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3.2. CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO CURRICULAR

3.2.1 Níveis de gestão/decisão curricular

3.2.1.1 Contexto político administrativo

Numa primeira fase o currículo formal, com carácter nacional, é elaborado centralmente ao nível das estruturas político-administrativas. A este nível tomam-se um conjunto de decisões quer relativamente à existência, ou não, de um currículo com uma base comum para todos os alunos, nomeadamente ao nível do ensino básico (Pacheco, 1995a, 1996, Gimeno, 1995b), quer no que diz respeito à sua própria substância (Roldão, 1999a, 1999d). Este nível de decisão curricular é particularmente importante no que se refere às finalidades últimas do processo educativo na sua dimensão escolarizada e que visam a formação integral dos alunos, percebidos como cidadãos.

Prescrição curricular: currículo básico comum

De acordo com Kirk (1989), o termo “currículo básico” sugere a existência de um conjunto de aprendizagens que, sejam elas quais forem, por se considerarem básicas, no sentido de essenciais a todos os cidadãos, deverão constituir o núcleo central do currículo. Acrescenta ainda, que o termo implica também que o tal núcleo constituirá apenas uma parte das aprendizagens dos alunos, subentendendo-se, desde já, a existência na estrutura curricular de um lugar para a introdução de outras aprendizagens igualmente relevantes para o aluno, em função das características dos contextos de acção.

Isto significa que, se o currículo básico diz respeito às aprendizagens essenciais, significa que se trata de um plano de estudos com uma base comum para todos os alunos. Segundo Gimeno (1995b), esta ideia de um currículo mínimo comum está intimamente relacionada com a ideia de uma escola que se pretende que seja para todos. Assim, e ainda de acordo com o mesmo autor, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo cultural e em que as oportunidades de acesso à cultura são ainda muito desiguais, o currículo comum obrigatório, com carácter nacional, terá que expressar uma cultura que se considere válida e significativa para todos os grupos sociais. Será, por isso, um currículo com um rosto marcadamente social.

O facto de se tratar de um currículo igual para todos, designadamente ao nível do ensino básico, exige a criação de condições que favoreçam o sucesso dos alunos a partir de

respostas educativas contextualizadas e individualizadas em função das especificidades das realidades pedagógicas e em função das necessidades dos alunos.

Surge, desta forma, como um instrumento, que visa garantir a igualdade de oportunidades a todos os alunos traduzida em reais condições de sucesso para todos.

Neste sentido, Kirk (1989) sugere que um currículo nacional para o ensino básico deve respeitar no mínimo oito critérios fundamentais. Assim:

1º “Deve ser determinado pela administração central através de um processo democrático de consulta;

2º Deve adoptar a forma de uma informação sobre a sua estrutura geral e não uma especificação detalhada dos conteúdos do programa;

3º Deve relacionar-se directamente com um grupo de objectivos gerais de educação que incluem os conhecimentos, as habilidades, as disposições, os valores, [e as competências] necessários para se viver numa sociedade democrática;

4º Deve reflectir uma organização justificada dos conhecimentos e das disciplinas;

5º Deve incluir a escolha dos alunos e a maximização das oportunidades de auto-aprendizagem; 6º Deve ter em consideração as variações de ritmo de aprendizagem dos alunos;

7º Deve implicar um sistema nacional de certificação;

8º Deve adoptar procedimentos apropriados a nível nacional e a nível local, nos distintos graus de ensino” (ibidem: 82-87).

Trata-se, com efeito, de um conjunto de critérios que remetem para uma conceito de currículo nacional como um projecto aberto e passível de uma gestão flexível, potenciando, conforme Leite e Fernandes (2002: 42), “a concretização do princípio de uma escola para todos, que rompe com as lógicas de exclusão e de selecção para as substituir por dinâmicas de inclusão onde todos os alunos [e todos os professores] têm vez e voz”. E, trata-se, por estas razões, de um conjunto integrado de critérios nos quais se reconhecem as preocupações com o desenvolvimento das competências para a cidadania, bem como os valores que salvaguardam para todos o direito à educação e o sentido de pertença a uma dada comunidade.

Substância do currículo

Conforme Roldão (1999d: 24), apresar das múltiplas e variadas interpretações acerca do conceito de currículo e do seu desenvolvimento, ao efectuar-se uma análise diacrónica sobre o conceito, constata-se que, em qualquer circunstância, o currículo escolar implica sempre “[…] um conjunto de aprendizagens que, por se considerarem socialmente necessárias num dado tempo e contexto, cabe à escola garantir e organizar”.

