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No conjunto de bulas de medicamento (cf. Anexo B) analisado aqui, as 2.011 unidades lexicais identificadas como sendo metafóricas representam aproximadamente 15,08% do total das 13.331 palavras desse corpus. Esse dado já insinua que a ocorrência de metáforas nesse tipo de discurso pode constituir um fenômeno bastante significativo – em relação, inclusive, à densidade metafórica do corpus de sonetos: 21,96%. Entretanto, não são muitos os trabalhos que se prestam a explorar a ocorrência e a importância desse fenômeno nesse gênero. O que se encontra, de fato, são investigações mais gerais, que apenas tangenciam aspectos relativos à ocorrência de alguma linguagem metafórica em bulas, mas que acabam atestando, ainda que 215 Neologismo se refere, grosso modo, a palavras novas em uma língua, derivadas de outras já existentes;

arcaísmos e regionalismos são expressões ou construções sintáticas próprias, respectivamente, de uma determinada época e de um determinado lugar ou região (cf. HOUAISS et al., 2009).

216 Anástrofe é uma figura de construção em que a estrutura canônica de um sintagma ou oração (em uma determinada língua) é alterada. Já fraseologia designa uma combinação de palavras ou uma locução cristalizadas, cujo sentido, em muitas vezes, é figurado (cf. HOUAISS et al., 2009).

de um modo superficial, o uso constante e um papel particular desse fenômeno na realização desse tipo de discurso (cf., por exemplo, NISBETH JENSEN, 2013; HILL MADSEN, 2014, que abordam a questão das metáforas, especificamente, no processo de tradução dos textos técnicos que acompanham as embalagens de medicamentos).

A constatação de que as metáforas poderiam desempenhar algum papel específico no discurso técnico-científico – como no caso, justamente, de bulas de medicamento – é recente (cf., por exemplo, HALLYN, 2000; TEMMERMAN, 2000; SIQUEIRA et al., 2009). Desde há muitos séculos até hoje, o que consensualmente se acredita é que esse seria um fenômeno pertinente aos territórios da poesia e da retórica e, muito pouco provavelmente, ao território das ciências (cf. ORTONY, 1993b [1979]). Esse consenso está reproduzido, por exemplo, nas respostas dos falantes interrogados (cf. Apêndice A) a respeito das suas expectativas quanto à ocorrência de metáfora em tipos particulares de discurso. Quarenta e quatro (88%) dos cin- quenta informantes dessa sondagem (cf. Apêndice B), declararam que não haveria a possibili- dade de encontrarem metáforas em textos técnicos. E quarenta e nove (94%) afirmaram que essa possibilidade não existiria especificamente no caso bulas de medicamento. É interessante se comentar que, dos dois informantes (4%) que indicaram que seria provável a ocorrência de metáforas em bulas de medicamento, um estava frequentando um curso de pós-graduação em Letras no momento em que o questionário lhe foi aplicado. Nessa circunstância, um possível contato desse informante com questões relativas à linguística cognitiva ou, especificamente, à abordagem conceptual da metáfora poderia sinalizar alguma razão para a sua resposta acabar divergindo da opinião da maioria dos sujeitos abordados.

5.3.1 Recursos de metaforicidade

Uma primeira observação que deve ser feita, antes de tudo, é a de que as expressões metafóricas identificadas no corpus de bulas de medicamento analisado aqui constituem usos altamente convencionalizados – tanto dentro do discurso técnico-científico quanto fora dele. Com efeito, conforme será possível se verificar, uma grande parte dessas expressões compõe construções já inscritas na gramática do português (do Brasil) (cf., por exemplo, FERREIRA, 2004; HOUAISS et al., 2009). Além disso, os usos identificados aqui não são acompanhados de outros recursos de ativação da sua metaforicidade, senão da sua repetição e da saturação – a propósito, bastante insistentes – dos mapeamentos que as sustentam. Considerem-se, a título

de ilustração, alguns excertos das bulas dos medicamentos Buscopan® (2013) e Aspirina® (2014), reproduzidos em (41) e (42), abaixo, respectivamente.

