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Informação, Linguagem, Ciência da Informação: questões epistemológicasepistemológicas

Uma vez que justificamos nossa abordagem da Comunicação Científica em geral (intra e extra-pares) pela linguagem, exploremos algumas relações entre informação, linguagem e suas possíveis consequências para a Ciência da Informação em geral.

A informação pode existir ou ser conhecida sem a linguagem? A supor que fosse o caso, ainda faltaria, no âmbito de uma pesquisa acadêmica, demonstrá-lo.

O epistemólogo Gaston Bachelard já escrevia, em 1934, na introdução do "Novo espírito científico", que trata das consequências filosóficas acarretadas pelas descobertas da física quântica e relativista, em termos que permanecem em boa parte atuais: “A objetividade não pode ser separada dos caracteres sociais da prova. Só se pode chegar à objetividade expondo de maneira discursiva e detalhada um método de objetivação.”31 (BACHELARD, 1934, introdução)

A partilha da prova através do discurso, que permite aos pares exercerem seu controle no âmbito social (Bachelard (1996[1934]) usa a expressão "controle social"32) e à ciência ser um conhecimento público, é um pré-requisito científico, reconhecido em CI por autores

consagrados da Comunicação Científica, como Ziman (1979). E, como a partilha não pode prescindir de um discurso, este por sua vez usa necessariamente uma língua (e eventualmente uma linguagem formal) particular. Ora, como o veremos adiante, tanto as línguas ditas particulares quanto as linguagens formais, para além das aptidões genéticas e fisiológicas que requererem inegavelmente, são adquiridas, comunicadas, construídas com os pares e sob seu controle, através de práticas particulares de partilha de conhecimento. Práticas que se dão em condições históricas, sociais e cognitivas particulares ou individuais (além de psicológicas, econômicas, políticas...). E qualquer demonstração ou prova, partilhada em CI sobre seu objeto, não poderá se eximir completamente dessas condições.

Isso implica que a CI seja considerada uma subárea dos estudos da linguagem? Independentemente da resposta a esta pergunta provocadora, parece irrefutável que, se aceitamos a afirmação acima de Bachelard, então, para constituir cientificamente a si própria 31L'objectivité ne peut se détacher des caractères sociaux de la preuve. On ne peut arriver à l'objectivité qu'en exposant d'une manière discursive et détaillée une méthode d'objectivation.

32Para ter certeza de que o estímulo deixou de ser a base de nossa objetivação, para ter certeza de que o controle objetivo é uma reforma em vez de um eco, é preciso chegar ao controle social.(BACHELARD, 1996[1934]:294-295)

e a seu objeto, a CI usa imprescindivelmente discurso, portanto linguagem.

Examinemos mais em detalhe a concepção de linguagem na epistemologia de Bachelard, relacionando-a com a DC. Para o epistemólogo, é a construção que separa a experiência da experimentação:

Como a experiência comum não é construída, não poderá ser, achamos nós, efetivamente verificada. Ela permanece um fato. Não pode criar uma lei. Para confirmar cientificamente a verdade, é preciso confrontá-la com vários e diferentes pontos de vista. Pensar uma experiência é, assim, mostrar a coerência de um pluralismo inicial. (BACHELARD, 1996[1938], p. 13-14)

Bachelard teria avaliado todas as consequências para a noção de objetividade quando se introduz explicitamente na verdade científica o discurso e o social? Esses são geralmente considerados como não-universais a priori, quando não completamente irracionais e caóticos, portanto a porta aberta para a regressão ao senso comum.

Para Bachelard, a verdade não produziria uma objetividade, única e dada uma vez por todas, mas resultaria de um constante processo de objetivação, que inclui o controle de vários pontos de vista. O “caráter social da prova”, que está na base do processo científico é

