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Abordagens curriculares e contextos para a implementação da área da

4.1. CONCEITO DE CIDADANIA

4.2.4 Abordagens curriculares e contextos para a implementação da área da

Retomando Roldão (1999c), a complexidade do conceito de cidadania tem dado origem a uma diversidade de modalidades de implementação curricular desta área, diversidade esta associada também às diferentes perspectivas curriculares e educacionais dominantes. A autora, referindo-se especificamente ao contexto educativo português, indica sete formas distintas de operacionalização curricular desta área, alertando para o facto de que não se trata de linhas mutuamente exclusivas nem sequenciais. São elas:

1. A existência de disciplinas dirigidas para dimensões da cidadania com programas específicos; 2. A incorporação preferencial da educação para a cidadania em algumas disciplinas do currículo,

com destaque para a História e os Estudos Sociais; 3. A organização de temas transversais;

4. A existência de áreas interdisciplinares ou áreas de projecto;

5. A existência de programas educativos orientados para a formação pessoal e social do aluno nas suas diversas vertentes com carácter transversal

6. A concepção das disciplinas e área curriculares como instrumentos de formação para a cidadania

7. A vivência institucional: clima da escola e mecanismos de participação. (ibidem: 16)

Outros autores têm proposto outros tipos de abordagem e outras terminologias, nomeadamente Santos (2005), que, em alternativa à designação de educação para a cidadania propõe a designação de educação cidadã, tratando-se de uma abordagem que, na sua perspectiva, está comprometida com a democracia e também com uma pedagogia que valoriza o autosocioconstrutivismo e a comunicação dialógica, sendo estes dois factores fundamentais na promoção de uma educação cidadã. Tal como explica a autora o “autosocioconstrutivismo enfatiza a construção e o reconhecimento de identidades sociais, construção esta elaborada pelo próprio sujeito com o contributo dos outros, nos contextos em que o indivíduo se insere” (ibidem: 101). Quanto à comunicação dialógica, embora a autora reconheça que ela, por si só, não se constitui como uma garantia de participação democrática, considera que poderá potenciar “debates éticos e negociações entre os cidadãos que suscitam acordos obtidos por argumentação num movimento intersubjectivo e solidário de significações e de construção da inteligência por interacção social” (op. cit.).

Ainda de acordo com Santos (2005) uma educação cidadã é aquela que melhor traduz, não só o educar para a cidadania, mas também o educar pela cidadania e o educar sobre cidadania. Assim, e na perspectiva da autora, a educação sobre cidadania remete para uma perspectiva cognitiva mais tradicional, na medida em que visa proporcionar conhecimentos na área da cidadania, ou seja “conhecimentos acerca do universo conceptual da cidadania, acerca dos sistemas políticos, das instituições, dos problemas e práticas da nossa democracia e sobre como torná-los efectivos na vida da nação. […]” (Santos, 2004: 18). Segundo a autora, abarca, ainda, “o conhecimento e a compreensão sobre como tornar-se um cidadão interessado e informado e o desenvolvimento de competências de participação, de comunicação e de acção responsável […]” (op. cit.). Deste modo, e tal como salienta, a educação sobre cidadania tem como aspecto central a aquisição de uma literacia política. Como se reconhece, esta perspectiva remete para o desenvolvimento das competências político-jurídicas referidas por Audigier (2000).

No que se refere à educação pela cidadania, de acordo com a autora, esta perspectiva remete para um tipo de abordagem experiencial de cidadania em espaços democráticos. Envolve o aprender a fazer, fazendo, evidenciando-se a ideia de que as competências inerentes a esta área se desenvolvem em “situação” (Figueiredo, 2002). Conforme Graça (1999), a formação de crianças e jovens como cidadãos depende muito da própria vivência que eles têm na escola, pelo que será fundamental prestar uma especial atenção ao clima, à cultura e aos mecanismos de participação na própria escola. Implica, por isso, a necessidade de garantir uma organização e um clima de escola de vivência democrática e de qualidade, facilitadores do bem-estar, do desenvolvimento e da participação dos alunos (Carita, Abreu e Queiroz, 1994). Também Freitas (1999: 25) refere que “[...] momento a momento, a vida dá ao professor a oportunidade para chamar os temas que estão a ser vividos no momento para «lições» de cidadania”. O autor acrescenta ainda que a vivência da cidadania é muito mais fácil quando, na própria escola (enquanto conjunto de professores e educadores), existe um ambiente de trabalho de cooperação, de entendimento, o que, conforme salienta o autor, não exclui, evidentemente, discordâncias de princípios, como é próprio da vivência democrática. Esta é a razão pela qual julgamos que se torna imprescindível o desenvolvimento da competência reflexiva e crítica, para ser possível fazer opções fundamentadas entre alternativas.

