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Para se articularem uma teoria conceptual de metáfora e uma teoria de gênero, dentro de uma perspectiva consistente, é necessário um modelo que contemple, em alguma medida, a dimensão cognitiva desse último. Ainda que o mais comum seja se aceitar que a natureza do gênero esteja definida em um plano sociossemiótico, assume-se que esse plano não existiria independentemente de fatores cognitivos (cf., principalmente, TURNER, 2001). Se, por um 43 [(Members have) “tactical freedom” to exploit generic resources to negotiate individual responses. (…)

However, such liberties, innovations, creativities, exploitations, whatever one may choose to call them, are invariably realized within rather than outside the generic boundaries.]

44 Uma observação interessante, nesse sentido, é a de que a suposta tensão que há entre a flexibilidade e a estabilidade dos gêneros é elevada a um novo patamar quando se consideram determinados tipos de discurso que se realizam no mundo digital, visto que eles se encontram em emergência, construção e reformulação contínuas e imprevisíveis (cf. MARCUSCHI, 2005b).

lado, a cognição é sócio-historicamente determinada, por outro lado, o mundo sócio-histórico está estruturado cognitivamente. Bronckart (1999) argumenta, por exemplo, que “a produção do discurso é, indissoluvelmente, trabalho psicológico e trabalho linguístico, que é, portanto, um objeto comum a essas duas disciplinas, e que ela perde sua substância e sua significação próprias, quando é tratada abstraindo-se uma dessas duas abordagens” (p. 148). Apesar de fazer parte de uma abordagem sobre o discurso que dá pouca atenção aos aspectos cognitivos do uso da linguagem – ou seja, o interacionismo sociodicursivo – esse pressuposto reconhece, de alguma maneira, a participação de processos mentais em ambas a construção e o uso de conhecimentos relativos, também, aos tipos de discurso.

Um postulado que já admite a existência de uma dimensão cognitiva do gênero é o de que esse fenômeno consistiria, em algum nível da interação verbal, em algum conhecimento especializado sobre textos (cf. VAN DIJK, 1978 [1978]). Identificado com investigações em psicolinguística45, o trabalho de Van Dijk (ibid.), sobre o processamento de textos, representa um passo inicial em direção a se articularem a estrutura típica do discurso e processos mentais responsáveis pelas organização e uso da linguagem. A sua noção de “superestrutura” [super- estructura] (p. 144) se insinua como uma primeira iniciativa de se entender o gênero como um componente cognitivo. O autor (ibid.) a define, nesse caso, como sendo

um tipo de esquema abstrato que estabelece a ordem global de um texto e que se compõe de uma série de categorias, cujas possibilidades de combinação se baseiam em regras convencionalizadas. Essa característica possui um paralelismo com a sintaxe, com que descrevemos uma oração (não é por acaso que falávamos de uma “forma textual”).46 (p. 144, grifos no original)

O conceito de superestrutura textual dá conta, basicamente, do conhecimento que um falante venha a possuir acerca da estrutura geral que caracteriza determinado tipo de texto47 como, por exemplo, uma missiva ou um artigo de revista. Van Dijk (1978 [1978]) observa que a sua explicação para essa estrutura mental identifica um procedimento análogo à gramática e

45 Psicolinguística é uma disciplina dos estudos da linguagem, inaugurada em meados do século XX, que se ocupa dos processos psicológicos envolvidos no uso da linguagem em todas as suas formas, que são a sua produção, compreensão, julgamento e aquisição (cf. FOSS; HAKES, 1978).

46 [Una superestructura es un tipo de esquema abstracto que establece el orden global de un texto y que se compone de una serie de categorías, cuyas posibilidades de combinación se basan en reglas convencionales. Esta característica produce un paralelismo con la sintaxis, con la que describimos una oración (no en balde hablábamos de una “forma textual”).]

47 É possível se traçar um paralelo entre as superestruturas (cf. VAN DIJK, 1978 [1978]) e a proposta dos movimentos retóricos, com que Swales (1981) tenta dar conta da ordem global do texto, ainda que esse último não o faça a partir de um ponto de vista cognitivo.

