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Ambiguidade, unidade de sentido, uso e regra: a via da paráfrase

2 OBJETIVOS E PRESSUPOSIÇÕES TEÓRICAS

2.4 Linguística, cognitivismo, sociolinguística, unidade, sentido, paráfrase, uso e regrauso e regra

2.4.3 Ambiguidade, unidade de sentido, uso e regra: a via da paráfrase

Entre os males atribuídos à “linguagem comum” pelos cientistas104, sempre constam a ambiguidade e seus corolários: imprecisão, quando não erro, incorreção, imperfeição, defeito, 104(ALMEIDA, 2002[1931]:67) supracitado.

ignorância ou inferioridade. A ambiguidade é geralmente considerada, junto com a irregularidade de pareamento, uma linha divisória entre uma e outra linguagem. Ora, na análise que os linguistas Michael A. K. Halliday, Wolfgang Teubert, Collin Yallop e Anna Cermakova expõem no livro “Lexicology and Corpus Linguistics. An introduction” (2004, p. 83-84), a causa da ambiguidade encontra-se justamente no problema da segmentação da forma com base na unidade de sentido.

Em concordância com Bybee, e contestando o absolutismo inatista da corrente

chomskiana, Halliday et al. (2004) afirmam que a segmentação em unidades de sentido só pode ser estabelecida efetivamente pelo uso. Fundados na noção de paráfrase, fornecem-nos um método de análise (pormenorizado e implementado na seção 5.1).

Comparado com as regularidades das mudanças fonéticas e das construções frasais, o sentido das palavras é geralmente turvo e vago, não apenas quando se compara diferentes línguas, mas também na perspectiva monolingual. Palavras, palavras sós, podem ser a unidade nuclear ideal quando se descreve os

mecanismos gramaticais. Mas são unidades nucleares muito menos apropriadas quando nos interessamos pelo sentido. Palavras sós são geralmente ambíguas. […] A ambiguidade é a consequência de nossa crença equivocada que palavras sós são a unidade de sentido. As unidades de sentido são, por definição, não ambíguas: possuem apenas um sentido. Certas palavras são unidades de sentido, outras não. 105(TEUBERT, 2004, p. 83)

A posição de Halliday et al reforça nossos argumentos segundo os quais a segmentação correta das unidades de sentido é uma condição no mínimo simultânea à regra, para se poder compreender qualquer enunciado, inclusive proposições lógicas.

Mas, antes de adentrar a questão capital e controvertida das relações entre uso e regra, caberia perguntar: “regra” tem o mesmo sentido quando se aplica à segmentação correta em unidades de sentido e à gramaticalidade de uma frase inteira? Ou: toda regularidade implica necessariamente alguma regra sempre verificável?

Afinal, não seria ambígua a noção de regra? É o que sugere Wittgenstein (1953) em um trecho de suas “Philosophische Untersuchungen” (Investigações filosóficas), citado em um livro do também filósofo Jacques Bouveresse (2003, p. 137):

82. O que chamo de 'regra segundo a qual ele procede'? A hipótese que descreve de modo satisfatório seu uso das palavras observado por nós; ou a regra que consulta ao usar os signos; ou a que nos dá como resposta, quando perguntamos 105The meaning of words, as compared with the regularities of phonetic change and sentence construction, is generally fuzzy and vague, not only when we compare one language with another, but also from a monolingual perspective. Words, single words, may be the ideal core units when it comes to describing the working of grammar. But they are much less the appropriate core units when we are interested in meaning. Single words are commonly ambiguous. […] Ambiguity is a consequence of our mis-guided belief that the single word is the unit of meaning. Units of meaning are, by definition, unambiguous; they have only one meaning. While some words are units of meaning, many are not.

qual é sua regra? Mas como, se a observação não permite reconhecer claramente nenhuma regra, e a pergunta não traz nenhuma à luz? — Pois ele deu à minha pergunta "o que compreende por N" realmente uma explicação, mas estava pronto a revogá-la e a modificá-la. — Como devo então determinar a regra segundo a qual ele joga? Ele próprio a ignora. — Ou mais corretamente: o que poderia significar aqui a expressão "regra segundo a qual ele procede"? (WITTGENSTEIN, 1999[1953], §82)

