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A Vida em Abrigo: um estudo sobre práticas sócio-educativas entre educadores e crianças abrigadas

1 1 O ABRIGAMENTO: DA EUROPA AO BRASIL

A historiografia brasileira, até fins da década de 1980, pouco se ocupou de questões sobre acolhimento de crianças. Ela sempre esteve atrelada a modelos de fora, de Portugal inicialmente, que, por sua vez, adotou modelos aperfeiçoados de outros países da Europa, principalmente da Itália e França. Países que, no

dizer de Marcílio (2006), “São protótipos de assistência de crianças sem família, no Antigo Regime europeu até o século XIX” (p. 13).

A autora faz o que ela denominou de arqueologia e trajetória sobre o fenômeno ‘criança’, focando a história do abandono e, consequentemente, o abrigamento de crianças no Ocidente e no Brasil.

Abandonar bebês é um fenômeno de todos os tempos, pelo menos no Ocidente”, diz Marcílio, e se nos apresenta o fenômeno transcorrido em praticamente todas as grandes civilizações desde a Antiguidade:

No Código babilônico de Hamurabi (II milênio A.C.). a primeira referência sobre a sustentabilidade da lei, diante da responsabilidade do abrigamento e adoção de crianças:”Se um homem tomou uma criança para adotar com seu próprio nome e a educou, esse filho adotivo não pode ser reclamado”19

Na tradição judaica, dois fortes exemplos de abandono e abrigamento, desta vez, sob sustentabilidade religiosa, aparecem no Antigo Testamento: o caso de Ismael, filho de Abraão e de sua escrava Agar. Abandonado pelo pai, Deus o salva, e promete fazer da descendência de Ismael, “um grande povo”. (Gen.: 21,8- 23); o segundo exemplo, o caso de Moisés, abandonado num cestinho de vime à beira do Nilo, acolhido pela filha do Faraó, tendo como mãe-de-leite sua própria mãe consangüínea. (Gen.: 25, 12-6).

Histórias semelhantes vão acontecer por todas as nações ocidentais, inclusive no Brasil.

O poder dos pais era absoluto sobre os filhos, tanto na Grécia Clássica como na Roma Antiga. Era consenso na Grécia que os bebês nascidos disformes deveriam ser ‘dispostos’20. Por outro lado, foi estabelecido o instituto da adoção para os casais que não podiam ter filhos. Em Roma, o aborto era legítimo, o infanticídio e a venda dos filhos como escravos era admitido. Quanto ao abandono de crianças,

os pais deixavam-lhe sinais para futuras identificações, no caso de terem intenção de reaver a criança. Pedaços de

19 Goody,Jack. Adoptio in Cross-Cultural Perspective. Comparative Studies in Society and History, II: 55-78,

jan. 1969. In: Marcilio, p. 21.

madeiras, ou metades moedas, para tanto partidas, por exemplo, eram deixados junto com o bebê na hora de abandoná-lo” (Marcílio, p. 23).

Essa “marca” seria preservada dos tempos de Roma e por toda a Europa até fins do século XIX e realizada, também, no Brasil colonial.

Mas, foi em Roma que se regularizou, pela primeira vez, o direito de abrigamento e adoção, uma vez que, nos costumes romanos, os laços consangüíneos tinham pouca importância. O abrigado recebia o nome de família do pai adotivo, mesmo que fosse filho de escravos.

A Igreja, de sua origem à Idade Média, sempre tratou a pobreza extrema com condescendência. Há a histórica referência de que Santo Agostinho era pai de uma criança ilegítima e demonstrou certa resignação ante o abandono de crianças; “outros patriarcas da Igreja como São Basílio de Cesaréia, São Gregório, São Jerônimo e outros, escreveram sobre o assunto, fazendo apologia da caridade em relação ao enjeitado” (idem).

A atitude da Igreja tornou a ação do abrigamento irresoluta em fins do século V. Os pais não tinham mais o direito de reclamar seus filhos enjeitados, depois de dez dias de abandono, sob severas penas. Aqueles que abrigavam crianças tinham garantias e proteção para mantê-las consigo.

Institui-se a apologia da caridade na Idade Média entre os religiosos e a sociedade civil. Surgem os mosteiros rurais e nas pequenas cidades, principalmente dos padres e monges beneditinos e franciscanos, que deram lugar de destaque ao abrigamento e acolhida de crianças de todas as idades, nem sempre órfãs. Os mesmos assumiam o papel de pais de criação ou pais espirituais.

Esses abrigamentos aconteciam, também, para as meninas, desde tenra idade. Era comum os pais encaminharem seus filhos a mosteiros (no caso de meninos) ou conventos (no caso de meninas), sem serem órfãos ou pertencentes a famílias mais pobres. Ali permaneciam como residentes, estudavam, aprendiam ofícios, acabando, em muitos casos, por fazer parte da ordem religiosa. Exemplificando:

Dava Sobel (2000), na obra “A Filha de Galileu”, fazendo um levantamento biográfico da vida de Galileu Galilei, conta que suas duas filhas foram encaminhadas a um convento franciscano pelo próprio pai, talvez para livrá-las dos perigos da Inquisição. A mais velha contava treze anos de idade e a mais nova, nove anos; ali permaneceram enclausuradas para o resto de suas vidas.