Deste modo, ao nível das estruturas político-administrativas são tomadas decisões que dizem respeito às prioridades a dar às aprendizagens que em cada momento se consideram essenciais a todos os cidadãos, sejam elas de natureza científica, pragmática, humanista, cívica, interpessoal ou outras (idem, 1999a).

Tendo por base as profundas e complexas mudanças das sociedades actuais, a crescente diversidade social e cultural dos alunos e, por outro lado, o reconhecimento de que a escola existe, não apenas para instruir, mas também para formar e educar, constatamos, que a resposta à pergunta “o que ensinar” é hoje muito mais complexa do que foi no passado. Como tal, algumas questões se levantam: deverá a escola ensinar para a conservação ou preparar para a mudança? Deverá a escola ensinar o conhecido ou preparar para o desconhecido? (Carneiro, 1994). É a este nível que estas e muitas outras questões se colocam, constituindo a razão para a realização de estudos que, tal como o presente, possam contribuir para o aprofundamento destas questões. Segundo Leite (2001b) é neste confronto entre um papel mais reprodutivo [ou conservador] e outro mais produtivo [ou transformador] que se tem vindo a debater o conteúdo cultural escolar. Consideramos, no entanto, que a educação deverá pressupor sempre um equilíbrio entre, por um lado, a conservação no sentido de proporcionar aos alunos o conhecimento e a compreensão daquilo que de melhor foi criado e produzido pelas gerações precedentes assim como das tradições e da história do mundo, aspectos estes que conferem sentido às realidades presentes, e por outro, a transformação, com vista à construção de uma sociedade mais justa, mais coesa, mais democrática e, sobretudo, sustentável.

Este facto tem suscitado o interesse acerca daquilo que se consideram ser, hoje, os novos saberes básicos e a natureza desses mesmos saberes.

Ainda, de acordo com Roldão (1999d), apesar da informação estar hoje acessível através de muitos outros meios para além da escola, a autora considera que continuam a existir saberes nucleares que compete à escola assegurar aos seus alunos, nomeadamente:

a) “A passagem estruturada do quadro referencial da cultura dominante numa dada sociedade; b) A socialização conjunta dos indivíduos de todas as culturas presentes numa dada sociedade; c) O apetrechamento com instrumentos cognitivos de análise, [de] reflexão, [de] pesquisa e [de]

produção do conhecimento;

d) O ensino explícito de estratégias organizativas do conhecimento e do discurso” (ibidem: 20).

Também no Relatório da UNESCO (1996: 77), que constitui um exercício prospectivo de uma antevisão da educação para o Século XXI, e já referido anteriormente, são apontados quatro saberes básicos fundamentais a todos os cidadãos e que, de algum modo, se revelam na proposta de Roldão. Desta forma, ao reflectir sobre algumas das características da sociedade actual, refere-se que “a educação deve organizar-se à volta de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida serão, de algum modo, para cada indivíduo, os pilares do [seu próprio] conhecimento: aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver em comum, a fim de participar e de cooperar com os outros em todas as actividades humanas; finalmente aprender a ser, via [e finalidade] essencial que integra as três precedentes.” Verifica-se, assim, que, de acordo com esta perspectiva, o objectivo fundamental da educação é recentrado sobre as questões do ser pessoa e ser cidadão num mundo complexo, constituindo os conteúdos, a informação, e as competências para interagir com ela, instrumentos para melhor se atingir a finalidade ontológica que a educação pressupõe. Uma vez mais, é neste quadro que se releva a importância deste estudo enquanto produção de conhecimento que permita responder aos novos desafios sociais.

Na sequência deste Relatório, e com o objectivo de aprofundar a visão transdisciplinar da educação, a UNESCO solicitou a Edgar Morin (2000) que expusesse as suas ideias sobre a educação do amanhã. Neste sentido, Morin identifica sete saberes que, na sua perspectiva, são fundamentais à educação do futuro. São eles: o erro e a ilusão, os princípios do conhecimento pertinente, a condição humana, a identidade terrena, as incertezas, a compreensão e a ética do género humano. É de referir que, conforme o autor,

estes sete saberes se encontram articulados entre si e, por isso mesmo, a sua compreensão requer uma abordagem de natureza global e integrada, ou seja, complexa.

