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4.2 – CONHECENDO A DINÂMICA DO ABRIGO E SEUS PROFISSIONAIS

A Vida em Abrigo: um estudo sobre práticas sócio-educativas entre educadores e crianças abrigadas

4.2 – CONHECENDO A DINÂMICA DO ABRIGO E SEUS PROFISSIONAIS

O passo inicial da pesquisa foi o planejamento da entrevista com os cuidadores da casa-lar. Calculei a duração de tempo, fraseei uma forma clara de me apresentar ao entrevistado, colocando no papel algumas questões de meu interesse ( Ver anexo V).

O fato de ser esta uma instituição ‘nova’, isto é, desconhecida para a pesquisadora, considerei importante adotar momentos de ‘falas livres’, para propiciar um clima de descontração entre entrevistador e entrevistado e representar uma forma de incentivo à descrição e relato de situações vividas pelo adulto cuidador no contexto da Casa-Lar.

É um sobrado geminado, muro pintado de azul celeste e branco, nota-se que é recém pintado. Na calçada, algum material de construção, um portão velho de madeira estava apoiado no muro, possivelmente para ser descartado. Adentrei- me por um portão de alumínio.

Agradeci ao Sr. Nelson por me receber. Entramos pelo pátio externo da casa, dirigimo-nos a uma pequena sala, seu escritório; espaço não muito grande: uma mesa, um armário com pastas e papéis, computador. Antes de iniciarmos a entrevista, o Sr. Nelson ofereceu-se para mostrar-me as dependências da ‘Casa de atividades”. Alguns locais estavam em final de reforma. A casa contém cômodos amplos, duas salas no piso superior, cozinha, escritório. Uma das salas estava sendo provisoriamente ocupada por um estoque de produtos alimentícios.

Enquanto caminhávamos ele relatava sobre os motivos da reforma: principalmente para oferecer às crianças do abrigo e da comunidade uma sala especial para o aprendizado da informática. Nesta, estavam sendo instalados alguns computadores e estantes para a biblioteca de livros e material virtual. No

momento, estava sendo usada pelo pedagogo em atendimento a duas crianças. Cumprimentei-o, trocamos algumas palavras, sem interromper o seu trabalho. Ele comentou que as crianças teriam prova à tarde, precisavam de um reforço, não foram ao passeio.

Mais duas salas seriam destinadas ao atendimento e acompanhamento psicológico, pedagógico e assistencial, das crianças e de seus pais de origem, quando necessários. Para essa reforma o abrigo recebeu financiamento de uma fundação coligada a uma empresa automobilística da região.

A psicóloga é voluntária, atende as crianças (e alguns de seus familiares) duas vezes por semana pela manhã, atua por mais de cinco anos na instituição. Esse trabalho culminou em uma tese de doutorado na USP, defendida no mês de maio/2009. Costuma atender algumas famílias de origem, “quando vale a pena”, diz o cuidador. Registrei suas palavras mentalmente, com certa curiosidade; sugeriram-me que havia algo oculto no ar. Haveria situações em que não valeriam a pena atender os pais de origem? Nada comentei. No momento, era importante o fluir de informações.

Voltamos ao seu escritório. Agradecimentos por estar nos recebendo; entregamos o termo de consentimento de pesquisa (ver anexo VI), perguntando sobre a possibilidade de gravar o nosso encontro. “Sem problemas”.

Para Arendt (2008), “todo o ato que se inicia, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer” (p. 191). Assim, nos identificamos, anunciando a finalidade de nossa pesquisa nos termos:

- “A finalidade de estar aqui, como lhe falei ao agendar esta entrevista, é desenvolver uma pesquisa que é parte de um curso que estou fazendo na PUC de São Paulo. Pretendo verificar como é a vida em abrigos, como ocorrem as atividades de acolhimento e sócio educação das crianças; colher informações de como é o cuidar das crianças e o que consideram importante para a educação das mesmas. O objetivo desta pesquisa é verificar como ocorre a interação entre adultos cuidadores e crianças e desenvolver um estudo voltado a destacar a convivência familiar como condição humanizadora de preservação e qualidade

vital para todo o ser humano. Seu depoimento é importante, o senhor deve ter muitas experiências a nos contar nesse sentido”.

No momento seguinte, pedi autorização para gravar nossas “falas”. Permissão concedida..

Estranhei o fato de haver no “ar” um certo silêncio. O entrevistado esclareceu-me que as crianças estavam em um passeio ao zoológico, acompanhados pela assistente social e o pedagogo. Há passeios programados duas vezes por mês, segundo informação. Assim, pudemos conversar, o Sr. Fernando e a pesquisadora sem muitas interrupções.