(41) Buscopan® promove alívio rápido e prolongado de dores, cólicas e desconforto abdominal. O seu início de ação no aparelho digestivo ocorre entre 20 e 80 minutos depois de ingerido.

(42) Você deve informar caso se engravidar durante tratamento prolongado com Aspirina®. Nos dois primeiros trimestres da gravidez, você só deverá usar Aspirina® por recomendação médica em casos de absoluta necessidade;

Nesses dois excertos, várias são as expressões licenciadas pelas metáforas conceptuais

PROCESSO É TRAJETÓRIA (“Buscopan® promove alívio”, “seu início de ação” e “usar […] por recomendação médica”) e TEMPO É ESPAÇO (“alívio […] prolongado”, “ocorre entre 20 e 80 minutos depois”, “tratamento prolongado” e “nos dois primeiros trimestres”). Chama-se uma atenção especial, ainda, para o fato de a saturação e a repetição que marcam as metáforas identificadas nesse corpus ocorrerem em ambos o plano intratextual – isto é, nas fronteiras de um único texto – e o plano intertextual – ou seja, ao longo do corpus como um todo. De fato, é isso que mostram os exemplos listados na Quadro 7, a seguir.

É interessante se comentar, neste momento da discussão, a disparidade nítida entre os corpora de bulas de medicamento e de resumos de artigos científicos e os corpora de sonetos e de capas de revista desta análise, no que se refere à quantidade e, principalmente, à qualidade dos recursos de metaforicidade que incorporam (cf. Quadro 6)217. Em comparação com os dois últimos, os recursos identificados no conjunto de bulas e resumos – que poderiam, de alguma maneira, interferir na possibilidade de reconhecimento da sua eventual linguagem metafórica como tal – são proporcionalmente escassos. Além disso, conforme será tratado mais adiante, a atuação desses elementos (isto é, da saturação e da repetição da sua linguagem metafórica) em bulas, bem como em resumos218, não parece ser tão categórica quanto nos outros dois corpora. Uma explicação para essa disparidade teria a ver, até onde pode se argumentar, com aspectos

217 Enquanto que os corpora de bulas de medicamento e resumos contam somente com a saturação e repetição das suas metáforas como recursos de metaforicidade, os de sonetos e de capas de revista dispõem, além desses, dos recursos de não convencionalidade, diretividade, posição, marcação prosódica e mídias visuais. 218 Adianta-se que, de acordo com o que este trabalho argumenta, a repetição e a saturação poderiam operar

como recursos positivos de ativação da linguagem metafórica, especialmente, se chegassem a constituir, por exemplo, algum nicho metafórico (cf. VEREZA, 2007a). Esse argumento será desenvolvido mais adiante.

relativos aos gêneros com que cada corpus se identifica.

Quadro 7. Exemplos de metáforas convencionais no corpus de bulas de medicamento Palavras usadas metaforicamente (com sublinha) Metáfora conceptual “dose recomendada para adultos e crianças acima de 6 anos”

(BUSCOPAN®, 2013)

“não excedendo a dose máxima diária, conforme a tabela” (DRAMIN®, 2013)

“reação alérgica grave acompanhada de queda da pressão” (NEOSALDINA®, 2013)

MAIS É PARA CIMA

“Aspirina® não deverá ser usada sem orientação médica” (ASPIRINA®, 2014)

“medicamentos que agem de forma contrária à dopamina” (ATROVEX®, 2013)

“Siga todas as instruções do seu médico cuidadosamente.” (VOLTAREN®, 2014)

PROCESSO É TRAJETÓRIA

“aumento dos níveis de substâncias encontradas no sangue” (HERPESIL®, 2014)