à lógica. A sua descrição (ibid.) reivindica a “formulação de (i) um conjunto de categorias para as diferentes superestruturas e de (ii) um conjunto de regras por meio das quais essas categorias podem se combinar entre si”48 (p. 144). Sendo assim, conforme fica evidente nessa observação, a proposta precursora de Van Dijk (ibid.) atribui, à noção de superestrutura, um caráter essencialmente abstrato, cujas formação e uso se desprendem das condições reais do discurso para refletir padrões linguísticos adquiridos pelo falante. A alusão, principalmente, à noção de sintaxe, nas suas considerações, demonstra uma visão bastante restrita a respeito do processamento do texto, que coloca, em segundo plano – de um modo categórico, pelo menos no início –, dados referentes à dimensão social do uso da linguagem.

Apesar dessa limitação, um aspecto relevante do modelo das superestruturas (cf. VAN DIJK, 1978 [1978]) é a noção de esquema, que aparece nas suas explicações sobre a estrutura global do texto. A noção de esquema está associada, desde um trabalho de Bartellet (1932), a paradigmas psicologizantes do comportamento linguístico e está presente nos postulados que compõem a chamada “gramática cognitiva” [cognitive grammar], introduzida por Langacker (originalmente, 1978, 1991). De base emergentista49, essa teoria assume, dentre outras coisas, que “a gramática do falante reside em um inventário extenso de unidades simbólicas que são abstraídas a partir de expressões recorrentes e que, uma vez estabelecidas, guiam a formação de construções novas nos seus mesmos moldes”50 (LANGACKER, 2008, p. 24). O resultado dessa abstração é, justamente, o esquema, que pode ser descrito, então, como a representação mental das unidades simbólicas referentes aos padrões estruturais verificados nos incontáveis enunciados que são produzidos e interpretados, o tempo todo, pelo falante. Esquemas estariam por trás do funcionamento da linguagem em todos os seus níveis, desde a sua fonologia até às suas sintaxe e semântica. E as explicações da gramática cognitiva sobre a natureza do gênero também os evocam. De acordo com Langacker (ibid.),

48 [Esto requiere que formulemos (i) una serie de categorías para las diferentes superestructuras y (ii) una serie de reglas mediante las que pueden combinarse las categorías entre si.]

49 Emergentismo é uma postura filosófica que, em se tratando da linguagem, defende que a estrutura formal (ou ainda, a gramática) da língua emerge do discurso e é moldada por ele em um processo contínuo (cf. HOPPER, 1998 [1987]). Opõe-se a abordagens inatistas da linguagem – como, por exemplo, o gerativismo (cf. CHOMSKY, 1957) –, negando o postulado de que a gramática seria determinada por princípios universais já inscritos no componente genético humano.

50 [A speaker’s knowledge of grammatical patterns resides in a vast inventory of symbolic assemblies. (…) These are abstracted from occurring expressions, and once established as units they can serve as templates guiding the formation of new expressions on the same pattern.]

o nosso conhecimento a respeito de um determinado gênero consiste em um conjunto de esquemas abstraídos a partir de exemplos concretos. Cada esquema representa um aspecto comum e recorrente, relativo a algum componente da sua estrutura: a sua organização global, propriedades estruturais situadas, conteúdos típicos, expressões mais usadas, questões de estilo e registro, etc.51 (p. 478)

Em ambas as teorizações de Van Dijk (1978 [1978]) e de Langacker (2008), a descon- textualização do discurso é um fator determinante para a formação de um esquema. Isso o é, porque o processo de abstração responsável pela sua formação implica o reforço constante de aspectos comuns que se repetem nos diversos eventos de uso da linguagem. Com isso, “são excluídos das unidades [simbólicas], visto que não são reforçados, os detalhes que distinguem um evento do outro. Em alguma medida, portanto, a emergência de uma unidade é resultado do apagamento dos contextos originais que a cercam”52 (LANGACKER, ibid., p. 241). Com efeito, embora o contexto esteja na base da formação dos esquemas – afinal de contas, é ele que determina o que deve ou não deve ser reforçado –, é somente com a sua exclusão que um esquema atinge tal grau de generalização que permite que ele se aplique a novos contextos. E esse princípio está por trás de quaisquer esquemas – inclusive, os relativos aos gêneros.