A Casa Lar foi fundada em 1998, por iniciativa de sua esposa, D. Alice, que trabalhara anteriormente como voluntária em outras instituições que cuidam de crianças. Decidiu abrir a sua própria Casa-Lar, em face de sua larga experiência adquirida e “gostar do que faz”. Mobilizou algumas pessoas influentes da comunidade e ambos, D. Alice, graduada em Pedagogia e o Sr. Nelson em Administração, decidiram iniciar o processo documental no sentido de se criar uma abrigo de crianças.

“O que mais motivou a abertura do Lar foi a vontade de minha esposa, porque realmente ela gosta de cuidar de criança. Ela adora criança. Por ela, a Casa tinha vinte, trinta crianças. Ela gosta da casa cheia, porque ela vem de família de muita gente. A família de minha esposa sempre teve muita criança, muita gente. Muitas vezes chegamos a ter vinte e cinco, trinta crianças, você vê, ela é uma loucura!!.”

Uma pequena lembrança da sua história:

“Eu assumi a causa com ela, não sei se felizmente ou infelizmente! Eu me lembro que os abrigos que ela trabalhava eram pequenos, você chegava, as crianças muito mal vestidas, muito mal alimentadas, muito mal em tudo. Ninguém se importava se estavam indo à escola, como chegavam,, como eram acompanhadas na escola. Então, ela resolveu montar esse trabalho e tratar as crianças de uma forma diferenciada.”

Hoje, D. Alice é sua dirigente. “É ela que administra” a vida das crianças, dos bebês”, diz ele, enquanto que eu sou tesoureiro,administro os gastos”.

Complementando o relato de sua trajetória de vida, inteirei-me de que o casal tem três filhos biológicos e três adotivos, além de netos. Fluíram também as informações:

Este espaço aqui”, completou o Sr. Nelson, referindo-se à ‘casa de atividades’,

“ foi cedido por Dna. Lourdes e o Sr. Antonio. Eles nos cederam esse espaço para eu transformar minha residência numa residência verdadeira para as crianças. Aqui, destinamos para as crianças serem atendidas, ter espaço para brincar. Estamos reformando tudo aqui, aos poucos, conforme podemos. A Fundação Volkswagen nos financiou o andar de cima”.

Conduzidas pelo Sr. Nelson, as crianças permanecem pelas manhãs na casa de atividades (com exceção dos bebês que permanecem sob cuidados de D. Alice), onde são atendidas por profissionais como o pedagogo, a psicóloga, a assistente social, além de voluntários; ali fazem suas tarefas escolares, brincam.

Já passaram sob os cuidados de D. Alice mais de duzentas crianças, sendo que 70% retornaram às famílias de origem e, aproximadamente, 15% foram encaminhadas a famílias substitutas para assegurar-lhes o direito à convivência familiar, como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)66. Hoje, a

Casa- Lar está atendendo vinte e três crianças, mas, muitas vezes, atendem um número de crianças maior que a sua capacidade.

Esses comentários não foram feitos aleatoriamente. O entrevistado aponta- me para um quadro existente à minha esquerda, em uma das paredes da sala em

66 O Artigo 19 do ECA diz que: “

Toda a Criança ou Adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”. Da família natural o artigo 25 diz que”entende-se por família natural a comunidadeformada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Da família substituta, o

Artigo 28 trata: “A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos da Lei. O

parágrafo 2 complementa: “Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade a fim de evitar ou minorar as conseqüências decorrentes da medida”

que nós nos encontrávamos. Ali havia o registro dos nomes de crianças que passaram pelo abrigo, o tempo de permanência, os encaminhamentos oferecidos, sinalizando, também, os seus destinos.

A idéia do casal é oferecer algo diferenciado às crianças, “com cara, tamanho e jeito de casa”; como ele diz, mas isso requer uma certa “adaptação ao que a vida oferece:

“A gente faz o possível dentro do possível. A gente faz o possível dentro daquilo que a gente tem como captação de recurso. Nós optamos, de 98 até o ano de 2008, viver quase que sem recurso financeiro público. É muito difícil viver de recurso público, quase nunca tivemos ajuda pública. Sempre trabalhamos com doações e graças a Deus os resultados tem sido bons”.

Mostrando-me documentações referentes a propostas que justificam a existência do abrigo, o Sr. Nelson aponta-me alguns referenciais que se lê:

“Objetivos do Abrigo: proporcionar às crianças/adolescentes em situação de risco pessoal e social proteção provisória e excepcional, ressaltando os conceitos de moradia, organização, educação, higiene, entre outros. Primando pelo caráter residencial, contribui, assim, para a participação e inserção das crianças/adolescentes na comunidade, incentivando a preservação dos vínculos familiares ou promovendo a integração das crianças com famílias que se propõem ao regime de adoção”.

“Metas: propor uma nova ação, rompendo com o modelo tradicional antigo que mantinha atendimentos massificantes, oferecendo qualidade de vida às crianças adolescentes com atendimentos personalizados e em pequenos grupos”.

Resta-nos verificar, então, como acontece e/ou como se constitui a nova ação referida acima e como é o atendimento personalizado à criança/adolescente.