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5.2 METAFORICIDADE EM SONETOS

5.2.1 Recursos de metaforicidade

Além das expressões metafóricas, foram identificados, no corpus de sonetos, recursos que parecem ser capazes de afetar a ativação da sua metaforicidade. Distribuídas em sete dos oito poemas analisados, por exemplo, observam-se metáforas não convencionais (ou inéditas), conforme é evidenciado no Quadro 2, a seguir. Elas são assinaladas como não convencionais, na medida em que os seus sentidos – nos respectivos contextos – não constam nos dicionários consultados nesta análise (cf. FERREIRA, 2004; HOUAISS et al., 2009). Algo que esse dado já sugere, portanto, é que a não convencionalidade parece constituir um recurso de ativação de metaforicidade recorrente em sonetos – e, por extensão, em poemas.

181 Porque a sondagem realizada no âmbito desta pesquisa se presta, essencialmente, à complementação das análises feitas aqui, um tratamento estatístico exaustivo dos seus resultados, pelo que se julga, não seria imprescindível para a sua discussão – além de, em alguma medida, poder distrair o seu principal foco de atenção. No entanto, pode se acompanhar, ao final deste trabalho (cf. Apêndice C), o produto de uma análise estatística mais detalhada desses resultados.

Quadro 2. Metáforas inéditas no corpus de sonetos

Palavras usadas metaforicamente (com sublinhado) Conceptualização182

“E mãos oferecidas e mecânicas,

De um vegetal segredo enfeitiçadas” (ANDRADE, 1978)

informação em termos de planta* “Por entre as rochas lisas, e um mugido [do leão-marinho]

Se faz ouvir, soturno e diurno, em pura” (ANDRADE, 2013)

leão-marinho em termos de bovídeo* “Suspendei um momento vossos [dos pescadores] jogos

Na fímbria azul do mar, peitos morenos” (ANDRADE, 2013) trabalho em termos de jogo* A doçura do monstro, oclusa, à espera…

Um leão-marinho brinca em nós, e é triste (ANDRADE, 2013)

sentimento em termos de animal* “D’água o fluido lençol, onde em áscuas cintila

O sol, que no cristal argênteo se refrata” (BANDEIRA, 1966a)

reflexo do sol em termos de brasa* “Oásis de verdura no concreto […]

Assim parece o parque, da sacada” (MATTOSO, 2003a)

cidade em termos de um deserto* “Assim prece o parque, da sacada

Da típica babel beirando o teto” (MATTOSO, 2003a)

prédio em termos da torre de Babel183

“As aves são, no jogo democrático,

do verde os deputados, senadores” (MATTOSO, 2003c) personificação “As aves são, no jogo democrático,

do verde os deputados, senadores” (MATTOSO, 2003c)

personificação “No recesso, como ávida ferida

Guardar o plasma último da vida” (MORAES, 1954)

essência em termos de sangue* “Rosa geral de sonho e plenitude […]

Em novas rosas de carnal virtude” (MORAES, 1954)

personificação “E se encontro no mato o rubro de uma amora

Vou cuspindo-lhe o sangue nos currais” (MORAES, 1937)

personificação

Outro recurso de ativação de metaforicidade observado – exclusivamente, aliás – nesse corpus é a diretividade. Conforme uma definição de Steen et al. (2010), metáforas diretas são aquelas cuja “expressão no texto ativa conceitos diretamente relacionados aos seus referentes no discurso, isto é, elementos do domínio-fonte são usados diretamente (ou literalmente) na superfície linguística”184 (p. 93, grifo no original). Um exemplo disso são os versos do soneto Leão-marinho (ANDRADE, 2013, p. 16), em (32), a seguir, que comparam esse animal – que busca por algo que desconhece – aos homens que se lançam a um mar que não existe. Além desse, outros três dos oito sonetos também abrigam alguma metáfora construída diretamente, 182 No caso de expressões metafóricas convencionalizadas, conforme se verificará mais adiante, é possível se

recrutar as respectivas metáforas conceptuais a partir da literatura geral. Já, no caso de metáforas inéditas, cujos mapeamentos subjacentes geralmente não se encontram descritos na literatura geral, este trabalho opta por apenas sugerir as respectivas conceptualizações. Essas sugestões estão indicadas por asterisco (*). 183 A torre de Babel, cujo topo deveria alcançar o céu, é um mito etiológico (BÍBLIA, Gênesis 11, 1-9) para

explicar a origem das diversas línguas faladas pelos diferentes povos.

184 [These (metaphorical) expressions are considered direct since the words on the page activate concepts that refer directly to their referents in the text world, that is, the source domain terms are used directly

quer seja pela conjunção de equivalência “como”, quer seja pelo verbo de ligação “parecer”. Essas expressões, por sua vez, estão dispostas no Quadro 3, abaixo.

