmente, uma infinidade de expressões-numéricas cujo sentido é (teoricamente) sempre previsível,

decifrável e por aí verificável pelo interlocutor, abre o caminho para uma concepção mecânica 135Ou mesmo o toque, para lembrar o caso de Hellen Keller. Disp. em: http://www.hki.org/about-helen-keller/ (Acesso em: 2013-07-02)

da comunicação da quantidade. Aqui, o algoritmo é aplicado não mais ao único conceito de número, mas ao signos que representam a quantidade. A representação de valores

quantitativos ou estados, por um número finito de regras tanto quanto de símbolos

(combinados ao infinito segundo uma mesma regra), além da posicionalidade, é a condição para se conceber uma máquina de estados finitos. Passamos aqui da necessidade estritamente semântica da regra que permite produzir uma verdade quantitativa, já plenamente satisfeita pelo sistema numeral romano, a uma necessidade dada pelo uso em comunicação, i.e. a possibilidade prática de se encadear, eventualmente acumular, indefinidamente, verdades quantitativas, (em teoria) absolutamente previsíveis em sua forma de expressão, sem outra intervenção que a do mecanismo, que nem humano precisa ser.

Do ponto de vista do sentido estrito, o resultado de uma operação (ou mais amplamente sentido entendido como valor de verdade) calculada com numerais romanos não é mais nem menos verdadeiro que se fosse usada a numeração indo-arábica. Deduzimos disso que o uso de um sistema em detrimento de outro não se deve a uma razão “pura”, mas a uma razão prática. O fato de o resultado ser obtido através de um ou outro sistema, ou ser devido a uma razão prática ou teórica, não mudaria a verdade quando esta é concebida como quantidade isolada, mas influi sobre o valor sócio-histórico, aceitação, circulação e acumulação da verdade como bem simbólico. A possibilidade de escolha entre diversos sistemas numerais possíveis não afeta a verdade produzida por um cálculo isolado, mas a retomada em massa (industrial) de resultados de outros cálculos, que o indo-arábico propicia, pode afetar a circulação, peso e impacto das verdades geradas por cálculos numerais, em relação a outros tipos de sistemas de valores usados nas tocas do conjunto de uma sociedade.

Desde que se admite isso, também há que se admitir que o conhecimento dos números, por mais introspectivo e cortado da interação que se o conceba, passa a ser mediado,

estruturado, regrado e regularizado (de maneira aparentemente definitiva e absoluta, no caso dos sistemas de algarismos finitos) por sistemas de signos obtidos via trocas simbólicas com a sociedade e suas regras. E um certo uso de um sistemas de signos particular por certos atores também simboliza uma certa pertença – e posição – social que distingue esses atores,

estruturando seus valores e seu ponto de vista sobre o mundo.

aparência: instaura uma maior distância social, subtraindo-se ao contato direto com o corpo humano e por aí com aquilo que no humano é “corruptível” e mortal, ocultando de passagem o “impuro” interesse econômico, seja ele simbólico ou fiduciário, indissociável, na realidade, da atividade prática do cálculo. Por assim dizer, a mecanização “purifica” de uma passagem pelo profano corpo humano o encadeamento de verdades, ao mesmo tempo que apaga sua dimensão efetivamente econômica. Ao ocultar a mediação do corpo na produção de verdades quantitativas, a mecanização faz as trocas se situarem no espaço sagrado da atemporalidade, além de as fazer passarem por operações e produtos de uma razão “pura”.

Na CI e em particular na CC, tais questões remetem ao problema nodal da acumulação do conhecimento: do ponto de vista econômico, mais especificamente da economia simbólica, tais sistemas permitem comunicar e acumular o conhecimento de quantidades sem nenhuma perda – pelo menos ideal e/ou teoricamente. Do ponto de vista da hierarquia social,

apresentam esse tipo de verdade como um valor superior, situado acima e fora da sociedade “mortal” humana, com suas perdas, interesses e conflitos irremediáveis.

Chrisomalis levanta em seguida uma discussão sobre a eventual superioridade de algum sistema numérico em relação aos demais, o que descarta: “A eficiência de qualquer tecnologia só pode ser avaliada em vista dos propósitos para a qual foi desenvolvida e/ou usada. Não há portanto padrão abstrato e eterno de eficiência para nenhuma tecnologia.”136 (2010, p. 30)

Ao mesmo tempo que Chrisomalis recusa o que seria uma posição positivista que levaria a uma ideologia de superioridade tecnológica, ele subentende que a concepção numeral pode ser totalmente independente da tecnologia usada para expressá-la, ou de alguma finalidade particular.

