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5.2 METAFORICIDADE EM SONETOS

5.2.3 Metaforicidade em função das práticas

Ao se considerarem quantas e quais atividades sociais estão tipicamente ancoradas em sonetos, percebe-se que o alcance desse gênero é virtualmente ilimitado. Porque, em termos práticos, o discurso literário não persegue nenhum objetivo específico (cf. STEEN, 1994), o espectro de cenários discursivos que poemas podem compor – em função, justamente, da sua não restrição de propósitos – é bastante amplo. Ele encerra desde atividades pedagógicas (tais como cursos, eventos acadêmicos, ensaios etc. de literatura e de línguas195) até arranjos sociais menos formais (como, por exemplo, festivais, saraus, serenatas196 etc.). Devem se listar, ainda e sobretudo, as atividades individuais (profissionais ou não) de criação e de leitura (ou escuta) contemplativa (ou crítica) de sonetos, que quaisquer falantes podem empreender e que estão muito próximas do propósito de realização da subjetividade associado ao discurso literário (cf. ibid.). Apesar disso, uma observação que Cândido (2006) faz, quanto às práticas estruturadas no discurso literário, sugere algum ponto em comum entre elas:

Com efeito, entendemos por literatura, neste contexto, fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos. […] Não há literatura enquanto não houver essa congregação espiritual e formal. (p. 147, grifos meus)

Um fator que parece agrupar as diversas atividades estruturadas às voltas do terreno da literatura seria, pois, algo como a “socialização da subjetividade”, que institui a “relação entre a ação individual criativa e as injunções dos cenários sociais em que essa ação se desenrola” (PETERS, 2013, p. 200). Esse fator poderia explicar, pois, o grau (significativo) de metafori- cidade da linguagem metafórica identificada no corpus de sonetos. Nesse caso, o papel que as metáforas e, em especial, a possibilidade do seu reconhecimento como tais (cf. STEEN, 1994) 195 Em uma edição do Guia de livros didáticos de língua portuguesa para o ensino médio (BRASIL, 2014a), por

exemplo, o soneto é referido como um gênero ou tipo de texto importante tanto para o ensino e aprendizagem de literatura quanto para a formação do aluno como leitor.

196 Para se ter uma ideia do quão diversas são as práticas discursivas em que sonetos podem ser evocados, considere-se o projeto Poemas no ônibus e no trem (PORTO ALEGRE, 2016). Essa iniciativa da prefeitura municipal de Porto Alegre, que já está na sua vigésima quarta edição, promove a divulgação de poemas – de escritores amadores na sua maioria – no interior dos veículos do transporte público da capital gaúcha.

desempenham na expressão do “eu” (do poeta) se prestaria, em uma ocasião posterior, à sua socialização. Em outras palavras, entende-se que, se, por um lado, a metaforicidade permite que o poeta realize a sua subjetividade, por outro, ela coloca essa subjetividade à disposição do seu interlocutor. Esse é um aspecto – relativo às práticas que integram o gênero poema – a que poderiam se atribuir a ocorrência de metáforas inéditas e diretas (cf. Quadros 2 e 3), e a saturação (cf. Quadro 4), a posição (cf. Quadro 5) e a possível marcação prosódica que carac- terizam algumas das metáforas identificadas nos textos analisados aqui.

Além da socialização da subjetividade, as práticas fundamentadas em sonetos também compartilham o fato de constituírem atividades tipicamente centradas no próprio texto – ou, ainda, “orientados à [sua] forma” [form oriented] (cf. STEEN, 1994). Com base no modelo de análise proposto por Bhatia (2004), sugere-se que as práticas sociais que integram os gêneros podem ser, grosso modo, de dois tipos: aquelas que estão voltados a aspectos do contexto em que se realizam e aquelas que tomam o produto como o eixo principal para a sua realização. No primeiro grupo, estariam as atividades que recrutam o texto como meio para se chegar a um determinado fim prático. Exemplos prototípicos desse tipo de atividade seriam aquelas ancoradas em bulas de medicamento, manuais de eletrodoméstico e contratos de trabalho. Já, do segundo grupo, participam as práticas cujo fim é o texto em si. Esse é justamente o caso das atividades que integram muitos gêneros relativos ao discurso literário, tais como epopeias, romances, poemas e, mais especificamente, sonetos.