(32) É o louco leão-marinho, que pervaga, em busca, sem saber, como da terra (quando a vida nos dói, de tão exata) nos lançamos a um mar que não existe.

Quadro 3. Metáforas diretas no corpus de sonetos Palavras usadas metaforicamente (com sublinhado) Conceptualização “[Leão-marinho] em busca, sem saber, como da terra […]

nos lançamos a um mar que não existe” (ANDRADE, 2013)

personificação “[Água] cai, gemendo e cantando, ao fundo da cascata

Parece a grave queixa, atroando” (BANDEIRA, 1966a)

personificação “Oásis de verdura no concreto […]

Assim parece o parque, da sacada” (MATTOSO, 2003a)

cidade em termos de deserto* “Mais um ano na estrada percorrida

Vem, como o astro matinal, que a adora” (MORAES, 1954)

tempo em termos do sol* “E da fragrante tepidez sonora

No recesso, como ávida ferida” (MORAES, 1954)

calor em termos de lesão*

Algo que os postulados de Steen et al. (2010), a respeito da diretividade, insinuam, até onde pode se compreender, é que se assume a símile como sendo um recurso de ativação da metaforicidade. A explicação (ibid.) que oferecem para essa escolha diz que as comparações e analogias, decorrentes desse tipo de combinação – como, por exemplo, “mais um ano […] vem como o astro matinal”, “tepidez sonora […] como ávida ferida” e “a água cai, gemendo […] parece a grave queixa” (cf. Quadro 3) –, de fato, se sustentam nas bases de uma projeção metafórica – nesse caso, formalmente enunciada – entre dois domínios. Em termos analíticos, então, as partículas que engendram uma símile operariam como sinalizadores dessa projeção. Essa é a razão por que, no final das contas, Steen et al. (ibid.) incluem a símile – ou, ainda, a diretividade – como um recurso (muito singular) de metaforicidade.

Chama a atenção, ainda, como um recurso expressivo de metaforicidade no corpus de sonetos, a saturação que marca parte da sua linguagem metafórica – e que está exemplificada no Quadro 4, a seguir. Segundo sugerem alguns estudos (cf., principalmente, GOATLY, 1997; STEEN, 2002, 2004; DUNN, 2011), a coocorrência, dentro de um mesmo enunciado ou texto,

de expressões metafóricas licenciadas pelo mesmo mapeamento poderia constituir, em muitas vezes, um fator interveniente para o seu reconhecimento como tais. Observa-se, porém, que a reincidência de metáforas conceptuais, no caso particular dos sonetos, não se dá somente pela repetição fortuita das suas atualizações (em geral, não convencionalizadas), tal como acontece em outros corpora desta análise. Na verdade, como se verá adiante, esse é um dado relevante, quando se trata da ativação da metaforicidade da linguagem metafórica.

Quadro 4. Exemplos de saturação no corpus de sonetos Palavras usadas metaforicamente (com sublinhado) Metáfora conceptual “Por fim os periquitos algo prático decidem […]

desforço contra humanos predadores” (MATTOSO, 2003c)

PROCESSO É TRAJETÓRIA

“A bordo a faina avulta e toda a gente já […] E enquanto a grita aumenta em berros e assobios” (BANDEIRA, 1966b)

QUANTIDADE É TAMANHO

“Silêncio, coros de rua, no vaivém […] leão-marinho, que pervaga, em busca” (ANDRADE, 2013)

EVENTO É RECIPIENTE

“Seguida de um olhar não sem malícia e verve Nós todos, animais, sem comoção nenhuma” (MORAES, 1937)

ATRIBUTO É OBJETO

“enquanto outras visões se delineiam e logo se enovelam: mascarada” (ANDRADE, 1978)

CONHECER É VER

“Mais um ano na estrada percorrida Vem, como o astro matinal, que a adora” (MORAES, 1954)

TEMPO É ESPAÇO

“Na pura poluição, [São Paulo] vive hoje a vida que um dia viveria a Terra inteira!”

(MATTOSO, 2003a)

personificação

“D'água o fluido lençol, onde em áscuas cintila […] Às vezes, [água] a tremer na fraga faiscante” (BANDEIRA, 1966a)

reflexo de luz em termos de fogo*

Assinala-se, como outro recurso de metaforicidade nesse corpus, a posição de algumas expressões metafóricas nos respectivos textos. Com base em resultados de um experimento de identificação de metáforas em canções, realizado com falantes de língua inglesa, Steen (2002) observa que a posição das expressões metafóricas nos versos e nas estrofes teria algum efeito sobre a possibilidade do seu reconhecimento como tais. Conforme as suas conclusões (ibid.), “metáforas que aparecem nos versos iniciais ou finais de uma estrofe são reconhecidas mais

