• Nenhum resultado encontrado

Por abordagens sociossemióticas do gênero, entendem-se as teorias que compõem o momento atual dos estudos do discurso e que constam, no esquema de Bhatia (2004), como a fase da sua contextualização. O interesse deste trabalho nessas teorias se justifica pela força com que elas têm se desenvolvido e se consolidado, nos últimos quarenta anos, pelo menos, dentro do campo dos estudos da linguagem. A sua importância pode ser atestada não apenas na literatura atual relativa aos estudos do discurso, mas, também, na sua aplicação recorrente, sobretudo, em contextos pedagógicos. Analisem-se, por exemplo, diferentes edições do Guia de livros didáticos de língua portuguesa (cf., recentemente, BRASIL, 2013, 2014a, 2015), do Programa Nacional do Livro Didático (BRASIL, 1985), que é o programa oficial do governo brasileiro para dar subsídio pedagógico aos professores que atuam nos níveis fundamental e médio de ensino no país35. São, portanto, essas as abordagens com que se pretende articular, mais adiante, as perspectivas sociocognitivas do gênero, a fim de se alcançar uma visão desse fenômeno que seja consistente com os propósitos desta investigação.

É importante se comentar, antes mesmo de se falar das abordagens sociossemióticas do gênero, que algo do contexto do discurso havia sido considerado – ainda que de um modo menos analítico do que especulativo – por Aristóteles (2005 [c. 330]), na sua apresentação dos gêneros da retórica. Ao relacionar as noções de “orador”, “ouvinte” e “fim do discurso” como fatores determinantes do “assunto de que se fala” e do “tempo de cada um [gênero]” (ibid., p. 104), esse filósofo já insinua alguma preocupação com aspectos contextuais para abordar os gêneros. No entanto, é nas considerações de Bakhtin (2003 [1953]), a respeito dos gêneros do discurso, que essa preocupação adquire um fôlego realmente sistemático. A sua insistência, em especial, no papel das “esferas de atividade humana” (ibid., p. 278-326) para explicar a natureza do enunciado e classificar os tipos de discurso repercute, até hoje, dentro de grande parte das investigações voltadas à análise e à aplicação dos gêneros.

Na verdade, a corrente mais influente das teorias do gênero, hoje, – que se desenvolve com base nas reflexões de Bakhtin (2003 [1953]) – guarda, pelo menos, um princípio básico em comum: um cuidado rigoroso com a contextualização do discurso. Bhatia (2004) observa 35 Para se ter uma ideia da noção de gênero que norteia o discurso pedagógico oficial brasileiro, considere-se o

seguinte excerto, retirado de um Guia de livros didáticos de língua portuguesa (BRASIL, 2014a) para o ensino fundamental: “A gramática, tanto quanto as dimensões sociolinguísticas, os elementos constitutivos dos gêneros, a tipologia textual e a gramática do texto estão a serviço da compreensão, por parte do aluno, de como a língua funciona e do reconhecimento dos mecanismos de que ela dispõe para atender a diferentes funções sociais e às particularidades de distintas situações.” (p. 43, grifos meus).

que a maioria dos autores que têm assumido, nas últimas duas décadas, algum compromisso com a análise dos gêneros, independentemente da forma como o fazem, se rende à descrição do uso da linguagem a partir, sobretudo, da sua conjuntura social. Essa postura generalizada, na fase atual dos estudos do discurso, leva à conclusão de que, então,

analisar gêneros significa […] investigar exemplos de artefatos textuais convencionalizados ou institucionalizados no contexto de práticas, procedimentos e culturas institucionais e disciplinares específicas, a fim de se entender como os membros de uma comunidade discursiva específica constroem, interpretam e usam esses gêneros para alcançar os seus propósitos comunicativos e por que eles os escrevem da forma como o fazem.36

(BHATIA, 2004, p. 10)

Esse pressuposto denota, como já foi dito, uma perspectiva de caráter essencialmente sociológico sobre a natureza do gênero, fundamentada, pois, nos aspectos contextuais do seu uso. Por aspectos contextuais, nesse cenário, entendem-se ambos o conjunto de elementos do contexto imediato ao texto, relativos àquilo que cerca a sua realização, quanto o de elementos do contexto lato, referentes às práticas sociais e culturais que condicionam as suas produção e interpretação. No final das contas, Bhatia (2002, p. 6, 2004, p. 1137) concentra esses aspectos – que dão forma aos eventos discursivos e, portanto, são responsáveis por definir o próprio conceito de gênero dentro dessa visão – em quatro itens principais:

(i) propósitos: objetivos da instituição e propósitos comunicativos; (ii) produtos: artefatos textuais ou gêneros;

(iii) práticas: práticas, procedimentos e processos discursivos; e (iv) participantes: membros da comunidade discursiva38

36 [Analysing genre became (…) the investigation of instances of conventionalised or institutionalised textual artifacts in the context of specific institutional and disciplinary practices, procedures and cultures in order to understand how members of specific discourse communities construct, interpret and use these genres to achieve their community goals and why they write them the way they do.]