suscetível de gerar “polêmicas”33, abrindo o caminho para as “controvérsias” de autores como Latour (1987) ou Shapin e Schaffer (1985). O que a sociologia de Bourdieu (2004[2001], p. 13-14, 17) acrescentaria, em relação à Bachelard, é o conhecimento racional e explicação científica dessas polêmicas, antes estudadas como sendo intrínsecas à ciência, na trilha do que Bachelard chama as “cores locais” ou “regionalismos” do conhecimento científico. Para o sociólogo, esses dissensos, que por analogia poderíamos chamar de sotaques, se enquadram indissociavelmente numa lógica de relações sócio-históricas particulares, que envolvem não apenas a livre construção e comunicação do conhecimento racional, mas também relações de força em geral, i.e. pressões exercidas de “dentro” pelo controle social dos pares, mas também de fora, segundo regras e critérios alheios à ciência. Não existe, para Bourdieu, uma epistemologia pura, já que o próprio conceito de razão não “cai do céu” nem é a universal a priori mas é, antes, uma construção sócio-histórica (BOURDIEU; WACQUANT, 1992, p. 130, 162-163), um processo contínuo de objetivação a decorrer no tempo, que poderíamos qualificar de impuro na medida que envolve alteridades sociais científicas e não científicas.

Apesar de reconhecer o caráter social da prova na Ciência, a epistemologia de Bachelard 33A observação científica sempre é uma observação polêmica: confirma ou infirma uma tese anterior, um esquema prévio, um plano de observação; mostra demonstrando; […]. (BACHELARD, 1934, Introdução)

é claramente alheia à Divulgação Científica. Bensaude-Vincent (2010), estudiosa da DC, cita trechos de “A formação do espírito científico” de 1938, para ilustrar como, após a 1ª Guerra Mundial, a categoria de público foi rebaixada à de leigo (“profane” em francês). Na referida obra, podemos ler:

A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. […] A opinião pensa mal; não pensa: traduz

necessidades em conhecimentos. […] Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. (BACHELARD, 1996[1938], p. 18)[itálicos no original]

Os propósitos do epistemólogo parecem contudo menos extremos quando, ao continuar a leitura da mesma página, vemos que se dirige aos pares, não necessariamente à opinião pública em geral:

O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas.” (BACHELARD, 1996[1938], p. 18)

Adepta da ruptura, Bachelard recusa qualquer continuidade epistêmica entre a observação “usual” na física clássica e a experimentação, tal como esta é entendida depois da

complexidade e pluralidade essenciais das mutações relativista e quântica. No novo espírito científico, a experiência contradiz necessariamente a “comum”, “que não é de fato

construída”. O objeto individual observado perde sua unidade, fundada pela física clássica na simples intuição, e por aí seu caráter a priori, absoluto. Torna-se uma construção discursiva (1978[1938], p. 14) a partir de uma “ambiguidade essencial”, que Bachelard já tinha descrito no livro “O novo espírito científico” de 1934:

Com o novo espírito científico, é todo o problema da intuição que se acha invertido. Pois essa intuição não poderia ser primitiva de hoje em diante; ela é precedida por um estudo discursivo que realiza uma espécie de dualidade fundamental. […] Doravante toda intuição procederá duma escolha; haverá portanto uma espécie de ambiguidade essencial na base da descrição científica e o caráter imediato da evidência cartesiana será perturbado. (BACHELARD, 1978[1934], p. 161)

Mas, no que diz respeito à linguagem, o pluralismo e alteridade que Bachelard defende permanecem formais em sua expressão, restringindo-se portanto a interlocutores cientistas. O fato de Bensaude-Vincent tê-lo citado em um artigo sobre Divulgação justifica-se, contudo, quando que ele exclui explícita e definitivamente da ciência a cultura popular, na “Filosofia do Não”, de 1940:

inventiva. Dir-se-á que ela é a mais difícil e que não se pode esperar fazer dela o quadro de uma cultura popular, sobretudo se a encararmos na sua parte

realmente dialetizante, nas suas formações não-euclidianas e relativistas. (BACHELARD, 1978[1940], p. 80)

Para Bachelard, a unidade não apenas do pensamento “puro” mas também das ações, repousa na linguagem matemática:

… a matemática é uma linguagem de estrutura semelhante à estrutura dos organismos, por outras palavras, é uma linguagem correta não só do ponto de vista neurológico mas também do ponto de vista biológico. Esta característica das matemáticas, descoberta de uma forma absolutamente inesperada, torna possível a fusão da geometria e da física" ou, por outras palavras, torna possível a fusão dos pensamentos puros e das ações. Só as matemáticas são suscetíveis de uma tradução formal autógena, de uma atividade formal que se desenvolve por si. (BACHELARD, 1978[1940], p. 79)

A linguagem científica, na concepção que poderíamos qualificar de fusional e biológica (portanto acima do dualismo cartesiano) defendida por Bachelard, supõe que é possível chegar à verdade da ciência natural através da pura racionalidade de uma tradução formal, embora essa sempre passe por uma escolha, construída através do discurso, e até mesmo pela alteridade de um “controle social”, tendo-se admitido os “caracteres sociais da prova”.

