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5.2 METAFORICIDADE EM SONETOS

5.2.4 Metaforicidade em função dos participantes

Porque os propósitos e as práticas relativas ao discurso literário tendem a ser bastante abrangentes, pressupõe-se, a uma primeira vista, que os papéis dos participantes envolvidos na sua realização sejam igualmente ilimitados. Na verdade, quaisquer falantes de uma língua podem se lançar à produção e à leitura (ou escuta) de poemas. Por esse motivo, o elenco de indivíduos que participam desse gênero pode ser muito diverso. Cândido (2006) observa, por exemplo, que os tantos interlocutores que habitam o universo literário, nos tempos modernos, não chegam a formar um grupo definido, senão um conjunto vago de produtores e receptores, sem uma estrutura específica. Na opinião desse autor (ibid.),

existem, numa sociedade contemporânea, várias dessas coleções informes de pessoas, espalhadas por toda parte, formando vários públicos das artes. Elas aumentam e se fragmentam à medida que cresce a complexidade da estrutura social, tendo como denominador comum o interesse estético. (p. 45)

Apesar disso, pode se argumentar que, embora os produtores e receptores do discurso literário não cheguem a constituir um grupo definido (cf. CÂNDIDO, 2006), se forem levadas em consideração as circunstâncias mais canônicas em que poemas são evocados, é possível se imaginar um quadro mais ou menos constante de participantes tipicamente empenhados com esse gênero. Poemas e os seus subgêneros são idealmente associados a comunidades de letras – precisamente, autores consagrados (pelas respectivas comunidades discursivas), professores, 198 Deve se reiterar, aqui, que os membros de uma dada comunidade discursiva possuem certa liberdade para

explorar os recursos genéricos dos tipos de discurso que empreendem, mas que essa liberdade é realizada dentro das fronteiras do seu gênero (cf. BHATIA, 2004). O que determina o grau de pertencimento de um evento discursivo qualquer a um determinado gênero, então, é o quão ele se adéqua às suas convenções.

estudantes e críticos de literatura199. Já se mencionou aqui, a propósito, que os escritores que emprestam os seus textos para a análise conduzida neste trabalho – ou seja, Andrade (1978, 2013), Bandeira (1966a, 1966b), Mattoso (2003a, 2003b) e Moraes (1937, 1954) – são poetas bastante celebrados dentro do acervo literário brasileiro.

Seja como for, algo que poderia servir para caracterizar os frequentadores habituais do discurso literário é o fato de, em certa medida, compartilharem de algum interesse e de algum conhecimento específicos para o tratamento do texto literário. Tais interesse e conhecimento – que estariam representados pela noção de “socialização literária” [literary socialization] (cf. STEEN, 1994, p. 57) – teriam efeitos significativos sobre a forma como produzimos, lemos e ouvimos literatura. Em uma discussão a esse respeito, Biebuyck e Martens (2011) refletem, mais especificamente, sobre uma possível atuação dessa socialização no processamento de metáforas – e outros tantos recursos – na literatura. Para esses autores (ibid.), “a socialização literária permite ao leitor não somente apreciar o potencial hermenêutico do discurso literário em si, mas, também, dedicar uma atenção especial para enunciados inusitados ou não conven- cionais”200 (p. 332-333). Pode se concluir, a partir dessa observação, que experiências prévias do falante com práticas pertinentes ao discurso literário impulsionariam o desenvolvimento de uma competência particular, capaz de otimizar a sua sensibilidade para (ambas a produção e a interpretação de) algum tipo de linguagem figurada201.

No entanto, um argumento que este trabalho defende, nessa linha de reflexão, é o de que o grau de socialização literária (cf. STEEN, 1994) dos participantes mais prototípicos do discurso literário seria responsável por uma habilidade particular não tanto para a produção e interpretação da linguagem metafórica em si, mas, de fato, para a exploração (especializada) da sua metaforicidade. Afinal de contas, pelo postulado de Lakoff e Johnson (2002 [1980]), de que as metáforas fazem parte da nossa vida cotidiana e de que a maioria delas é inevitável e inconsciente, sabe-se que quaisquer falantes, independentemente das suas experiências com o mundo da literatura, têm plena competência de produzir e interpretar esse tipo de linguagem. Em vista disso, o que se supõe, então, é que uma sensibilidade maior para o reconhecimento da linguagem metafórica como tal implicaria, nesse caso, uma competência específica para a

199 Para se ter uma ideia da associação eminente entre o discurso literário e comunidades de letras, reproduz-se o trecho final da sinopse do manual História concisa da literatura brasileira (BOSI, 2006), que diz que ele “é obra que se recomenda, sobretudo, à atenção de professores e estudantes de Literatura Brasileira, quer em nível de graduação, quer de pós-graduação” (contracapa).