Para superar as limitações da sua concepção original de superestrutura – referentes ao seu alheamento a questões contextuais –, Van Dijk, ao lado de Kintsch (1983) passa a admitir, alguns anos mais tarde, estratégias mais abrangentes na sua proposta para a formação e o uso dos esquemas textuais. É relevante se comentar, em tempo, que a noção de estratégia tem sido fundamental para o modelo das superestruturas – desde a sua primeira proposição, na década de 1970 – na medida em que é ela que dá conta das regras por trás do funcionamento das estruturas esquemáticas do texto. Por estratégia, esses autores (ibid.) entendem “as operações específicas (ou passos mentais) que são executados para se alcançar um determinado objetivo; um exemplo disso é o raciocínio”53 (p. 68). Em um primeiro momento (cf. VAN DIJK, 1978 [1978]), a teoria das superestruturas encerra somente estratégias voltadas ao processamento formal e descontextualizado do texto. Porém, na ocasião seguinte (cf. VAN DIJK; KINTSCH, ibid.), ela já constitui um modelo de processamento do discurso, visto que estende a aplicação 51 [Our knowledge of a given genre consists in a set of schemas abstracted from encountered instances. Each

schema represents a recurring commonality in regard to some facet of their structure: their global organization, more local structural properties, typical content, specific expressions employed, matters of style and register, etc.]

52 [Excluded from the units, through lack of reinforcement, are the myriad details that differ from one event to the next. To some extent, therefore, the emergence of a unit results in its detachment from the original supporting contexts.]

53 [Thinking is a well known example: We have an explicit goal to be reached, (…) and there may be specific operations, mental steps, to be performed to reach that goal.]

dessas estratégias aos elementos externos que cercam o uso da linguagem. Em última análise, esse acréscimo acarreta dois esquemas (offline), um do texto e outro do contexto, que seriam acionados no uso (online), em ambos os níveis de produção e de compreensão.

Na verdade, as reformulações feitas nesse modelo (cf. VAN DIJK; KINTSCH, 1983) não abrem mão da ideia de um componente mental relativo exclusivamente à estrutura global do texto. Segundo Van Dijk e Kintsch (ibid.), a superestrutura continua sendo “um esquema de formas textuais convencionalizadas”54 (p. 54). Porém, a formação e o uso desses esquemas não envolvem somente estratégias linguísticas e gramaticais, tal como Van Dijk (1978 [1978]) havia sugerido antes. Eles envolvem, também, operações que aqueles autores (ibid.) chamam de “estratégias discursivas” [discourse strategies] (VAN DIJK; KINTSCH, ibid., p. 78-94). As primeiras correspondem, nesse caso, às “estratégias aplicadas pelos falantes nas produção e compreensão de enunciados verbais ou orais da língua natural”55 (ibid., p. 70). Elas seriam responsáveis por tarefas como, por exemplo, a identificação de sons, letras, palavras; a análise de construções sintáticas; a interpretação de sentenças e textos etc. As estratégias discursivas, por sua vez, representam princípios que, de uma maneira análoga às estratégias linguísticas, operam sobre os dados externos ao texto (cf. ibid.). Esses dados compreendem, dentre outras coisas, a estrutura social da instituição em que esse texto existe, os papéis dos participantes, os registros e estilos pertinentes a cada circunstância, as normas e convenções sociais, e os valores e ideologias compartilhadas pelos seus membros.

Uma explicação fundamental para essa mudança de postura está resumida na reflexão de Van Dijk e Kintsch (1983) de que “os falantes de uma língua sempre processam estruturas superficiais, palavras, construções, significados, informações pragmáticas do contexto ao lado de dados interacionais, sociais e culturais”56 (p. 79). Conforme fica sugerido nessa afirmação, o papel da descontextualização na formação dos esquemas acaba perdendo força. Na verdade, embora se espere que sejam realmente gerais – de modo a poderem servir a vários cenários discursivos diferentes –, os esquemas passam a designar, de agora em diante, formas textuais (convencionalizadas) marcadas, em alguma medida, por fatores socioculturais. No final das contas, essa expressão mais discursiva do modelo de superestrutura termina por desembocar em uma noção bastante imbricada de gênero, que sobrepõe aspectos linguísticos e contextuais para poder dar conta da sua natureza e do seu funcionamento.

54 [Superstructures are schemata for conventional text forms.]

55 [(Language) strategies are applied by language users in the production and comprehension of verbal utterances or speech acts of a natural language.]

56 [Language users always manipulate surface structures, word, phrase, and clause meanings, pragmatic information from the context, as well as interactional, social, and cultural data.]