Se por um lado a problematização da unidade do objeto de conhecimento da física é apresentada como fundamental, Bachelard não problematiza a linguagem de representação do objeto, pelo contrário: é a linguagem matemática, pelo que entendemos, que permite superar a “dualidade fundamental”. Ele deixa de lado a problemática da escolha entre as diversas linguagens matemáticas disponíveis e de como elas permitem passar – ou fazer a tradução – de um sistema formal para o outro. Mas, como veremos adiante, contra o que sustenta

Bachelard, antes mesmo da publicação de suas obras citadas aqui, já tinha sido demonstrado pelo matemático Kurt Gödel que a tradução, mesmo entre sistemas “puramente” formais, é sempre problemática, exceto no caso do “cálculo de predicados de 1ª ordem”.

Mais fundamentalmente, questionamos um ponto preciso: a epistemologia de Bachelard não estende a problematização da unidade de conhecimento (na Física) à própria unidade de linguagem que a representa. Contra os preceitos metodológicos que ele defende, ele aceita intuitiva e “naturalmente” na Física a existência a priori de unidades de linguagem

matemática, à exemplo de uma realidade biológica, dada, inquestionável.

Será possível que a linguagem científica tem uma vida própria, uma dinâmica exclusivamente interna e automática, sendo absolutamente autônoma em relação a seus

usuários e ao controle desses, que ele mesmo destaca? A “perspectiva de erros retificados”, ausentes da “percepção imediata” (BACHELARD, 1996[1938], p. 13-14), não requer, antes, alguma concepção histórica de acumulação de conhecimento pela correção e seleção, a qual por sua vez necessita uma interação comunicativa, portanto linguageira, que se desenrola numa dimensão social e histórica, do espaço-tempo?

A “Nova Física” quebra o postulado de identidade ou tautologia (BACHELARD,

1978[1940], p. 69-70). Logo há uma escolha a ser feita entre as possíveis regras semânticas a aplicar – a da lógica aristotélica (regra de não contradição) ou não – para produzir provas de verdade sobre a realidade física. Ora tal escolha resulta de um ato humano, portanto de um ator social, não de alguma ação puramente automática (senão os adeptas da física clássica teriam adotado imediata e automaticamente as novas teorias!). Como não deduzir, dos propósitos do mesmo Bachelard, que os físicos “clássicos” e “novos” se distinguem

socialmente, em sua prática científica, pelo uso de regras semânticas diferentes – aristotélicas ou não – na produção e controle de provas? As próprias semântica, notações da lógica e da matemática, não são, elas mesmas, construções, cuja partilha passa inevitavelmente, na prática, pela percepção social imediata (visual, auditiva...) e linguagem “comuns”? Como explicar, então, o surgimento e intercompreensão de novas linguagens formais? Seriam elas geradas espontaneamente, independentemente de qualquer “tradução” de “necessidade” não exclusivamente racional? E como supor a priori que novas linguagens formais não têm efeito algum sobre o próprio ato racional de conhecer e seus produtos, levando-os a manifestar no decorrer da história características diferenciadas e datáveis?

Resta que, se as linguagens científicas não são construções puramente formais, então são, no mínimo em parte, construções e criações sócio-históricas, datáveis.

Pelo que entendemos, em suma, uma vez que se admitiu a dimensão sócio-discursiva do conhecimento – processo de objetivação, construção do objeto e provação – , não se poderia evitar as consequências para a própria epistemologia, como ramo do saber, e isentá-la das condições e marcas sócio-históricas particulares de sua produção. Conforme adverte

Bourdieu, pelo menos para a epistemologia que se aplica ao presente estudo – a das Ciências Sociais, nas quais a CI se inclui – excluir do objeto de conhecimento, como também do ato de conhecer, as marcas sócio-históricas de seu processo de construção, equivaleria a parar no meio do caminho em direção à verdade científica. No caso da DC, seria descartar a

objetivação do objeto “barreira da linguagem” com toda sua complexidade, e por aí excluir a pluralidade social, linguística e o leigo, inviabilizando o estudo pleno e científico da DC na CI.