Halliday et al. reconhecem a contribuição de Chomsky à linguística ao mudar o estatuto da regra que, de descritiva e passiva, passa a criadora (HALLIDAY et al., 2004, p. 77-78), embora se demarquem dele (2004, p. 81-82). Lembremos, muito sucintamente, que Chomsky mostrou em 1959106 que as amostras linguísticas107 a que uma criança é exposta, nos termos da teoria da linguagem do behaviourista Burrhus F. Skinner, não são suficientes para explicar a criatividade, característica única da linguagem humana, i.e. a geração de uma infinidade de frases gramaticalmente corretas, nunca prévia ou diretamente ouvidas. Apenas regras

sintáticas já conhecidas poderiam, segundo Chomsky, suprir tal carência de stimulus, daí sua teoria de uma "gramática universal" inata. Por isso ele recusa que a sintaxe (a qual permite estabelecer relações regradas entre entidades) possa ser de alguma forma determinada pelo uso ou inferida desse e, para além disso, que possa ter qualquer relação com a analogia ou com dados estatísticos. Daí, aliás, seu desinteresse pela análise estatística de corpus linguísticos.

Mas, antes mesmo de aceitar a existência de alguma regra absoluta, não haveria que reconhecer com Halliday et al. (2004, p. 82) que, nas línguas “naturais”, a própria diferença entre o que é sintaxe e o que é léxico dependeria da perspectiva ou método adotados? Obviamente o problema não se coloca no caso dos sistemas ditos de notação simbólica, uma vez que essa diferença deve ser explicitada imperativa e previamente, e as categorias dos símbolos são predefinidas. A criação linguística pode então se dar tanto pela concepção chomskiana da regra quanto pela transposição desta pelo uso: prova disso os já mencionados processos de gramaticalização, que combinam elementos categorizados como sintáticos (regra) com elementos categorizados como lexicais (uso) para criarem novos elementos linguísticos (LIMA-HERNANDES, 2011, p. 17). A mudança implícita de categoria de um elemento viola a regra de constituição dos sistemas formais, que só operam em cima de 106Disp. em: http://www.chomsky.info/articles/1967----.htm (Acesso em: 2013-10-17)

107Pode-se considerar que Chomsky refutou um certo tipo de estatística de amostragem da linguagem, mas existem outros possíveis. O argumento “Poverty of Stimulus” tem sido reavaliado através de um modelo estatístico bayesiano, por (PERFORS; TENENBAUM; REGIER, 2006)(2011), dentro de uma concepção inatista embora não absoluta como a dele.

símbolos que pertencem a categorias pré-determinadas. Pelo que entendemos da crítica de Halliday et al (2004, p. 82) a Chomsky, o Merge pode explicar tal criação linguística, mas parcialmente apenas: não poderia prevê-la ou determiná-la sistematicamente em todas suas dimensões linguísticas em cada língua particular, das quais só o uso daria conta.

Dito de outra maneira, a tradução entre o sistema da competência e o sistema do desempenho seria indeterminada: uma única regra não produziria (ou permitiria prever) sempre um único e mesmo output e vice-versa.

Resta que, para se verificar que se entendeu corretamente o que é uma regra, ainda mais uma regra formal com tudo que isso implica, é preciso, antes, não apenas saber, mas também comunicar explicitamente em que sentido se usa a palavra “regra” (no caso das linguagens formais pode-se até falar em exigência social de comunicação pública do sentido). Para tanto recorre-se à paráfrase: essa permite explicitar, eventualmente de forma unívoca, o sentido da palavra “regra”, ao mesmo tempo que a identifica como unidade de sentido.

Chomsky mostrou que o aprendizado da língua exige mais que o conhecimento de adjacências recorrentes como o supunha a estatística 'ingênua' dos behaviouristas. Existem contudo outras abordagens estatísticas possíveis, que vêm sendo exploradas e aplicadas com plausibilidade à explicação do aprendizado das línguas.

Assim, estudos cognitivos experimentais recentes, fundados em modelos estatísticos de tipo bayesiano, dos quais Stanislas Dehaene dá um extenso panorama (2012-1013), tendem a confirmar que, ao cabo de algumas exposições a amostras apenas (a partir de 5), um bebê de menos de 18 meses já seria capaz de detectar padrões de regularidades linguísticas complexos (não lineares ao contrário daqueles de Skinner: variações linguísticas regulares e não

adjacentes) com a ajuda da memória (repetições presentes em amostras novas são comparadas pelo bebê com padrões complexos já ouvidos)(DEHAENE, 2012-1013, aula 6). Mas o “conhecimento da regra” entre os bebês só se manifestaria na presença de um mínimo de repetições, i.e., uso.