Finalmente, a educação para a cidadania que, de acordo com Santos (2004: 20), remete para uma abordagem a longo prazo, que pressupõe dotar os alunos de um conjunto de instrumentos conceptuais (conhecimento e compreensão, competências e atitudes, valores e disposições) “que os habilitem a participar, activa e sensivelmente, nos papéis e responsabilidades que irão encontrar na sua vida futura – na vida adulta”. Porém, apesar de se considerar fundamental uma visão de futuro, considera-se que os alunos, embora crianças e jovens, já vivem em sociedade e, como tal, já são cidadãos, sendo a escola um lugar de vida e não apenas de preparação para uma vida futura. Na mesma linha, no Relatório Final do recente Debate Nacional sobre Educação, promovido pelo Conselho Nacional de Educação (2007) se refere que:

“educar para a cidadania só pode ser educar na cidadania. A escola tem de assumir-se como lugar de cidadania participativa, de respeito pela diferença, de tomada de decisões, onde se exerce a cidadania hoje e não um local onde se prepara para uma cidadania futura” (CNE, 2007: 37).

É no entanto de salientar que, apesar de Santos (2005) considerar que a educação para a cidadania remete para uma abordagem a longo prazo, a autora deixa claro que, na sua perspectiva, é a educação sobre cidadania e a educação pela cidadania que tornam possível a educação para a cidadania, subentendendo-se a importância que esta autora também atribui à escola enquanto espaço para o exercício e vivência de uma cidadania participativa.

De acordo com as recomendações do Conselho da Europa, (Rec (2002)12), sobre Educação para a Cidadania Democrática, já referida anteriormente, todos os níveis de ensino do sistema educativo devem contribuir para a implementação da educação para a cidadania, seja por meio de uma disciplina específica, seja enquanto uma temática transversal ao currículo. Salienta-se, ainda, o facto destas mesmas recomendações apelarem à adopção de abordagens multidisciplinares de modo a facilitar a aquisição de conhecimentos, atitudes e competências necessárias aos indivíduos para viverem harmoniosamente em conjunto, numa sociedade democrática e multicultural. Deste modo, e tendo como referencial estas recomendações do Conselho da Europa, também no estudo “educação para a cidadania nas escolas da Europa” (Eurydice, 2005), já referenciado, se conclui, que na perspectiva curricular, a educação para a cidadania pode assumir diversas abordagens de acordo com o nível de ensino e de organização curricular dos países

participantes. Assim, distinguem-se três grandes tipos de abordagem: uma abordagem disciplinar através de uma disciplina autónoma, com carácter obrigatório ou opcional; uma abordagem integrada em disciplinas convencionais, como é o caso das disciplinas de História, Estudos Sociais, Geografia ou Filosofia e, ainda, uma abordagem transversal em que os princípios da educação para a cidadania podem estar presentes no conjunto de disciplinas do currículo. De acordo com os resultados do referido estudo, ao nível do ensino primário, a maioria dos países participantes tende a integrar a educação para a cidadania no contexto de algumas disciplinas ou a propô-la como temática transversal ao currículo. Ao nível do ensino secundário, a educação para a cidadania é frequentemente oferecida como disciplina autónoma, porém, na maior parte dos países em que a educação para a cidadania é oferecida como disciplina autónoma, verifica-se a coexistência desta modalidade com a sua oferta integrada em outras disciplinas ou enquanto temática transversal ao currículo.

Também entre nós, Henriques et al (2001) sugerem diferentes contextos para a promoção da educação para a cidadania, nomeadamente o contexto comunitário, o contexto organizacional e o contexto curricular/plano de estudos. Para uma compreensão mais aprofundada explicitamos, de seguida, cada um destes contextos.