Assim, e tal como salienta o autor, todo o conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão na medida em que ele é fruto de uma tradução e reconstrução cerebral a partir dos estímulos e sinais captados e codificados pelos sentidos, sendo que essa tradução e reconstrução decorrem da forma como o próprio indivíduo interpreta esses mesmos estímulos e sinais. Ou seja, subentende que toda a compreensão é uma atribuição de sentidos. Por outro lado, esta interpretação está condicionada pelos conhecimentos que o indivíduo já detém, pelos seus estados afectivos e pela sua própria visão do mundo. É, por isso, que o autor considera que “o dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez” (ibidem: 33). Considera-se que, para isso, se torna fundamental desenvolver no indivíduo as suas capacidades metacognitivas, metacríticas e metarreflexivas, que o levem, de forma sistemática e continuada, a questionar e a reavaliar o seu conhecimento, as suas crenças, as suas convicções, as suas atitudes e a sua visão do mundo, conduzindo-o ao conhecimento de si próprio na perspectiva do que foi referido no capítulo anterior, a propósito das dimensões do conhecimento profissional. Por outro lado, tendo em conta que os fenómenos actuais são, cada vez mais, percebidos como multidimensionais, transversais, globais e interdependentes, consubstanciando o princípio da totalidade, o autor chama a atenção para a inadequação das abordagens centradas na fragmentação dos saberes, impeditivas de uma compreensão desses mesmos fenómenos de uma forma contextualizada, global, multidimensional e complexa. Assim, para que o conhecimento se torne verdadeiramente pertinente, Morin considera fundamental que a educação valorize um modo de construção de conhecimento que possibilite a apreensão dos fenómenos no seu contexto, na sua complexidade e no seu todo e que, ao mesmo tempo, tenha em consideração o conhecimento que o indivíduo já detém sobre o fenómeno em causa. Do ponto de vista curricular, e tendo como objectivo os princípios do conhecimento pertinente, julgamos fundamental uma abordagem de natureza globalizada e integrada (Torres Santomé, 1994; Beane, 2003), possibilitando a análise e compreensão das situações problemáticas de um modo amplo e complexo, tal como existem na vida real, utilizando, para o efeito, um corpo abrangente de conhecimentos referenciais para abordar essas mesmas situações, contrariando-se, assim, o carácter fragmentado do conhecimento organizado em disciplinas.

Por outro lado, e tendo por base o binómio unidade/diversidade inerente à própria espécie humana, Morin (2000) considera fundamental que a educação do futuro possa garantir, simultaneamente, “que a ideia de unidade da espécie humana não apague a ideia de diversidade e que a sua diversidade não apague a sua unidade” (ibidem: 55). Cabe, por isso, à educação educar para a compreensão da condição e da identidade humanas, encontrando o equilíbrio entre a unidade da espécie humana e a diversidade dos indivíduos (Banks, 2004; Kymlicka, 1995) e, promovendo um clima que conduza ao desenvolvimento de uma ética de intercompreensão do género humano através do diálogo entre culturas de modo a facilitar o desenvolvimento de valores como a justiça, o respeito, a tolerância, a solidariedade, a democracia e a equidade. Não esquecendo também os conflitos humanos, como por exemplo, o aumento das assimetrias, e os novos perigos, como é o caso dos problemas ambientais ou das doenças infecto-contagiosas, nomeadamente a SIDA, Morin chama a atenção para a necessidade dos fenómenos serem abordados numa perspectiva planetária. Considera, por isso, ser tão importante educar para a identidade e consciência terrena, fomentando-se uma ética da compreensão planetária. Do ponto de vista curricular, parece-nos então, fundamental uma abordagem que valorize as identidades múltiplas que se instituem e que devem ser percebidas aos níveis local, regional, nacional, global e planetária, naquilo que também Sá-Chaves (2001) vem referindo como identidade expandida.

Finalmente, consciente de que à história não corresponde um percurso linear, que o futuro permanece aberto e imprevisível e, considerando também, que as mudanças, na época planetária, ocorrerem a um ritmo acelerado, Morin (2000) enfatiza a importância de se educar para enfrentar as incertezas, o que de imediato nos remete para os princípios que informam o paradigma da complexidade proposto pelo mesmo autor.