O fato de as práticas ancoradas em sonetos estarem, por um viés estético, orientados à sua forma teria um efeito significativo sobre o produto que participa desse tipo de discurso (cf. STEEN, 1994). Nesse caso, o uso do frame do seu gênero, ao evocar certas expectativas relativas à ocorrência de alguma linguagem excepcional, parece incentivar uma manipulação consciente de certos elementos verbais (convencionais e não convencionais) em todos os seus níveis – isto é, na fonética, no léxico, na sintaxe e na semântica –, com vistas, especialmente, à ativação da sua linguagem de um modo geral. A ocorrência dos recursos de metaforicidade identificados nesse corpus – em particular, as metáforas não convencionais (cf. Quadro 2), as metáforas diretas (cf. Quadro 3), a saturação (cf. Quadro 4) e a possível marcação prosódica – poderiam encontrar aí alguma justificativa.

Essa explicação sobre a maneira como o gênero soneto parece se relacionar com a sua eventual linguagem metafórica encontra alguma fundamentação, também, nas observações de Fish (2014 [1980]) a respeito das práticas que envolvem, justamente, o discurso literário. De acordo com essas observações (ibid.), do ponto de vista do senso comum – e, até mesmo, do

de alguns críticos literários e de alguns linguistas –, o reconhecimento de um poema como tal, por exemplo, seria resultado da identificação de características específicas do seu gênero. Isto é, a razão por que reconhecemos um soneto quando lemos um é porque o texto que temos em mãos apresenta traços que identificamos como sendo intrínsecos a ele. Fish (ibid.), no entanto, descobriu acontece justamente o contrário. A partir das respostas de alunos inadvertidamente inseridos em um experimento informal, em que eram instruídos a analisar um conjunto aleató- rio de palavras como se fosse um poema, esse autor (ibid.) chega à conclusão de que

o reconhecimento [de um poema como tal] não seria o resultado, mas, sim, a causa para a identificação das suas propriedades formais. Não é a presença de propriedades pertinentes à poesia que impulsiona um olhar específico sobre o texto; é um olhar específico sobre o texto que leva ao surgimento de proprie- dades poéticas.197 (p. 79)

Algo que esse raciocínio permite deduzir é que, quando nos engajamos em atividades (nas mais prototípicas, pelo menos) relativas à realização de um gênero qualquer, as nossas expectativas a respeito desse gênero – ou seja, o seu frame – são, digamos, traduzidas em uma predisposição – ou, ainda, em uma orientação – para percebermos, nos respectivos textos, as propriedades que acreditamos serem inerentes a ele. Portanto, não seria absurdo se afirmar que, uma vez que o frame prototípico de soneto estaria supostamente associado à ocorrência de alguma linguagem metafórica (cf., por exemplo, Apêndice B), ele acabaria conduzindo a atenção dos falantes envolvidos nas respectivas práticas para as eventuais metáforas presentes nos textos que lessem. Para tanto, esse mesmo frame deveria permitir e, em algumas vezes, incentivar a exploração de recursos para a ativação dessas metáforas na ocasião de produção desses poemas. Os recursos de metaforicidade identificados no corpus de sonetos analisados aqui – tais como a não convencionalidade, a diretividade e a saturação de algumas metáforas (cf. Quadros 2, 3 e 4) – parecem atestar a coerência desse raciocínio.

Pode se argumentar, por fim, que a não especificidade das atividades que caracterizam o gênero soneto também serviria para explicar, de alguma maneira, o grau de metaforicidade observado na linguagem metafórica desse corpus. Já se comentou aqui (cf. página 35-36 deste trabalho) que, a depender do grau de especialização de um evento discursivo, a sua estrutura genérica pode ser menos ou mais rígida (cf. BHATIA, 2004). O que se observa, com relação 197 [Acts of recognition (of a poem), rather than being triggered by formal characteristics, are their source. It is

not that the presence of poetic qualities compels a certain kind of attention but that the paying of a certain kind of attention results in the emergence of poetic qualities.]

aos sonetos, é que, porque as suas práticas são pouco especializadas, a sua linguagem parece poder usufruir uma maior flexibilidade, mesmo que dentro dos limites desse gênero198. Isso explicaria, por exemplo, a ocorrência de metáforas inéditas (cf. Quadro 2) e metáforas diretas (cf. Quadro 3) – dentre outros recursos de ativação da sua linguagem, relacionados ou não às suas metáforas – ao longo dos textos analisados aqui. A título de comparação, considerem-se as correlações que poderiam ser estabelecidas entre o grau de especialidade de práticas anco- radas, digamos, em um contrato de trabalho e a convencionalidade da linguagem – inclusive, da linguagem metafórica – mais prototípica desse tipo de discurso.