Quanto à sociedade civil, não abrigar os filhos alheios encontrados em abandono, passou a ser uma grande impiedade. Abrigamentos individuais e coletivos são atos estimulados e se registram na história, dos nobres aos burgueses. Fundam-se pequenos hospitais, sociedades de socorros mútuos, confrarias, que acolhiam doentes, crianças e idosos e, recebiam indulgências por isso.

Estas associações e confrarias, no séc. XII, tornam-se instituições oficiais de abrigamento e proteção à infância órfã ou abandonada, começando, então, a fase da caridade pública; eram controladas tanto pelo poder real como pela Igreja. Ocasionalmente, as crianças eram abrigadas por famílias; viam nelas uma complementação para a mão-de-obra familiar.

Durante a Época Moderna, a partir do século XVII, generalizou-se na Europa o sistema da Rodas21 de Expostos que já vinha acontecendo desde a Idade Média. A pobreza crescia vertiginosamente, devido à evasão crescente das pessoas do campo para as pequenas cidades.

Mas uma ordem religiosa se destaca, criando uma organização voltada para abrigamentos, que visava, também, proteger as crianças no plano material e sanitário: A Companhia das Filhas de Caridade, da obra de São Vicente de Paula. As Irmãs Vicentinas eram responsáveis, inclusive, pela educação das crianças, moral e religiosa, além de receberem treinamento artesanal, tanto meninos como meninas.

Sobre os seus destinos, ou permaneciam nos mosteiros ou conventos - principalmente as meninas para protegê-las da vida desafortunada – ou eram

21 A “roda” era um mecanismo originário da Idade Média, que tinha a forma de um tonel giratório que unia

a rua ao interior do hospital. As Casas da Roda foram as únicas instituições de auxílio a recém-nascidos no período colonial. Cabe lembrar que os Colégios Jesuíticos e os Recolhimentos de Meninas Órfãs recebiam crianças com sete anos ou mais”. (Venâncio, notas de rodapé, p. 15).

encaminhadas a trabalhos domésticos nas casas de família e serviços com funções artesanais.

No século XVIII, o abandono de crianças em instituições de abrigo acabou por fazer parte dos costumes europeus.

Marcílio nos relata o seguinte fato:

Jean Jacques Rousseau declarou enfaticamente que escolheu, deliberadamente sem o menor escrúpulo, a solução de abandonar seus cinco filhos, tidos com sua concubina Thérèse. Foi ele que a convenceu da utilidade da instituição de caridade para criá-los, como ele próprio afirmou em suas “Confissões”. E Rousseau concluiu: “Pensando bem, escolhi para meus filhos o melhor, ou o que acreditava ser o melhor. Eu gostaria de ter sido criado e alimentado como eles foram”22 Rousseau nunca soube o destino de seus filhos” (Marcílio, pp.72-73).

Neste período histórico, além do movimento Iluminista, novas teorias influenciam as práticas de abrigamento. O utilitarismo, por exemplo, via com horror a alta mortalidade dos expostos – “cidadãos úteis que a pátria não deveria perder”- como também o higienismo. Viver em péssimas condições de higiene e saúde era uma realidade, principalmente nos abrigos públicos. Registra-se até que recebiam uma muda de roupa uma vez por ano. O higienismo alardeava que “o exposto deve ser um instrumento de progresso, um agente a serviço do bem e do Estado”. Mas, registra-se a utilização das crianças como cobaias de novos experimentos médicos.

Por outro lado, este é o momento da filantropia23. A primeira obra de beneficência livre, sem ligações religiosas foi fundada em Paris, e se denominou “Societé Philanthropique de Paris.

No século XIX, o abandono de bebês generalizou-se, gerando discussões entre as autoridades responsáveis e novas políticas. Pela crescente dificuldade em manter administrativa e financeiramente as instituições de abrigamento, foram

22 Rousseau, J. J. Confessions. Paris. Garnier, 1980, p.403. In Marcílio, p. 72-73.

23 O termo filantropia é um neologismo francês, do início do século XVIII, tendo sido Fènelon o primeiro a

incentivadas alocações familiares ou de subsídios financeiros e assistenciais às mães pobres para desestimulá-las a abandonarem seus filhos.

Multiplicaram-se as sociedades protetoras da infância, que tratavam de levar às famílias das camadas populares, modernos métodos de criação e educação das crianças. Surgem, também, programas de capacitação profissional, isto é, instituições de abrigamento introduziram ensino profissionalizante para meninos e meninas, devido à proliferação de indústrias.

O higienismo desenvolveu programas para diminuir a mortalidade infantil, pois, desde os períodos históricos anteriores, era grande a proliferação de doenças infecciosas e epidemias, principalmente entre as camadas populares e a falta de higiene no interior das instituições de abrigamento.

O modelo filantrópico não morreu na Europa no século XX. Público, religioso e privado convivem. Passos importantes, embora lentos, foram dados, como as leis de adoção plena, que só surgiram depois da Grande Guerra mundial; da Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) adotada pelas Nações Unidas e, em 1985, a Convenção da ONU pelos Direitos da Criança, chegando-se à atual consciência de que a criança é sujeito de Direito.