Entre nós, também Cachapuz, Sá-Chaves e Paixão (2004) por solicitação do Conselho Nacional de Educação realizaram um estudo intitulado “Saberes básicos de todos os cidadãos no século XXI”. Os autores, não rejeitando a importância das literacias básicas elementares - saber ler, escrever e contar - percebidas como competências estruturantes, identificam um conjunto de cinco saberes básicos a desenvolver nos cidadãos, no contexto da sociedade da informação que constitui, na perspectiva dos mesmos, uma das condições para a passagem da sociedade da informação à sociedade do conhecimento.

Um desses saberes diz respeito ao aprender a aprender que implica, segundo os autores, “mobilizar estratégias adequadas para procurar, processar, sistematizar e organizar diferentes tipos de informação oriunda de múltiplas fontes”, assim como, “avaliá-la criteriosamente, tendo em vista a sua transformação em conhecimento” (2004: 28). Referem, ainda, que esta competência está na base de aprendizagens autónomas, aspecto este fundamental para a aprendizagem ao longo da vida. Exige, por isso, o desenvolvimento de estratégias cognitivas e metacognitivas, implicando tornar os alunos mais conscientes do seu próprio processo de aprendizagem. Ou seja, e segundo Simão (2002:33) “torná-los mais conscientes das decisões que tomam, dos conhecimentos que põem em jogo, das suas dificuldades para aprender e do modo como superam essas dificuldades”.

Outro dos saberes básicos identificados pelos autores diz respeito ao comunicar adequadamente, que pressupõe, a utilização de diferentes suportes e veículos de representação, simbolização e comunicação. Esta competência envolve a mestria linguística nas suas múltiplas vertentes (compreensão e expressão oral, leitura e escrita e conhecimento explícito que diz respeito às competências metalinguísticas), e “desejavelmente (pelo menos) uma língua estrangeira de largo espectro de difusão” (2004: 28). Neste âmbito, os autores realçam também a importância das tecnologias da informação e da comunicação.

A cidadania activa é igualmente perspectivada com um dos saberes fundamentais a todos os cidadãos. Implica, agir de forma responsável quer do ponto de vista pessoal, quer do ponto de vista social “no quadro de uma ética de responsabilidade, solidariedade e tolerância” (2004: 29). Pela sua importância neste estudo, as questões inerentes e este saber básico serão desenvolvidas no capítulo seguinte.

O espírito crítico constitui-se também como um importante saber. Pressupõe, na perspectiva dos autores o desenvolvimento de uma opinião pessoal, com base em argumentos, e a capacidade para fazer escolhas fundamentadas e reflectidas.

Finalmente, o último, refere-se à resolução de situações problemáticas e conflitos, o que implica mobilizar conhecimentos, capacidades, atitudes e estratégias para ultrapassar obstáculos que se colocam entre uma determinada situação e uma situação futura. No âmbito da esfera relacional pressupõe, segundo os mesmos, o desenvolvimento de saberes

que possibilitem “a gestão e superação de conflitos através de competências de mediação, negociação e assunção do risco” (2004: 30).

De acordo com os autores estes novos saberes básicos remetem para “competências fundacionais que se deseja que todos os cidadãos na sociedade da informação e, [desejavelmente], do conhecimento possuam, harmoniosamente articuladas, para aprender ao longo da vida sem as quais a sua realização pessoal, social e profissional se torna problemática” (2004: 17). Acrescentam ainda que estes saberes básicos são transversais e orientados para a acção, remetendo, assim, para a noção de competência como um saber em acção (Perrenoud, 1999a, 2000b) ou como um saber em uso (Roldão, 2005b) na linha do que foi abordado no segundo capítulo.

De uma maneira geral, e em jeito de síntese, constata-se a importância que, a nível internacional e nacional, se atribui à cidadania como um saber básico e estruturante, o qual, e tal como já se teve oportunidade de referir anteriormente, vem colocar aos professores e à escola novas exigências e novos desafios quer do ponto de vista curricular, quer do ponto de vista social o que pressupõe a reconsideração das suas finalidades últimas. Neste contexto, a educação para a cidadania surge como uma aposta e numa alternativa à racionalidade tecnicista, parecendo-nos, portanto, de toda a pertinência os estudos que se proponham aprofundar as questões que, com ela, se relacionam nas problemáticas educacionais.