Contexto comunitário

Conforme já tentámos afincadamente defender, a escola, enquanto espaço de formação e de educação para a cidadania, não pode ser entendida como uma ilha isolada. Ela está integrada num determinado contexto comunitário com o qual interage, sendo influenciada e influenciando, directa e indirectamente, esse mesmo contexto. É neste sentido que Henriques et al (2001) consideram importante que a escola estabeleça compromissos com outras instituições sociais para educar para a cidadania, aproveitando e potenciando toda esta interacção “para trabalhar as questões da luta contra a exclusão social, a identidade, a pertença, o relacionamento interpessoal, o desenvolvimento de competências comunicacionais e sociais, o conhecimento e o debate do mundo actual” (2001: 56). Esta ligação com a comunidade é explicitamente incentivada na recomendação (2002)12 do Conselho da Europa, elaborada no âmbito do projecto de Educação para a

Cidadania Democrática, e na qual se recomenda que se tomem em consideração “todas as oportunidades de colaboração informal na educação para a cidadania democrática, facultadas por instituições sociais, em especial a família, e por estruturas e instâncias da sociedade civil” Trata-se, por isso, de um contexto que remete para uma abordagem de natureza ecológica (Bronfenbrenner, 1979, 1996; Alarcão e Sá-Chaves, 2000), considerando-se, por isso, a educação para a cidadania como uma tarefa que não é da exclusiva responsabilidade da escola mas sim de toda a sociedade civil, na qual a escola se integra. Retoma-se, assim, a ideia de cidade educadora, como espaço de cultura e de aprendizagem referenciada anteriormente.

Contexto organizacional

Situando-se ao nível mesossistémico (Bronfenbrenner, 1979, 1996; Sá-Chaves, 2000a, 2002a), esta abordagem abrange o ambiente e a organização curricular, bem como as vivências dos alunos e dos professores dentro da sala de aula e da escola, remetendo, por isso, e de acordo com Santos (2005) para um abordagem transcurricular de natureza experiencial, enquadrada por uma perspectiva de educação pela cidadania.

Com efeito, de acordo Henriques et al (2001), a forma como a escola se organiza e funciona, os estilos de liderança, os espaços de acção e de participação que são conferidos aos diferentes intervenientes no processo educativo, as relações interpessoais e de comunicação, a forma como os problemas e os conflitos são geridos traduzem-se em “modos de agir e de ser que podem ou não representar um contributo para promover junto dos alunos o valor da cidadania” (ibidem: 56). Acrescentam, ainda, que “não é possível ensinar para a cidadania democrática em ambiente não democrático […]” (op. cit.). Na mesma linha, também Graça (1999: 20) afirma que “não há formação de crianças e de jovens com espírito de participação democrática se eles próprios não tiverem uma vivência democrática enquanto crianças, enquanto alunos, enquanto jovens”. Na sua perspectiva, a escola só estará em condições de formar os seus alunos nesse espírito de cidadania e de vivência democrática se os próprios professores assumirem essa vivência democrática e participativa. Julgamos, assim, que a qualidade da formação dos alunos, e dos próprios

professores numa perspectiva de aprendizagem ao longo da vida, depende da qualidade do ambiente e do clima institucional, bem como das próprias dinâmicas de formação.

No relatório final da primeira fase do Projecto de Educação para a Cidadania Democrática, elaborado por Keith Forrester, a partir da Conferência Final realizada entre 14 e 16 de Setembro de 2000, em Estrasburgo, o autor, ao resumir a intervenção de Mark Elchardus na referida Conferência, faz referência a três estudos realizados na Bélgica (Flandres). Um destes estudos teve como finalidade averiguar a capacidade da escola para exercer uma influência efectiva em matéria de atitudes e valores, tendo tido como participantes 63 escolas, 4700 alunos a frequentarem o último ano do ensino secundário e 700 professores e gestores dos estabelecimentos educativos. De acordo com o autor (Forrester, 2000: 22), este estudo mostrou claramente que:

“a) As escolas exercem uma influência importante nas atitudes dos alunos, não através do currículo formal e explícito, mas através do currículo escondido / oculto, (que se manifesta, por exemplo, nas possibilidades de participação, nos processos de decisão, no estilo de direcção da escola e na autonomia profissional dos professores).

b) A qualidade da cultura escola é tão importante como os esforços dedicados à elaboração de materiais pedagógicos e a projectos específicos.

c) A ECD deve começar pelos próprios professores e colocar mais a tónica nas atitudes e nas competências do que nos conhecimentos”.