“podem ocasionar pequenas hemorragias na pele e mucosas” (NEOSALDINA®, 2013)

“Em caso de uso de grande quantidade deste medicamento” (TYLENOL®, 2014)

QUANTIDADE É TAMANHO

“medicamento deve ser mantido fora do alcance das crianças” (ASPIRINA®, 2014)

“na prevenção e no tratamento das labirintites e vertigens” (DRAMIN®, 2013)

“Em caso de dúvidas, procure orientação do farmacêutico” (HERPESIL®, 2014)

EVENTO É RECIPIENTE

“Atrovex® tem ação antiespasmódica sobre as contrações” (ATROVEX®, 2013)

“utilizado por mulheres grávidas sem orientação médica” (BUSCOPAN®, 2013)

“Não use medicamento com o prazo de validade vencido” (TYLENOL®, 2014)

ATRIBUTO É OBJETO

“não desaparecendo os sintomas, procure orientação médica” (ASPIRINA®, 2014)

“Dramin® é indicado para prevenir e tratar os sintomas de” (DRAMIN®, 2013)

“dor de cabeça, tontura (sinais de pressão sanguínea alta)” (VOLTAREN®, 2014)

CONHECER É VER

“Buscopan® de forma contínua ou por períodos prolongados” (BUSCOPAN®, 2013)

“vezes ao dia, em intervalos de aproximadamente oito horas” (HERPESIL®, 2014)

“O que devo saber antes de utilizar este medicamento?” (NEOSALDINA®, 2013)

5.3.2 Metaforicidade em função dos propósitos

Bulas de medicamento compõem um gênero muito representativo do discurso técnico e, de alguma forma, também do científico (cf. GONÇALVES et al, 2002). Isso se deve, dentre outras coisas, a uma função bastante prototípica sua. Segundo observa Bazerman (1988), com base em uma perspectiva espontânea, pautada no senso comum219, sobre o discurso científico em geral, um dos seus propósitos mais elementares seria o de representar simbolicamente – ou seja, por meio da linguagem e dos números – os fenômenos da natureza e as relações entre eles. Esse propósito está alicerçado na premissa de que, “ao representarmos a natureza através de símbolos, somos capazes de compreendê-la, antecipá-la e manipulá-la. Símbolos nos dão uma ideia de como as coisas são”220 (ibid.., p. 292). Sendo assim, é para podermos operar no e com o mundo à nossa volta que recorremos às ciências e às suas linguagens.

No que diz respeito a bulas de medicamento, especificamente, está disposto em termos legais – ou, na verdade, em uma resolução oficial (BRASIL, 2009b) –, por exemplo, que elas correspondem ao “documento legal sanitário que contém as informações técnico-científicas e orientadoras sobre o medicamentos para o seu uso racional221” (art. 4, § 2). Portanto, uma das razões por que bulas estariam alinhadas ao discurso técnico-científico – e por que esse gênero precisaria, de fato, ser evocado – é o fato de esses documentos servirem, acima de tudo, para informar e orientar pacientes e profissionais (da saúde) a respeito do respectivo medicamento, com vistas à sua compreensão e à sua administração adequadas.

Em virtude desse propósito elementar do discurso científico – e, no caso particular de bulas de medicamento, do técnico-científico –, um requisito que o senso comum geralmente impõe às ciências é o de que as suas formulações (isto é, leis, descrições, teorias etc.) sobre os fenômenos da natureza e as relações entre eles sejam sempre suficientemente rigorosas (cf. BAZERMAN, 1988), para que, a partir delas, possamos assimilar coerentemente experiências que vivemos no passado e prever, com algum grau de certeza, eventos que poderão acontecer no futuro. Com efeito, quando se consideram as circunstâncias mais prototípicas em que uma pessoa precisa recorrer a algum medicamento – por exemplo, a identificação de uma doença e 219 Não faz parte do escopo deste trabalho resolver até que ponto uma visão sobre o discurso científico pautada

no senso comum pode ser legítima.