37 Pode se encontrar, em outro trabalho de Bhatia (1999), uma primeira discussão sobre os aspectos que contribuem para a construção e caracterização dos gêneros. No entanto, esse autor não os esquematiza exatamente da mesma forma como o faz aqui.

38 [Purposes: institutionalized community goals and communicative purposes. Products: textual artifacts or genres. Practices: discursive practices, procedures and processes. Players: discourse and professional community membership.]

Apesar das eventuais divergências de metodologia e objetivos que, inevitavelmente, permeiam as várias teorias sociossemióticas do gênero, Bhatia (2002) assegura que a opinião sobre esses elementos é motivo de consenso entre elas. De fato, independentemente da forma como se conduz a análise dos gêneros, “parece realmente necessário se propor um modelo que combine, de modo dinâmico e inclusivo, esses quatro aspectos da teoria, a fim de se obter um entendimento do gênero suficientemente completo e abrangente”39 (ibid., p. 07). Ou seja, para se responder uma pergunta do tipo “por que um determinado uso da linguagem tem a forma que tem?”, sob uma perspectiva de contextualização do discurso, devem se considerar desde a estrutura formal dos textos até a atividade social em que são produzidos e interpretados, a sua finalidade, que pessoas estão envolvidos no seu uso40 etc.

É necessário se observar, por fim, que a caracterização dos gêneros, nessa visão, no que diz respeito tanto à sua construção quanto ao seu uso, está condicionada a duas premissas fundamentais. A primeira delas tem a ver com o reconhecimento da existência de convenções. Grosso modo, “gêneros estão relacionados ao uso da linguagem em cenários comunicativos convencionalizados, com vistas a um conjunto específico de propósitos comunicativos”, e, segundo Bhatia (2004), “isso dá origem a formas estruturais estáveis”41 (p. 23). Sendo assim, ancorada nessas convenções está a imposição de regras que orientam, por exemplo, o uso de recursos lexicais, gramaticais, discursivos etc. na produção dos textos. Já a segunda premissa, que condiciona a construção e o uso dos gêneros, se refere ao fato de que eles possuem uma natureza flexível. Berkenkotter e Huckin (1995) observam que, apesar de serem tipicamente associados a contextos discursivos recorrentes – com regras fixas quanto às suas construção, interpretação e uso –, os gêneros não são estáticos. Ao contrário disso, “os gêneros constituem estruturas retóricas dinâmicas na sua essência, que podem ser manipuladas de acordo com as condições de uso”42 (p. 06). Com efeito, as convenções genéricas podem ser frequentemente exploradas e deslocadas, a fim de se satisfazerem as intenções particulares de determinados participantes, em determinados eventos discursivos.

39 [It seems more than necessary to posit a framework which integrates these four aspects of genre in an interactive and integrative manner to get as complete and comprehensive understanding of the genre as possible.]

40 Deve se reconhecer, a esse propósito, a grande influência dos postulados de Swales (1990) a respeito das noções de “propósitos comunicativos” [communicative purposes] (p. 46) e de “comunidade discursiva” [discourse community] (p. 24) na especificação dos elementos que podem vir a compor o gênero. 41 [Genre essentially refers to language use in a conventionalized communicative setting, in order to give

expression to a specific set of communicative goals, (…) which give rise to stable structural forms.]

Embora possam parecer contraditórias, as duas premissas – uma relativa à estabilidade do gênero e a outra, à sua flexibilidade – não se anulam. Se, por um lado, os membros de uma comunidade discursiva possuem “certa liberdade estratégica para explorar recursos genéricos para executar ações [discursivas] individuais”, por outro lado, “essa liberdade de exploração é realizada antes dentro das fronteiras do gênero do que fora delas”43 (BHATIA, 2004, p. 24, grifos no original). Sendo assim, o que determina o pertencimento de um uso da linguagem a um dado gênero é o seu grau de adequação às convenções desse gênero44.

É, basicamente, nas medidas apresentadas aqui que as teorias de base sociossemiótica do gênero têm confiado para tratar da natureza dos tipos de discurso e, em última análise, da sua conceituação. Com respeito à definição de gênero, essas abordagens tendem a coincidir, segundo Motta Roth (2008), em, pelo menos, dois pontos. O primeiro determina que “gêneros são usos da linguagem associados a atividades sociais” (p. 350) e, portanto, constituem o que pode se chamar de ações discursivas. O outro ponto prega que “essas ações discursivas são recorrentes e, por isso, têm algum grau de estabilidade na forma, no conteúdo e no estilo” (loc. cit.). Partindo-se de um ponto de vista essencialmente sociológico, sendo assim, o gênero designa uma ação discursiva recorrente (realizada em textos, a propósito), com propriedades específicas – em termos de conteúdo, forma, estilo –, que desempenha funções comunicativas específicas, dentro de estruturas sociais únicas (cf. BHATIA, 2004; MOTTA ROTH, 2008). Na próxima seção, este trabalho discute de que maneira o conhecimento que emerge de tais ações discursivas se estrutura e se organiza cognitivamente.