No outro extremo, o sociólogo recusa que uma ciência permeada pelo social seja incapaz de produzir quaisquer verdades (2004[2001], p. 13), já que em sua sociologia ou na história das ciências de Daston34, para citar apenas esses autores e suas respectivas áreas, social não é sinônimo de irracionalidade absoluta. Existe, para Bourdieu (1980), uma razão que não é formal, mas social e prática. Afinal, parece-nos recebível o argumento que se deve comprovar a existência da própria racionalidade como objeto e como ato prático de conhecimento, observando-o e analisando-o ao longo da história na sua construção discursiva e social. Tal objetivação também ajuda-nos a explicitar, reflexivamente, a própria concepção particular de razão que supostamente usamos aqui, em relação à outra formas de racionalidade não

necessariamente científicas – sem por isso, aliás, excluir as aptidões cognitivas biológicas que são as de nossa espécie. O mesmo se aplica, nesse estudo, à linguagem científica, entendida relativamente à linguagem “comum”.

No decorrer de nossa análise, buscamos mostrar tanto o papel desempenhado pela linguagem científica na construção, organização e estabilização do conhecimento científico,

quanto as marcas que simultaneamente a diferenciam da linguagem comum e distinguem cientistas e leigos, indicando como esse papel, uma vez que implica escolhas (ou imposições), implícitas ou não, nunca não é socialmente neutro.

Se a CI, como outras áreas aliás, não se constitui exclusiva e principalmente pela linguagem, e não poderia por isso ser reduzida a uma forma específica do estudo da linguagem, deveria tentar, sendo uma Ciência Social, tirar o máximo de consequências da presença imprescindível desse componente. Do contrário, corre o risco de introduzir em sua construção e no seu objeto de estudo elementos que escapam de seu controle e conhecimento, e até de passar, de fato, à margem da ciência atual.

Basta mencionar a Recuperação de Informação-RI, uma das subáreas centrais da CI. Como, nesse caso, esquivar a necessidade de aprofundar a questão da linguagem? Esta não diz respeito à constituição da CI apenas, é indissociável do objeto de estudo específico. O usuário de um sistema de RI não tem outra escolha senão usar explicitamente uma

34A historiadora das ciências Lorraine Daston recusa a oposição geralmente aceita entre social e racional em seu artigo “Uma história da objetividade” (DASTON, 2008[1998]:374).

determinada linguagem para se comunicar com o sistema e acessar seus dados; o que não significa, aliás, que a problemática geral da consulta feita ao sistema possa ser reduzida estritamente à palavra usada na busca35. Além do mais, os sistemas de RI são escritos em linguagens de programação, que são linguagens formais, o que, em rigor, tem possíveis consequências sobre o tipo de verdade que podem – ou não – produzir, ou sobre o grupo de destinatários que os resultados das consultas podem privilegiar.

Uma outra maneira de responder à pergunta sobre a relação entre linguagem e informação seria sustentar que a informação existe sem a linguagem porque não se pode provar o

contrário. Tal resposta seria aceitável se, para ser partilhado, o sentido ou conceptualização da palavra informação não precisasse ser explicitado e tornado público, em termos científicos, o que se adequaria apenas a áreas não científicas. Mas, se aceitamos os pré-requisitos de

construção do objeto e de controle social de Bachelard e arcamos com todas as consequências

sociais apontadas por Bourdieu, então, em ciência, só se poderia negar a existência de um objeto que tenha sido construído através de asserções discursivas e de algum método explícito, partilhadas em uma sociedade e momento histórico particulares. E, para ser