220 [By representing nature symbolically, we can understand, predict, and manipulate it. The symbols give us a picture of the way things are.]

221 Enquanto um compromisso básico da Política nacional de medicamentos (BRASIL, 2001), o “uso racional de medicamentos [é] o processo que compreende a prescrição apropriada; a disponibilidade oportuna e a preços acessíveis; a dispensação em condições adequadas; e o consumo nas doses indicadas, nos intervalos definidos e no período de tempo indicado de medicamentos eficazes, seguros e de qualidade” (p. 37).

os efeitos (positivos ou colaterais) do seu tratamento –, o papel das bulas parece ser bastante óbvio. Além do mais, até onde é possível se presumir, esse requisito tem implicações muito profundas na forma como o discurso científico e, mais especificamente, o técnico-científico se apresentam. Com relação a esse ponto, Bazerman (ibid.) comenta que

o único problema [do discurso científico] é de caráter mais prático: produzir símbolos precisos, inequívocos, unívocos, para criar uma correspondência clara e direta entre o objeto e a palavra. As instruções de manuais técnicos de redação científica refletem essa visão comum [cf., por exemplo, MEDEIROS, 2006, GIL, 2002 e ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2003a, 2006, 2011].222 (p. 292, grifos meus)

Esse alegado compromisso do discurso técnico-científico com aquilo que Temmerman (2000), chama de “princípio de univocidade223” [univocity principle] (p. 10) já parece insinuar, aqui, a maneira como ele vem se relacionando, por exemplo, com a linguagem metafórica – e a linguagem figurada em geral – desde, pelo menos, a consolidação de uma postura objetivista sobre a ciência (cf. página 90 deste trabalho). Uma avaliação das metáforas, no ponto de vista do senso comum – e, inclusive, no de alguns especialistas –, é representada pela visão de que “ela consiste, na pior das hipóteses, em um fungo ilusório, condenado a viver para sempre em uma penumbra pré-científica”, e, por isso, “qualquer teoria boa deveria ser literal e precisa224 (HOFFMAN, 1980, p. 384, grifo meu). É, justamente, essa interpretação que leva adeptos de certas doutrinas científicas tradicionais – como, por exemplo, a teoria geral da terminologia (cf. WÜSTER, 1956) – a defenderem que haveria, de fato, alguma vantagem em se evitarem metáforas nas linguagens de especialidade (cf. TAMMERMAN, 2000)

No entanto, embora alguns especialistas possam preferir rejeitar qualquer linguagem metafórica – seja pelas razões que derem –, não se pode ignorar a participação (na maioria das vezes, inconsciente) desse fenômeno para os objetivos do discurso científico e, em particular, do técnico-científico. Ao contrário do que esses especialistas podem acreditar, metáforas não produzem, necessariamente, formulações equivocadas ou imprecisas dentro das ciências. Com o reconhecimento de que metáforas seriam um fenômeno básico de conceptualização (desde, 222 [The only problem is the most practical one of making the symbols precise, unambiguous, univocal, to

create a clear one-to-one correspondence between object and symbol. The prescriptions of technical writing manuals largely reflect this everyday perspective.]

223 Univocidade é um termo que designa, a um mesmo tempo, condições de monossemia e monovalência. Essas condições representam, em sentidos complementares, a equivalência entre um termo e um conceito, em que um único conceito é atribuído a um único termo e vice-versa (cf. FELBER, 1984).

