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5.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

5.1.2 Aferição da metaforicidade

No que diz respeito à aferição da metaforicidade da linguagem metafórica presente nos corpora analisados aqui, é feito, antes de mais nada, o levantamento da ocorrência de palavras usadas metaforicamente nos respectivos textos. A fim de se proceder de forma sistemática ao longo de toda a análise, este trabalho lança mão de um paradigma único de identificação, que é o “procedimento de identificação de metáforas VU” [metaphor identification procedure VU] no discurso (cf. STEEN et al., 2010, p. 25). Em uma tentativa de mitigar as inconstâncias e divergências na identificação de expressões metafóricas – decorrentes da subjetividade que 170 Segundo Werlich (1976), são cinco os principais tipos textuais: o narrativo, o descritivo, o expositivo, o

argumentativo e o injuntivo (ou imperativo), que, a propósito, podem ser comparados, respectivamente, com as sequências textuais elencadas por Adam (2011 [1993]): a narrativa, a descritiva, a explicativa, a

argumentativa e a dialógica. Esses tipos ou sequências se definem pela natureza linguística (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) da sua composição.

171 Jakobson (2008 [1960]), por exemplo, aponta seis funções básicas para a linguagem: emotiva ou expressiva, referencial ou denotativa, apelativa ou conativa, fática ou de contato, poética e a metalinguística. Elas se definem em função do foco da comunicação, que pode incidir sobre o remetente, o contexto, o destinatário, o canal, a mensagem ou o código, respectivamente. Halliday (1976 [1970]), por sua vez, abrevia em três as funções da linguagem: ideacional, quando se volta à representação das experiências do falante; interpessoal, quando se volta à expressão de relações sociais; e textual, quando estabelece vínculos com ela mesma.

pode permear a percepção particular do analista (ou dos analistas) –, esse procedimento fixa, em linhas gerais, as seguintes diretrizes (ibid., p. 25-26, tradução minha):

(i) encontre palavras usadas metaforicamente no discurso, analisando o texto palavra por palavra;

(ii) quando uma palavra é usada indiretamente, e o seu uso pode ser explicado por um mapeamento entre domínios a partir de um sentido mais básico172 seu, marque essa palavra como metáfora;

(iii) quando uma palavra é usada diretamente, e o seu uso pode ser explicado por um mapeamento entre domínios relacionado ao referente ou ao tópico mais básicos do texto, marque a palavra como metáfora direta;

(iv) quando uma palavra é usada com função de substituição léxico-gramatical (como, por exemplo, pronomes pessoais de terceira pessoa), ou quando ocorre uma elipse em algum tipo de coordenação, e quando essa substituição ou elipse retomam um sentido direto ou indireto que pode ser explicado por um

mapeamento entre domínios a partir de um sentido, referente ou tópico mais básico, marque a substituição ou elipse como metáfora implícita;

(v) quando uma palavra é usada para indicar um mapeamento entre domínios, marque essa palavra como sinalizador de metáfora; e

(vi) quando uma palavra composta é inédita, examine as suas partes de forma independente, de acordo com as etapas em (i) a (v).

É importante se comentar, sobre esse procedimento de identificação (cf. STEEN et al., 2010), que ele se ocupa somente das metáforas na sua dimensão linguística e não se presta, em momento algum, à determinação das metáforas conceptuais que estariam licenciando tais expressões173. Além do mais, ele não serve para se explicar de que maneira os falantes de uma

172 Por sentido básico, entende-se, aqui, o sentido mais concreto, mais corpóreo, mais preciso ou mais antigo de um item lexical (cf. PRAGGLEJAZ, 2009 [2007]). Uma discussão mais aprofundada sobre essa questão é desenvolvida por Vereza (2007b). Pode se conhecer o sentido básico de um item lexical qualquer através de uma consulta simples em um dicionário geral da língua. No caso deste trabalho, são consultados, quando é necessário, o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (FERREIRA, 2004) e o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (HOUAISS et al., 2009).

173 Um método sistemático para se determinar o(s) mapeamento(s) por trás uma expressão metafórica qualquer está proposto por Steen (2011b). Este trabalho, no entanto, não se ocupa rigorosamente dessa tarefa.

língua qualquer julgam se uma palavra está sendo usada metaforicamente. Na verdade, esse procedimento (ibid.) se coloca como sendo uma ferramenta simples e objetiva de “análise de grandes volumes de discurso em um corpus, com vistas a se compararem as propriedades e o comportamento da linguagem metafórica entre gêneros ou entre falantes ou entre situações de uso”174 (p. 20). A título de ilustração desse procedimento, acompanhe-se a análise da sentença em (31), abaixo, copiada de uma bula de medicamento (TYLENOL®, 2014).

(31) Tylenol® […] diminui a sensibilidade para a dor.

A sentença em (31) descreve um dos efeitos esperados, no nosso corpo, da substância química paracetamol, comercializada na forma do medicamento Tylenol® (2014). A análise dessa sentença, nos moldes do procedimento de identificação apresentado acima (cf. STEEN et al., 2010), leva à conclusão de que “diminui” e “para” poderiam ser marcadas como sendo usadas metaforicamente. O uso de “diminuir”, em (31), se refere à atenuação da sensibilidade à dor; porém, o sentido mais básico desse verbo é o de fazer ficarem menores as dimensões de algum objeto (cf. HOUAISS et al., 2009). O sentido de “diminui”, nesse exemplo, poderia ser explicado, então, em termos do mapeamento entre os domínios TAMANHO (de um objeto) e

INTENSIDADE (da sensibilidade à dor). Já o uso de “para”, aqui, denota um tipo de relação entre a predisposição do nosso corpo para ser afetado por algum agente e esse agente – isto é, a relação entre a sensibilidade e a dor. O sentido mais básico de “para”, porém, é o de indicar a direção de um deslocamento (cf. HOUAISS et al., 2009). O sentido que “para” expressa em (31) poderia ser explicado, por sua vez, pelo entendimento daquela predisposição como sendo uma trajetória que se orienta na direção do agente (ou seja, da dor). Os demais itens ao longo dessa sentença – “Tylenol®”, “a”, “sensibilidade”, “dor” –, cujos usos não implicam qualquer mapeamento entre domínios, podem ser explicados pelos seus sentidos básicos.