aceitável como tal, um objeto científico exige que sua existência seja provada, o que excluiria as palavras cujo sentido não foi verificado, ou até mesmo impossível de se verificar, por algum método (o que não significa, de maneira alguma, que possam existir nas sociedades humanas outras verdades que as científicas, mas não seriam, então, verdades no sentido científico). Tal demonstração, por ter que ser partilhada, pré-requisito de todo conhecimento cientificamente validado pelos pares, já não exigiria o uso –portanto a escolha– de alguma linguagem, conforme o discutimos acima, relativamente à epistemologia de Bachelard? Mas, para que a partilha de uma demonstração de existência possa ser absolutamente objetiva, não seria também exigido o uso de uma linguagem absolutamente neutra e capaz de expressar a verdade em sua totalidade? Em suma, a supor que exista uma verdade absoluta, ainda haveria que provar que existe uma linguagem absolutamente neutra, a fim de reunir as condições necessárias para uma comunicação total da verdade objetiva. Isso sem falar da possibilidade de neutralizar de alguma maneira todas as condições sociais e históricas em que qualquer 35Mesmo que o usuário comunique com um sistema de RI por ondas cerebrais, como a tecnologia já o permite, estas são interpretadas segundo um certo método por um programa de computador, o que implica

inevitavelmente a escolha de uma linguagem específica, que nunca é neutra, sabendo que existem e continuam surgindo novas e inúmeras linguagens de programação, cada qual respondendo a novas e específicas

verdade objetiva é concebida, enunciada, partilhada e validada pelos pares.

Até o momento, conforme o pormenorizamos no capítulo 2 dedicado a nossas

pressuposições teóricas, está comprovado que, embora se admita que a aptidão da linguagem seja inata, as línguas humanas particulares são adquiridas, desenvolvidas e usadas em um espaço social datado, em que se situam seus usuários, que estes as escolham ou não livre e conscientemente (cf. 2.4).

Diferente do conhecimento místico ou religioso, o conhecimento científico é passível de ser contradito e retificado no decorrer do tempo, usando-se alguma linguagem explícita particular, o que o torna necessariamente social e histórico, embora possa continuar sendo considerado universal. A universalidade do conhecimento científico, construída, aceitável, refutável e expansível, com tudo que isso supõe e implica, diferiria radicalmente do

conhecimento místico ou religioso, primordialmente auto-declarativo, dogmático, absoluto e anistórico. Isso não significa que, da mesma forma que a CI não repousa exclusivamente na linguagem, a Ciência não repousa exclusivamente em conhecimentos que não sejam crenças. Se a verdade científica resulta de um processo de objetivação sempre mediado pelo discurso, que não é estanque a outras formas de verdade que a científica, então esta não é “pura”, sempre chega misturada com alguma crença, ideologia, etc.

Podemos perguntar se o processo de objetivação irá – ou poderá – necessariamente reduzir, ao longo do tempo, qualquer saber, não apenas religioso, mas não científico em geral, a um conhecimento e discurso científicos. A questão, já esboçada acima a propósito da

irredutibilidade do grupo dos cientistas aos não cientistas, nos parece fundamental para conceber a DC. Orienta de forma decisiva o que se pode esperar da relação de comunicação dos cientistas com os não cientistas (ou com cientistas de outras áreas): a DC visa "converter" em cientistas os não cientistas (ou os cientistas de uma área visam converter à sua área

particular os demais), ou consideraria os segundos como grupos que perseguem valores próprios, e que, a esse título, possuem uma história e identidade distintas, irredutíveis, cuja existência social autônoma deve sempre ser reconhecida como legítima pelos cientistas?

Além do mais, ao evocar a dimensão sócio-discursiva como condição de existência do conhecimento científico, Bachelard conduz à questão do sujeito cognoscente como ator-produtor, levando-nos para o terreno da sociologia e da informação como prática social. Então, se a verdade científica supõe a existência do conhecimento universal, este por sua vez

é condicionado por outras supostas universalidades, entre as quais a de seus enunciadores – que nada mais são que os atores sociais ou agentes – que o comunicam e controlam no âmbito social. Bourdieu formula a indagação sobre verdade e ator social no livro extraído de sua última aula no Collège de France, salientando no final os “jogos de linguagens” de Wittgenstein:

Como resposta à questão de saber quem é o «sujeito» desta «criação de verdades e valores eternos», podemos invocar Deus ou qualquer um dos seus substitutos