224 [At worst it (metaphor) is an irreal fungus doomed eternally to a prescientific twilight zone. (…) Any good theory should be literal and precise.]

principalmente, LAKOFF; JOHNSON, 2002 [1980]) – sobretudo, de domínios conceptuais abstratos225 –, fica entendido que, na verdade, “elas podem funcionar como uma ferramenta de construção do conhecimento ou, por outro lado, como um recurso figurativo, com algum valor epistemológico, que ajudaria na transmissão desse conhecimento”226 (BAAKE, 2003, p. 68). Sendo assim, a ocorrência de alguma linguagem metafórica no discurso técnico-científico não deveria ser reprimida como sendo um desacerto (por parte dos que a recrutam). O que precisa ser ponderado, a partir das questões levantadas nesta discussão, não seria a ocorrência efetiva de metáforas dentro desse domínio discursivo, mas, mais do que isso, a possibilidade do seu reconhecimento como tais – ou seja, a sua metaforicidade.

Retomando certas observações feitas por Lakoff e Johnson (2002 [1980]) – quanto ao mapeamento por trás do nosso entendimento sobre a linguagem (cf. página 70 deste trabalho) –, sabe-se que muitas metáforas (se não, a maioria delas) refletem um modo tão convencional de se pensar e de se falar sobre um determinado conceito, que elas parecem ser intrínsecas a ele. Em outras palavras, pode se afirmar que a alta convencionalidade de algumas expressões metafóricas, de alguma forma, daria mesmo a impressão de que elas denotam o sentido mais básico (ou, ainda, literal) do conceito que expressam. Esse parece ser o caso, a propósito, das metáforas identificadas no corpus de bulas de medicamento analisadas aqui. Considere-se, por exemplo, o quão comuns são expressões tais como “pequenas hemorragias”, “com prazo de validade vencido”, “crianças acima de 6 anos”, “sem orientação médica”, “queda de pressão” e “fora do alcance de crianças” (cf. Quadro 7). Nesses casos, em particular, tanto a repetição de algumas dessas metáforas quanto a saturação que marca tantas outras não teriam uma função específica, senão que se apresentariam somente como resultado e, ao mesmo tempo, abono da convencionalização dos conceitos (ou da lexicalização das construções) que participam desse tipo de discurso – ou, ainda, do domínio discursivo a que ele pertence.

Dessa forma, a convencionalização – através, inclusive, da lexicalização – da eventual linguagem metafórica presente em bulas de medicamento teria um papel crucial na prevenção de interpretações ambíguas das informações e orientações nos seus textos. De fato, até onde pode se supor, certas falhas na precisão – ou, ainda, na impressão de precisão – nesse tipo de discurso poderiam ter consequências realmente graves na circunstância de administração de um medicamento. A leitura ambígua – ou, digamos, aberta – do conteúdo de uma bula poderia 225 Cameron (2003), por exemplo, chama a atenção para o papel ideacional das metáforas em contextos

pedagógicos, uma vez que elas podem ajudar o professor a explicar e os alunos a entenderem os conceitos muito abstratos ou sofisticados em termos de noções mais concretas e familiares.

226 [Metaphor in science can function (…) as a tool to build knowledge or, at the other end, as a figurative device that may have some epistemological value, but which primarily serves to help deliver knowledge.]

conduzir a equívocos, senão fatais, muito comprometedores à saúde do usuário da respectiva droga. Seja como for, o que se formula, em ultima análise, é que é a impressão de univocidade (cf. TEMMERMAN, 2000) – assegurada, dentre outras coisas, pela baixa metaforicidade das suas eventuais expressões metafóricas – que atenderia, de uma maneira bastante conveniente, a um dos propósito mais fundamentais do discurso técnico-científico, isto é, a caracterização (pelo menos, supostamente) exata e literal de realidade.