Deve, no entanto, salientar-se que o conceito de competência pressuposto neste estudo, se refere a um conhecimento em acção (Perrenoud, 1999a), ou seja, uma acção informada por saberes e por valores. Este estudo vem, assim, reforçar a importância da cultura organizacional da escola e do clima formal e informal de comunicação entre os vários actores educativos na promoção da educação para a cidadania.

Deste modo, e conforme Diaz-Aguado (2001), a educação para a cidadania deve alargar-se a todos os processos de ensino-aprendizagem e a todas as actividades que têm lugar na escola na medida em que, “através de todas elas se transmitem (bem, medianamente ou mal) as normas e os papéis que os alunos exercerão fora dela. Pelo que não parece conveniente limitar a educação para a cidadania a uma disciplina ou a um momento determinado do horário escolar” (ibidem), o que aponta no sentido de uma abordagem transcurricular.

Todavia, uma abordagem de natureza transcurricular tem forçosamente implicações ao nível da acção dos professores, enquanto acção colectiva e enquanto acção individual. Assim, considera-se fundamental que a escola se perceba colectivamente como “instituição reflexiva” (Alarcão 2001), conforme já se referiu no capítulo anterior, e se assuma como um espaço privilegiado cujo objectivo fulcral é educar para o exercício de uma cidadania activa e responsável, criando oportunidades para que os alunos participem nas decisões acerca da vida na escola, sobre as suas aprendizagens e sobre os projectos a serem desenvolvidos.

É precisamente aqui que se recoloca o papel do professor na possível mudança e transformação das sociedades. No entanto, para que isso aconteça é necessário que os professores tenham um profundo conhecimento dos fins, objectivos e valores educacionais e dos seus fundamentos filosóficos e históricos (Shulman, 2004) e se conheçam a si próprios (Elbaz, 1988, citada por Sá-Chaves, 2002a), reflectindo de forma crítica sobre as suas próprias práticas curriculares, consciencializando-se das consequências sociais e éticas da sua intervenção nos alunos, e percebendo que as suas acções poderão ser geradoras de aprendizagens sociais relevantes que, à partida, poderiam não fazer parte das suas intenções. Estes aspectos remetem para o conceito de currículo oculto (Torres Santomé, 1995), que se prende com o ambiente e o clima organizacional da escola e da sala de aula e com os tipos de relação e de comunicação que se estabelecem nestes espaços, produtores de significados nem sempre explicitados, mas que devem ser objecto de atenção.

Contexto curricular/plano de estudos.

Ao nível do contexto curricular considera-se que a educação para a cidadania poderá ser promovida através de uma abordagem de natureza disciplinar e de natureza transdiciplinar.

Subjacente a uma abordagem de natureza disciplinar emerge a ideia de que a educação para a cidadania pode ser promovida através de uma disciplina autónoma com um programa próprio. No entanto, considera-se que também poderá dizer respeito a um momento curricular específico com carácter regular, que pode não ser necessariamente

uma disciplina, como por exemplo, é o caso da assembleia de turma. Com efeito, a assembleia de turma diz respeito a uma estratégia curricular de gestão de sala de aula, através da qual “a turma, colegialmente, planeia, acompanha, regula, analisa, orienta e gere as aprendizagens” (Niza, 1998: 89) e se discutem e encontram soluções de forma cooperativa para os problemas e comportamentos dos aluno individualmente e da turma enquanto colectivo.

Por outro lado, uma vez que a maior parte do tempo vivido pelos alunos na escola é dedicado às disciplinas curriculares será importante que se invista nelas com o intuito de através delas, e de forma articulada, se possa promover o desenvolvimento de saberes, de valores, de atitudes e de competências fundamentais para o exercício de uma cidadania sustentada, aspecto este que remete para um abordagem de natureza transdisciplinar. Como é óbvio, isso implica que se invista e se aprofunde o conhecimento acerca da formação de professores dessas áreas disciplinares, formados segundo outras concepções e abordagens curriculares alternativas à racionalidade técnica, linear e centrada nas literacias elementares que, embora muito importantes, não são por si só suficientes numa perspectiva de desenvolvimento humano integral.