facilmente [como metafóricas] do que metáforas que aparecem no interior de uma estrofe”185 (p. 1309). E essas chances aumentariam se a expressão metafórica estivesse em uma posição pós-verbal. Quando se considera a estrutura formal dos sonetos, constata-se que ela pode ser muito semelhante à forma de canções, uma vez que eles também são compostos por versos e estrofes186 (cf. MOISÉS, 2004). Sendo assim, pode se argumentar que a posição das metáforas no sonetos poderia ter algum efeito sobre a sua metaforicidade. Nos textos analisados aqui, a propósito, noventa e quatro expressões metafóricas ocupam o verso inicial ou o verso final de alguma estrofe. E, dessas expressões, quarenta e uma aparecem em posição pós-verbal, como demonstram os exemplos reproduzidos no Quadro 5, abaixo.

Quadro 5. Exemplos de metáforas em verso inicial ou final no corpus de sonetos Palavras usadas metaforicamente (com sublinhado) Metáfora conceptual “Para que o sonho viva da certeza

Para que o tempo da paixão não mude Para que se una o verbo à natureza” (MORAES, 1954)

PALAVRA É OBJETO

“e logo se enovelam: [estátua] mascarada que sei de sua essência (ou não a tem) jardim apenas, pétalas, presságio” (ANDRADE, 1978)

CONHECER É VER

“Na pura poluição, vive hoje a vida que um dia viveria a Terra inteira Não há pioneirismo sem saída…” (MATTOSO, 2003b)

EVENTO É RECIPIENTE

“Seguida de um olhar não sem malícia e verve Nós todos, animais, sem comoção nenhuma Mijamos em comum numa festa de espuma” (MORAES, 1937)

sentimento em termos de evento*

“Às vezes, a tremer na fraga faiscante

Passa uma folha verde, e sobre a veia ondeante Abandona-se toda, ansiosa pelo mar…” (BANDEIRA, 1966a)

reflexo de luz em termos de fogo*

“Às vezes, a tremer na fraga faiscante,

Passa uma folha verde, e sobre a veia ondeante Abandona-se toda, ansiosa pelo mar…” (BANDEIRA, 1966a)

personificação

“É o louco leão-marinho que pervaga em busca, sem saber, como da terra (quando a vida nos dói, de tão exata)” (ANDRADE, 2013)

personificação

185 [As for the verse paragraph, metaphors occurring in first or last utterances of the paragraph are easier to recognize than are metaphors in mid-paragraph utterances.]

186 A título de esclarecimento, estrofe é cada uma das seções que compõem um poema; verso é cada uma das linhas que compõe uma estrofe (cf. MOISÉS, 2004).

É interessante se comentar, enfim, um último recurso de metaforicidade que também é exclusivo desse corpus: a marcação prosódica. A partir de uma análise acústica em corpora de produções orais de falantes de inglês e de francês, Cloiseau (2007) observa que

metáforas [convencionalizadas] podem ser ativadas pelo falante e sinalizadas como tais pela sua marcação durante o processo metafórico. Essa marcação parece se dar na prosódia, através de padrões de intensidade e contornos de frequência fundamental específicos.187 (CLOISEAU, 2007, p. 128)

Com efeito, de todos os gêneros que identificam os corpora desta análise, o soneto é o único cuja estrutura formal é arquitetada, em princípio, com vistas a uma possível oralização. Embora este trabalho não se proponha a quaisquer investigações a respeito dos aspectos que marcariam a possível oralização dos textos analisados aqui, ele não rejeita o fato de que traços específicos dessa oralização poderiam exercer, em alguma medida, alguma influência sobre a possibilidade de reconhecimento das metáforas presentes nesses discursos. O que se presume, em última análise, é que a marcação prosódica pode, a depender das circunstâncias, constituir um recurso provável de metaforicidade nos textos que compõem este corpus. Enfim, para uma visão geral dos levantamentos feitos nesta análise, são apresentados, desde agora (cf. Quadro 6), além dos aspectos que identificam os corpora abordados, os resultados relativos à ocorrên- cia de expressões metafóricas e aos recursos de ativação de metaforicidade

Quadro 6. Densidade metafórica e recursos de metaforicidade nos corpora

Corpus Gênero Textos Palavras Metáforas Densidade Recursos

Anexo A soneto 8 765 168 21,96% não convencionalidade

diretividade saturação posição marcação prosódica

Anexo B bula 8 13.331 2.011 15,08% saturação

repetição

Anexo C resumo 8 1.136 187 16,46% saturação

repetição

Anexo D capa 8 287 61 21,25% não convencionalidade

saturação posição mídias visuais

187 [Metaphors may be brought back to life by speakers and signalled as such by means of an emphasis on the metaphorical process itself. (…) This seems to be signalled by prosody, through specific patterns of intensity and fundamental frequency contours.]