Um dado importante, a respeito da repetição e, em especial, da saturação de metáforas em bulas de medicamento, que deve ser comentado aqui se refere à ocorrência desses mesmos recursos identificadas nos sonetos analisados aqui. Ao contrário do que acontece com bulas, a saturação que eventualmente marca a linguagem metafórica nesse tipo de poema tende a se concentrar, especificamente, no plano intratextual – ou seja, no interior de um único texto. Por conta do caráter criativo e original que esse tipo de discurso exige, em geral, as suas escolhas linguísticas – que incluem as suas expressões metafóricas e a saturação dos seus mapeamentos – muito raramente são aproveitadas em outros textos. Ou seja, os componentes tanto formais quanto semânticos que compõem um soneto qualquer não chegam a constituir um elemento comum ao seu domínio discursivo como um todo. Um comentário de Boyd (1993 [1979]) que importa, em grande medida, para essa questão é a de que

o mais comum de acontecer é uma metáfora literária “residir”, digamos assim, em um único texto de um único autor. Quando uma mesma metáfora é usada por outros autores, a referência ao uso original fica implícito. Quando uma mesma metáfora é usada com frequência, por vários autores e com poucas variações, ela ou fica gasta ou se torna banal ou, ainda, se “cristaliza” na forma de uma figura de estilo ou de uma nova expressão metafórica.227 (p.

487, grifos no original)

A partir disso, pode se argumentar que a saturação em sonetos deve preferencialmente se fixar em um único texto, com jogos de linguagem próprios a cada produto, com vistas a dar acesso coerente ao mundo figurado criado pelo autor (cf. LAKOFF; TURNER, 1989) em cada evento discursivo. O mais provável, nesses casos, é que tais jogos particulares não se repitam, de maneira regular e idêntica, em outros textos identificados com o mesmo gênero (ou, ainda, com outros gêneros pertinentes ao mesmo domínio discursivo). Considerem-se, por exemplo,

227 [Typically, a literary metaphor has its "home," so to speak, in a specific work of a specific author; when the same metaphor is employed by other authors, a reference to the original employment is often implicit. When the same metaphor is employed often, by a variety of authors, and in a variety of minor variations, it becomes either trite or hackneyed, or it becomes "frozen" into a figure of speech or a new literal expression]

as expressões metafóricas que estabelecem algum tipo de saturação no poema Leão-marinho, (ANDRADE, 2013, p. 16): “louco leão-marinho”, “leão-marinho que pervaga em busca, sem saber”, “leão-marinho brinca em nós” e “leão-marinho […] é triste”. A conceptualização do animal LEÃO-MARINHO em termos de uma pessoa, em princípio, teria a ver, exclusivamente, com esse poema de Andrade (loc. cit.), cujo tema central é, justamente, aquele animal (e o seu sofrimento) – pelo menos, dentro do corpus analisado aqui.

Já, no caso de bulas de medicamento, por sua vez, a repetição e a saturação de alguma metáfora conceptual, embora possam acontecer dentro de um único texto, não se restringem, exclusivamente, a ele. As eventuais expressões metafóricas presentes em um texto qualquer – bem como os mapeamentos que atualizam – se colocam à disposição de outros tantos textos identificados com esse mesmo gênero; e, na verdade, são amplamente convocadas (em muitas ocasiões, ipsis verbis) por vários deles. Dessa forma, os recursos de metaforicidade presentes nas bulas acabam constituindo um aspecto essencialmente intertextual seu, isto é, um aspecto pertinente antes ao seu gênero discursivo do que a um produto particular228. Tal é o caso, aliás,

de várias expressões licenciadas pela metáfora conceptual PROCESSO É TRAJETÓRIA, como, por exemplo, “siga corretamente o modo de usar” e “não interrompa o tratamento” e “não deve ser utilizado por mulheres grávidas sem orientação médica”, que ocorrem – com muito pouca ou nenhuma variação – nas bulas dos medicamentos Buscopan® (2013), Neosaldina® (2013), Atrovex® (2013), Dramin® (2013) e Herpesil® (2014) desse corpus.

A tese defendida aqui, pois, é a de que, ao contrário de poemas – que buscam, através de uma saturação (intratextual) das suas metáforas, um meio de permitirem acesso ao mundo figurado idealizado pelo seu autor dentro de cada evento discursivo particular –, em bulas de medicamento, tal recurso (em geral, intertextual) serve basicamente para fixar as convenções