No que diz respeito ao inatismo, os cognitivistas bayesianos não o recusam, embora também não requeiram que assuma um caráter absoluto como em Chomsky para se explicar o aprendizado das línguas. Afinal, porque um certo inatismo da regra sintática haveria de excluir um certo inatismo da regra estatística?

ponto importante: a existência de uma estrutura “interna” do indivíduo – melhor dizendo: existência de uma autonomia cognitiva do sujeito em relação ao meio – , pois esse apresenta reações fisiológicas mensuráveis devidas a (padrões de) expectativas de presença ou ausência de um certo padrão, e não à ausência ou presença in abstracto de certos padrões (não seria o caso se a estrutura cognitiva fosse determinada apenas pela realidade imediatamente

percebida). Se essa evidência elimina as teses que defendem que o conhecimento ou

informação possam ser comunicados por simples imitação, nem por isso confirma, no outro extremo, o absolutismo inatista da regra, que postula uma independência total entre estrutura cognitiva e percepção.

O problema com a regra é que, se ela própria é ambígua, então não pode ser

absolutamente natural (não existe por natureza uma regra explícita única e predeterminada, biológica, totalmente isenta de escolha ou interpretação) ou intrinsecamente unívoca (é sempre necessário algum elemento suplementar à regra para se chegar a uma única

interpretação da regra) ou unívoca a priori (nem sempre a regra se aplica e se verifica em todo e qualquer caso); além do mais, não apenas a regra, mas também o uso, contribuem para a criação linguística. Em suma: não existiriam regras absolutamente abstratas ou a priori, mas sempre relativas a padrões de percepção presentes/ausentes e memorizados. No estado atual dos conhecimentos só se poderia afirmar que as regras se tornam unívocas por força da imposição/aceitação prévia de uma regra de explicitação semântica geral, que ela mesma seja implícita ou explícita e comunicada entre pares que adquiriram e memorizaram regras

semelhantes (regra da univocidade, a qual, como mostramos na parte histórica da DC sobre a Grécia Antiga, é enunciada nos Tópicos (Livro VI, cap. X) de Aristóteles, i.e. em um registro escrito, empiricamente observável, datado com certa precisão – até que se prove a existência de outro mais antigo). A própria explicitação, via paráfrase, de uma regra com sendo uma regra e não um elemento a que a regra se aplica, não pode prescindir do uso.

A paráfrase parece-nos indispensável para estudar a DC, porque permite conceber a partilha de sentido e verdade sem reduzi-la necessariamente às exigências estritas dos

sistemas formais (unidades de sentido pré-pareadas, predefinidas, composicionais, biunívocas e fixas, que permitem declarar regras unívocas). Permite efetivar a partilha de conhecimento, não apenas no que diz respeito ao próprio sentido, e a seu recorte em unidades mais ou menos regulares e estáveis, mas também às regras que permitiriam produzi-lo e apreendê-lo. A

paráfrase permite assertar um sentido (único ou regular) a fim de tê-lo compreendido pelo interlocutor, quer se explicite ou não uma regra racional de uso.

Permite conceber que se comunique, entenda e valide sentido sem pressupor, por parte do interlocutor, um conhecimento a priori tanto da segmentação correta das unidades de sentido quanto do sentido que se quer dar a estas. Aceita o fato que na comunicação ocorrem sentidos novos ou usos imprevistos, e portanto incompreensão, devida ora ao desconhecimento do uso de uma forma já conhecida, ora ao uso de alguma forma desconhecida. Não pressupõe que o interlocutor conheça todas as regras de uso ou todas as palavras usadas.

Além do mais, permite expressar um sentido interativamente, conforme as necessidades expressadas pelo interlocutor, quer se explicite uma regra formal ou não. Aplica-se à

explicitação de uma unidade de sentido tanto dita “a priori” (definição estrito sensu, de cunho propriamente lógico, que supõe uma total intercompreensão prévia e/ou mecânica/automática) quanto a posteriori, como na comunicação humana em sociedade, em que a intercompreensão pode contar com a interação para fornecer ou trocar explicitações pontuais as mais diversas entre os interlocutores, inclusive quando surgem situações inéditas.