Uma maneira de se lidar com a complexidade que caracteriza essa nova concepção de gênero como esquema (cf., por exemplo, PALTRIDGE, 1995, 1997) seria o modelo de frame57 semântico, proposto por Fillmore (1982). No que diz respeito à organização, dentro da mente, do conhecimento sobre textos, o frame parece operar de modo semelhante às superstruturas (cf. VAN DIJK; KINTSCH, 1983). Contudo, diferentemente dessas últimas, o frame constitui antes um esquema conceitual do que um esquema baseado em regras. Segundo a definição de Fillmore (ibid.), um frame consiste em “um sistema [relativamente estável, deve se comentar] de conceitos relacionados de tal modo que, para entendermos qualquer um deles, é necessário termos conhecimento de toda a estrutura em que ele está inserido”58 (p. 111). Sendo assim, quando um conceito qualquer – a palavra “estrofe”, por exemplo – é usado em um texto ou um conversa, todos os outros conceitos que fazem parte do seu frame (nesse caso, um frame de poema ou de música) são acionados. Para se entender o significado de estrofe, portanto, é necessário se saber o que são um poema ou uma música.

Uma contribuição da proposta dos frames (cf. FILLMORE, 1982) para o entendimento dos gêneros é o seu postulado de que todo o conhecimento – e não apenas formas textuais – que se possui sobre eventos discursivos convencionalizados se organiza (na mente) em termos de esquemas. Fillmore (ibid.) observa que, “quando processamos uma sequência linguística, lançamos mão da nossa habilidade de esquematizar tanto as etapas ou componentes do mundo que esse texto caracteriza quanto a situação em que ele é produzido”59 (p. 379). Pode se dizer, com outras palavras, que o uso (a propósito, recorrente) de certas formas textuais permite que se criem esquemas relativos, inclusive, às circunstâncias em que essas formas são recrutadas. Essa afirmação representa um avanço importante em relação à teoria de Van Dijk e Kintsch (1983). Além das propriedades referentes à ordem formal do texto, conforme está previsto na ideia de superestruturas, o esquema do gênero, a partir do modelo de frames, incorpora, ainda, aspectos da estrutura social do evento discursivo como um todo.

Ao ser entendido como frame, portanto, o gênero constitui a representação, na mente, de um tipo de evento discursivo – incluindo os respectivos textos – que é recuperada em cada vez que algum contexto exige. Na verdade, os frames associados a eventos discursivos – que 57 O termo “frame”, original em língua inglesa, poderia ser traduzido, em português, por “enquadre” ou

“moldura” (cf. WEISZFLOG, 2007). Porém, não se encontra, na literatura sobre esse assunto, no Brasil, uma tradução consensual para ele. Este trabalho não se ocupa em propôr qualquer solução nesse sentido.

58 [By the term “frame” I have in mind any system of concepts related in such a way that to understand any one of them you have to understand the whole structure in which it fits.]

59 [When we understand a piece of language, we bring to the task both our ability to schematize the phases or components of the world that the text characterizes, and our ability to schematize the situation in which this piece of language is being produced.]

Fillmore (1982) denomina “frames interacionais” [interactional frames] (p. 119), pois têm a ver com o que acontece entre o falante e o ouvinte (ou o autor e o leitor) – são fundamentais para que possa se processar qualquer texto. A explicação para isso é que um princípio crucial dos frames (de que entender um termo implica conhecer a estrutura conceitual de que ele faz parte) também se aplicaria ao gênero. Segundo Fillmore (ibid.),

saber que um determinado texto é um obituário, um pedido de casamento, um contrato de trabalho ou uma lenda popular evoca conhecimentos sobre como interpretar certas passagens, como esperar que o texto se desenvolva e como saber quando ele terminou. […] Isso é possível, na medida em que se tem em mente uma estrutura abstrata de expectativas que traz consigo papéis, propó- sitos, sequências naturais ou convencionalizadas de eventos, e todos os outros elementos que se quer associar à noção de frame.60 (p. 117, grifos meus)