Seguinte à identificação da linguagem metafórica nos corpora, procede-se à análise da sua metaforicidade. Segundo Müller (2008), uma forma de se resolver essa questão seria pelo levantamento de elementos textuais e cotextuais – tais como certas estratégias verbais, gestos, imagens etc. – que se prestassem, nesses contextos, à ativação das suas metáforas. A partir de uma equação direta, fica estabelecido, portanto, que, “quanto mais material for utilizado para

174 [(…) to analyze large chunks of discourse in a corpus in order to compare the properties and behaviour of groups of words related to metaphor across genres or speakers or situations of usage].

expressar a sua metaforicidade, mais saliente uma metáfora será para o ouvinte ou o leitor”175 (ibid., p. 202, grifo no original). Até onde se percebe, os parâmetros para esse tipo de análise estão fixados, em grande medida, em julgamentos estimativo-dedutivos sobre tais elementos. Apesar disso, é possível se prescrever um elenco de estratégias formalmente observáveis, que seriam capazes de interferir, de algum modo sistemático, na possibilidade de reconhecimento da linguagem metafórica presente em um dado texto. De fato, as eventuais listas de recursos de ativação da metaforicidade que são encontrados nos (poucos) estudos voltados, especifica- mente, para essa questão parecem ser pouco sistemáticas e/ou pouco consistentes entre si (cf., principalmente, STEEN, 2004; MÜLLER, 2008; KRENNMAYR, 2011). Sendo assim, com base nesses estudos, este trabalho arrisca a proposta de um instrumento relativamente mais homogêneo e abrangente, que atenderia com maior eficiência as necessidades analíticas desta investigação. As estratégias que compõem esse instrumento são

(i) não convencionalidade (cf. HANDL, 2011): expressões metafóricas não gramaticalizadas/lexicalizadas ou não institucionalizadas176 teriam maiores chances de serem reconhecidas como tais;

(ii) repetição (cf. STIBBE, 1995): a repetição de uma expressão metafórica dentro do mesmo enunciado aumentaria as chances de ela ser reconhecida como tal; (iii) saturação (cf. DUNN, 2011): a ocorrência, dentro do mesmo enunciado, de

expressões metafóricas licenciadas pelo mesmo mapeamento aumentaria as chances de elas serem reconhecidas como tais;

(iv) explicitação (cf. CRISP et al., 2002): a ocorrência, no mesmo enunciado, de palavras imediatamente relacionadas ao domínio-fonte de uma expressão metafórica aumentaria as chances de ela ser reconhecida como tal;

(v) posição (cf. STEEN, 2002, 2004): expressões metafóricas que ocorrem no final do enunciado ou do parágrafo teriam maiores chances de serem reconhecidas como tais – em comparação a expressões metafóricas que ocorressem no início ou no meio do enunciado ou do parágrafo;

175 Cf. nota de rodapé 139 deste trabalho.

176 Segundo Schmid (2005), lexicalização e institucionalização constituem os dois processos responsáveis pela convencionalização de uma dada expressão linguística. A primeira se refere à fixação dessa expressão em termos dos aspectos estruturais da sua forma; a segunda, em termos dos seus aspectos sociopragmáticos. Pode se avaliar a convencionalidade de uma expressão por meio de uma consulta em dicionários ou corpora gerais da língua. Para a análise feita aqui, são consultados o Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (FERREIRA, 2004) e o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (HOUAISS et al., 2009).

(vi) acompanhamento adverbial (cf. STIBBE, 1995): expressões metafóricas acompanhadas de advérbios – tais como “realmente” e “literalmente”177 teriam maiores chances de serem reconhecidas como tais;

(vii) diretividade (cf. STEEN et al., 2010): expressões metafóricas construídas diretamente – através, por exemplo, de “como, “que nem”, “parece” – teriam maiores chances de serem reconhecidas como tais;

(viii) mídias visuais (cf. MÜLLER, 2008): a ocorrência, no mesmo contexto, de imagens e gestos imediatamente relacionados ao domínio-fonte de uma expressão metafórica aumentaria as chances de ela ser reconhecida como tal; e (ix) marcação prosódica (cf. CLOISEAU, 2007): padrões específicos de

intensidade e frequência fundamental178 de uma expressão metafórica –

necessariamente, em um segmento de fala – aumentariam as chances de ela ser reconhecida como tal.

Deve se admitir que esse elenco não esgota todas os elementos que podem vir a atuar como recursos de ativação da linguagem metafórica presente em um texto. Ainda que se tente antecipar quantas estratégias afetariam a possibilidade do seu reconhecimento, é somente pela abordagem da linguagem metafórica no discurso real – ou seja, pela sua análise em corpora – que podem se determinar, em termos tanto quantitativos quanto qualitativos, quais aspectos desse discurso estariam efetivamente operando como recursos de metaforicidade. De qualquer forma, a análise conduzida ao longo desta investigação assume, como sendo a sua referência principal, a lista de estratégias proposta acima.