200 [Literary socialization enables readers not only to valorise the hermeneutic potential of literary discourse as it is, but also to devote specific attention to unconventional or innovative speech acts.].

201 Steen (1994) sugere, a propósito, que a experiência profissional com o discurso literário teria um efeito positivo no grau de socialização literária e, portanto, na sua sensibilidade para a linguagem metafórica.

assimilação e a manipulação de recursos de ativação das metáforas nos gêneros em que elas devessem constituir um aspecto saliente – tais como os gêneros literários. Isso ajuda explicar, dentre outras coisas, por que a não convencionalidade, a diretividade e a saturação (sobretudo intratextual), recorrentes na linguagem metafórica identificada nos sonetos desse corpus (cf. Quadros 2, 3 e 4), não deveriam ser tratadas como sendo algo acidental. À mesma medida que a socialização literária permite que as metáforas participem do processo de formação do nosso frame de soneto, ela estimula, nas circunstâncias de uso desse mesmo frame, o emprego de recursos para a sua ativação nos respectivos discursos.

Outra condição relativa aos participantes – mais prototípicos, pelo menos – do gênero soneto que poderia, em alguma medida, evidenciar uma relação determinante entre esse tipo de discurso e a metaforicidade é a deliberalidade com que algumas expressões metafóricas seriam supostamente inscritas nos respectivos textos. É importante se esclarecer, em tempo, que a noção mesma de deliberalidade, no que se refere à ocorrência (e ao uso) de metáforas, tem sido alvo de certa controvérsia dentro do campo de estudos da abordagem conceptual (cf., principalmente, DEIGNAN, 2011, GIBBS, 2011a, 2011b, MÜLLER, 2011 e STEEN, 2011b, 2011c). Enquanto Gibbs (2011a), por exemplo, reivindica um caráter mais subjetivista desse conceito – que seria indissociável de um processamento consciente da linguagem202 –, Steen (2011b) oferece uma definição mais geral para ele – mas que, ainda assim, continua ancorada nas atitudes dos participantes no interior do discurso. Para Steen (ibid.),

metáforas deliberadas são construídas de tal maneira que o emissor convida ou, em algumas vezes, instrui o receptor, de fato, a elaborar um mapeamento entre domínios, na sua representação mental do discurso, para entender uma coisa em termos de outra coisa.203 (p. 82, grifos meus)

Embora a localização de um processamento consciente de metáforas (deliberadas), de fato, demande uma abordagem empírica do comportamento linguístico do falante (cf. GIBBS, 2011a), somente o fato de isso ser possível – isto é, de o emissor realmente poder produzir metáforas deliberadamente – já lança alguma luz no que se refere ao grau de metaforicidade aferido no conjunto de sonetos analisados aqui. Na verdade, não seria equivocado se presumir 202 A questão da deliberalidade, aqui, pode ser problematizada em função do significado do próprio termo, que

denota algum grau de arbítrio para se fazer algo (e que extrapola a ideia de somente se ter consciência sobre o que se faz). Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (HOUAISS et al., 2009), por exemplo, uma das acepções do verbo “deliberar” o define como “decidir-se, após reflexões e/ou consulta”.

203 [Deliberate metaphors are constructed in such a way that the sender invites or sometimes even instructs the addressee to in fact set up a cross-domain mapping in their mental representation of the discourse in order to view one thing in terms of something else.]

que grande parte das escolhas linguísticas – se não, todas elas – feitas nesse tipo de discurso sejam, em alguma medida, conscientes – ainda que não sejam necessariamente premeditadas. Isso importa, na medida em que permite se acreditar que o emprego de metáforas possa ser igualmente deliberado. Sendo assim, a ocorrência de certos recursos para a ativação de parte da linguagem metafórica identificada nesse corpus parece dar alguma evidência do suposto convite ou instrução a que Steen (2011b) se refere. Pode se afirmar, em última análise, que a não convencionalidade, a diretividade, a saturação e a posição de algumas das suas metáforas (cf. Quadros 2, 3, 4 e 5) revelariam um esforço provável dos seus produtores para atender às expectativas do seu frame de soneto relativas à ocorrência desse fenômeno. Além do mais, em uma eventual oralização desses textos, a possibilidade da deliberalidade ajudaria a esclarecer alguma impostação vocal204 que viesse marcar as suas metáforas.