A noção de paráfrase também aceita, vale grifar, que o sentido de uma unidade possa resultar de regras inconscientes ou mantidas tácitas. Não se nega aqui a existência ou

necessidade de regras para se chegar a um entendimento, apenas não se pressupõe que sempre se deva, possa, requeira ou queira fornecer uma regra explícita ou regra alguma, ainda menos

a priori, para se comunicar e compreender todo e qualquer uso ou sentido. Admite-se inclusive que um interlocutor comunique deliberadamente uma regra errada.

Tal abrangência permite dar conta tanto da linguagem comum quanto científica, sem por um lado reduzir a linguagem do leigo a uma pura prática implícita (porque supostamente ignorante) do sentido, nem por outro erigir como única, original e exclusivamente válido o modelo semântico dos mais formalizados sistemas de notação simbólica, em teoria

absolutamente regrados. Tampouco obriga-nos a equacionar o cientista à explicitação e omnisciência da totalidade dos sentidos que produz como ser social; nem descarta que os sentidos tácitos ou inconscientes, que um cientista usa e produz em sua prática científica, venham a ser parafraseados a posteriori, a partir de regras explícitas e racionais.

No que diz respeito ao leigo, a noção de paráfrase apresenta uma vantagem crucial: evita cair no preconceito de tratá-lo como um deficiente linguístico por inerência, que sofre de

alguma carência lexical, semântica, e por fim cognitiva. Ou pior: atribuir ao leigo uma inferioridade racional e moral, devida a alguma incapacidade interna ou inata, tanto de conhecer quanto de explicitar e seguir corretamente regras de sentido ou ação em geral.

Aqui o risco de se fazer passar a norma social por regra científica é gritante. Em um estudo sobre Divulgação, confundir aquilo que é socialmente ilegítimo com o que é errado do ponto de vista racional equivale a fazer fundamentalmente o contrário de tudo a que se propõe.

Em suma, a condição de preexistência absoluta da regra, independente de qualquer uso, para explicar o aprendizado da língua, é posta em xeque-mate quando se aponta a

ambiguidade da própria palavra “regra”, uma vez que essa ambiguidade só pode ser levantada pelo uso. A regra sai do domínio exclusivo da competência para entrar no do desempenho. A criação linguística não se resumiria à geração de enunciados ou entidades inéditos. Também inclui a criação de novas regras linguísticas, que depende de novos usos, novas segmentações e novos sentidos – a serem explicitados por paráfrases dentro de moldes formais ou não formais – da palavra regra. Tanto uma regra pode deixar de sê-lo, e ser rebaixada a simples regularidade, quando se refuta sua racionalidade, quanto um uso considerado irracional (ou absolutamente irregular, errado ou simplesmente ilegítimo perante a regra em vigor, o que muitas vezes o desclassifica como objeto de estudo108) pode encontrar uma explicação racional e adquirir o estatuto universal de regra gramatical.

Toda regra, em suma, é espaço-temporal. Mas isso não implica que qualquer uso pode virar regra ou é possível. A esse respeito, em relação com o caráter biológico da linguagem, vale mencionar a abordagem do linguista Andrea Moro109. Não parte do postulado

chomskiano da regra inata única, abstrata (não espaço-temporal): pergunta antes se nosso cérebro impõe quaisquer limitações às sintaxes e línguas possíveis, e sua conclusão é positiva. Nem por isso Moro afirma que dentro desse feixe de possíveis existe uma, e uma só,

determinação sintática.

Restam as perguntas: se não existe uma única regra fixa e pré-determinada, então como escolhemos alguma possível e a justificamos como tal? Saber e poder fazer a escolha da 108(BOURDIEU, 1989, p. 20) fala em “importância social ou política do objeto” de estudo.

109Andrea Moro, prof. de Linguística Geral na Univ. de Pavia (Itália), palestra do 7 de junho de 2012 no Collège de France: “The Boundaries Of Babel. The Brain And The Enigma Of Impossible Languages.” Disp. em:

linguagem e regra corretas, adequadas e fundadas em razão, para determinar e comunicar a verdade, não seria isso afinal que diferencia cientistas e leigos?

2.4.4 Existe significado único e fixo, mecânica e indefinidamente