Podemos perguntar se é possível conceber um computador, máquina imprescindivelmente recursiva, que não use signos de antemão todos conhecidos e predefinidos com um sentido único e fixo, e daí se é possível conceber e mecanizar certos cálculos sem necessariamente usar sistemas em que é praticada a redundância pré-regrada de uma quantidade finita de signos, retomada e combinada indefinidamente, para representar todos os valores possíveis que manipulam e produzem. Se certos cálculos só puderem ser feitos dentro dessas condições, então não é possível dissociar ou opor em absoluto a técnica (ambas a escrita e a palavra 136The efficiency of any technology can be evaluated only in terms of the purposes for which it was developed and/or used. There is thus no eternal abstract standard of efficiency for any technology.

sendo técnicas de comunicação) ou tecnologia do cálculo matemático, como o subentende Chrisomalis. O pensamento matemático nunca poderia ser completamente dissociado de sua prática comunicacional com tudo que ela implica.

Por fim, usar sempre os mesmos signos, repetindo-os infinita e eternamente, para representar qualquer valor de um sistema, não obedeceria unicamente a necessidades objetivas e práticas em si. Atenderia também a um ideal de comunicação sem perda de conhecimento, que nada mais é que a recepção da alma incorruptível, eternamente idêntica a si mesma, conforme Platão a apresenta no triálogo do Mênon (cf. 4.1.6). Trata-se nos fatos de um ideal de gestão social, econômica e política, que se realiza através da seleção de um único sentido/valor para cada signo, e da redução dos signos individuais aceitos na comunicação a uma quantidade finita e predefinida, a fim produzir um consenso e por aí uma ordem social preexistente e indiscutível.

Sistemas de notação como o binário, o indo-arábico ou o maia, parecem ser os que melhor concretizam a teoria implícita, de cunho econômico e prático, segundo a qual quanto maior a previsibilidade de um sistema de signos, menor a perda de valor dos signos e maior a eficiência da comunicação racional da quantidade, e maior a acumulação de valores racionais. Por fim, maior a capacidade de produzir e reproduzir valores verdadeiros, que regrem e legitimem, da forma menos contestável possível, a ordem social. Essa teoria implícita subjaz ao ideal mecânico de comunicação. Veicula, além disso, um ideal – ideologia? – de perfeição, naturalidade e também de superioridade moral da razão “puramente” quantitativa.

Observemos, enfim, que a postura teórica no que diz respeito à prova matemática que adotamos nessa tese corresponde a grosso modo à uma das duas concepções modernas, a cartesiana (intuicionista, nos termos de Vuillemin), que Ian Hacking opõe à leibniziana (dogmática, nos termos de Vuillemin):

O raciocínio geométrico é apenas o começo do estilo de pensamento matemático [na classificação de A. Crombie]. Esse estilo teve sua mais significativa

extensão quando incorporou o raciocínio combinatório e algorítmico,

contribuição dos matemáticos árabes. Duas concepções da prova emergem dessa consolidação. A primeira, a que chamo cartesiana, implica a possibilidade de uma demonstração que repousa na intuição e na compreensão da verdade. A outra, a que chamo leibniziana, implica a possibilidade da verificação da prova pelo cálculo e a aplicação dos algoritmos. Isso nos leva ao fenômeno de que fala Wittgenstein quando nota que « as matemáticas são uma mistura matizada de técnicas de prova. » Debate-se atualmente se as provas que exigem recorrer a computadores são verdadeiras demonstrações. É um conflito entre duas

concepções : a concepção cartesiana responde não e a leibniziana responde sim.137 (HACKING, 2005-2006, p. 417)

No que diz respeito à intuição, na física atual não-cartesiana, é ambígua, como vimos com Bachelard (cf. 1.4). Para ele, a intuição cartesiana, que atribui simultaneamente ao objeto físico uma unidade imediata e uma existência definitiva, é abandonada em prol de um

constante processo de objetivação de uma realidade plural, cuja existência exige escolha e construção explícitas para ser provada.

O problema é saber se essa construção discursiva pode ser feita inteira e exclusivamente em uma linguagem matemática puramente racional. Caso sim, o “caráter social da prova” (BACHELARD, 1934, introdução) não tem nenhuma consequência sobre a verdade científica, que seria então puramente racional; caso contrário, a verdade científica é uma construção sócio-histórica, com suas particularidades, que deixa inevitavelmente as marcas (máculas?) do ator sobre seu objeto de conhecimento, como qualquer outra verdade impura, por assim dizer. Poderíamos dizer que, para Leibniz, a questão da construção do objeto matemático nem se coloca: a linguagem matemática é o que faz existir a realidade como verdade, e todos os