A interpretação – ou a produção – coerente de um texto, portanto, não seria resultado apenas da coincidência entre as expectativas provenientes do seu esquema textual e o material real desse texto. Ela exige uma adequação (mínima) da cena comunicativa na sua totalidade (cf. FILLMORE, 1982), que inclui, nesse caso, o seu produto, os participantes, as respectivas atividades, os propósitos etc. Ou seja, o gênero como frame, por encerrar muito mais do que formas textuais (convencionalizadas), habilita o falante a operar não apenas com o texto, mas com o evento discursivo na sua totalidade. Em síntese, pode se afirmar que

tanto na produção quanto na recepção do discurso, ou na interação, as pessoas possuem pressupostos tácitos quanto aos aspectos linguísticos, cognitivos e comunicativos do seu gênero; e elas se baseiam nesses pressupostos para poderem participar do discurso de uma maneira mais apropriada, efetiva e satisfatória.61 (STEEN, 2011a, p. 22, grifos meus)

A título de ilustração, analise-se uma situação em que vemos uma pessoa distribuindo folhetos de papel em uma esquina de alguma cidade brasileira em época de eleições. Não é necessário lermos o texto contido nos papéis para supormos que não se trata do convite do seu

60 [Knowing that a text is, say, an obituary, a proposal of marriage, a business contract, or a folktale, providesknowledge about how to interpret particular passages in it, how to expect the text to develop, and how toknow when it is finished. (…) This is accomplished by having in mind an abstract structure of expectationswhich brings with it roles, purposes, natural or conventionalized sequences of event types, and all the rest ofthe apparatus that we wish to associate with the notion of frame.]

61 [Whether in discourse production, reception, or interaction, people have tacit assumptions about a whole range of linguistic, cognitive, and communicative genre properties, and they rely on these assumptions to make their participation in discourse more appropriate, effective, and comfortable.]

casamento ou de páginas do seu diário pessoal. Na verdade, não é necessário sequer estarmos nessa situação. A simples descrição dela já nos leva a fazer inferências a respeito do gênero em questão: o mais provável é que ela esteja distribuindo panfletos (ou santinhos políticos) de alguma candidata ou candidato. Pode se argumentar, com isso, que um dos papéis do frame, referente a qualquer evento discursivo, é fazer com que, quando nos deparamos com algumas poucas ou muitas propriedades do seu gênero – quer sejam textuais, quer sejam contextuais –, evoquemos todos os outros aspectos pertinentes ao seu esquema. Em algumas vezes, são os elementos contextuais que indicam o texto, como é o caso da situação narrada acima. Em outras, pelo contrário, são as propriedades textuais que sinalizam a situação. Seria o caso, por exemplo, de uma pessoa que encontrasse uma bula de medicamento na mesa de cabeceira da sua esposa ou do seu marido: não é absurdo suspeitar que alguém está doente.

Uma última observação que precisa ser feita, com respeito aos frames – e que faz uma grande diferença para a concepção de gênero adotada nesta investigação –, é a de que eles são categorizáveis. Fillmore (1982) afirma, nesse caso, que a organização dos frames (na mente) estaria orientada por um procedimento de categorização baseado em protótipos. Atribuída, originalmente, à Rosch (1973, 1975), a teoria dos protótipos surge, no âmbito dos estudos da psicologia humana, em resposta à visão clássica de categorização, inaugurada por Aristóteles (1994 [c. 347 a.C.]) e supostamente presente no pensamento ocidental até hoje. Para a visão clássica, categorias consistem, grosso modo, em “entidades lógicas, claramente delimitadas e definidas por um conjunto elementar de traços [necessários e suficientes] compartilhados por todos os seus membros em igual e total medida”62 (ROSCH, 1975, p. 193). Já se comentou aqui, aliás, que esse princípio orientou, por muitos séculos, os estudos dos gêneros (sobretudo, os literários), que garimpavam, nos textos, os traços essenciais que pudessem servir, de modo concludente, à sua classificação (cf. páginas 25-26 deste trabalho).

A principal objeção de Rosch (cf., principalmente, 1975) à visão clássica incide sobre a ideia – relativa à premissa de que as categorias seriam entidades bem delimitadas – de que, para pertencerem a uma determinada categoria, todos os seus membros teriam que possuir todos os atributos essenciais a ela. Se fosse assim, todos os poemas – que se identificassem como tais –, por exemplo, deveriam apresentar, invariavelmente, as mesmas características; em caso contrário, teriam que formar categorias diferentes. Porém, não é isso o que acontece: a nossa categoria de poema parece ser muito flexível – inclusive, no que diz respeito à forma 62 [Categories are logical, clearly bounded entities, whose membership is defined by an item's possession of a

simple set of criterial features, in which all instances possessing the criterial attributes have a full and equal