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A Vida em Abrigo: um estudo sobre práticas sócio-educativas entre educadores e crianças abrigadas

4 16 A DEVOLUTIVA DE D ALICE.

Chego no Lar dias depois (08/06), ansiosa por mostrar o material coletado à D. Alice.

O portão estava semi-cerrado, fui andando pelo corredor lateral da casa, aos latidos anunciadores de uma nova presença: um cãozinho. Com certeza, ele havia espantado um gato cinza rajado, bem daquele estilo “vira-lata”, que andava cautelosamente sobre o muro. Seu olhar “nos” acompanhava lá de cima, desconfiado e assustado. Com andar cauteloso, pulou no telhado da casa vizinha desaparecendo do alcance de “nossas vistas”.

Não pude deixar de pensar, como é difícil ver esta cena nos dias de hoje da capital, “fechada” em seus muros concretos de longo alcance!

Minha memória foi mais longe, ao tempo em que Mercedes criança tinha um gato, exatamente...“igual?” ( haverá algo igual a outro?) vamos então dizer, semelhante a este gatinho assustado que, na casa paterna do interior, adorava dormir sobre os livros da carteira de “sua dona”, quando esta lhe dava sossego. Quantas distrações e enlevos acompanhavam o movimento tranquilo de sua cauda, de um lado para outro, como se estivesse a me provocar...

A sensibilidade do gato nos versos de Quintana:

“O gato chega à porta do quarto onde escrevo. Entrepara...hesita... avança... Fita-me. Fitamo-nos. Olhos nos olhos... Quase com terror! Como duas criaturas incomunicáveis e solitárias Que fossem feitas cada uma por um Deus diferente.” Este episódio “descuidado” fez com que eu olhasse mais atentamente aos muros da casa e notasse que lá estava registrado um mural de pinturas que fogem do convencional.

D Alice aproxima-se, cumprimentamo-nos: “São pinturas das crianças”, diz ela. “Arte do Nelson!” Ele propôs aí, já faz tempo, que elas pintassem os seus sonhos”! Não pude deixar de examinar mais apuradamente os desenhos ali registrados, já um tanto manchados pelo tempo. A grande maioria fazendo referências a ambientes familiares (Ver em anexo). D. Alice ainda completou:

-“É um prato cheio para um psicólogo, não é?

-“ Sem dúvida!, respondi-lhe, conforme os examinava. Ela falava um pouco sobre os “autores” das pinturas mas, com exceção de Anita, eles não estão mais no abrigo.

O frio estava forte neste mês de junho. O cafezinho oferecido foi muito bem-vindo; sentamo-nos na cozinha para degustá-lo.

Como anteriormente mencionado, esta visita durou aproximadamente duas horas e meia. Entreguei à D. Alice uma cópia dos dados coletados para sua apreciação, constituintes da transcrição de fita acrescidos dos trechos assinalados e intercalados pelos registros de minhas observações e impressões. Conforme a leitura de alguns trechos, ela ia acrescentando ou alterando alguns pontos que achava necessário, discutimos algumas impressões. Na sequência, eu acompanhava sua leitura em uma outra cópia, fazendo acréscimos e alterações que ela havia pontuado e incluía outras que surgissem no momento de “nossa”

leitura. Em outras palavras: nós revimos interativamente o texto, recompondo e ampliando as considerações feitas por ela e por mim a partir de sua entrevista.

Após a “revisão” interativa do texto, que eu classificaria como um verdadeiro exercício de intertextualidade, ambas, entrevistadora e entrevistada, permanecemos alguns momentos em silêncio. Seus olhos fluíam no texto, examinando-o, reexaminando-o. Percebia-a reflexiva, respeitei esse momento.

Em seguida, comentou ter apreciado muito o trabalho, pelo fato de que foi possível identificar situações e contextos que ela precisava dar mais atenção “e rápido, bem! Caiu mesmo a ficha”. “Essa leitura me revelou muita coisa”, disse- me ela.

Pedi-lhe permissão para compartilhar “com ela” o significado de suas reflexões: - “Em que sentido? Perguntei-lhe.

“Olha, Mercedes, o caso da Anita e do Jonathan! Eu preciso mudar algumas coisas. Você descreveu exatamente o que falei, mas a Anita, eu falei dela, sob meu (frisando a palavra) ponto de vista, o que eu percebo dela, mas e ela?...Só está enxergando medos! Isso aqui me fez ver o outro lado da medalha” dizia, gesticulando o texto em suas mãos. “Ela tem medo do que pode acontecer com ela, do seu futuro, isso até eu estou cansada de saber. Mas eu não posso ficar inerte, tenho que ajudá-la com o futuro dela, não posso deixar que as coisas aconteçam, por si!

Tive vontade de dizer novamente “em que sentido?” ou como assim? Permaneci calada. Ela completou o seu depoimento, demonstrando o seu olhar atento para os modos de ser instáveis da adolescente:

“acho que eu vou falar com a Zuleika (a psicóloga). Nem sempre a gente teve essa facilidade de ter uma psicóloga que ajude. A gente se preocupa com os pequenos, com a cabeça deles, mais a Anita tá precisando de uma orientação. Ela anda chorando muito, ela pensa que eu não percebo! Ela precisa se afirmar, abraçar alguma coisa com garra e com gosto!”

Não posso deixar de registrar que me senti feliz por esse depoimento, por dois motivos: Em primeiro lugar, ele veio ao encontro do propósito que busco nesse trabalho, de verificar como os adultos cuidadores compreendem suas práticas sócio-educativas. Nesse momento, registro o cuidar comprometido, preocupado com a constituição da identidade da adolescente. Essa compreensão teve repercussões no modo de ser da educadora. Compreensão que não é um simples entendimento de algo ou de uma situação, mas compreensão como “ato de pensar que busca os significados dos acontecimentos da vida e responde às urgências da vida”. (Critelli. Reeducando o Pensar. Ano III) A entrevistada ainda

continuou, de uma forma bastante sentida em seu modo de pensar:

“Ela precisa encontrar o que gosta de fazer e mergulhar de cabeça nisso. Se ela é capaz de decidir muita coisa diante do juiz, ela pode decidir isso também. Precisa de estímulo para se soltar, saber que tem gente apoiando ela. Ela precisa entender que esse processo depende dela, de seu empenho, de fazer escolhas e cumpri-las até o fim!

O segundo motivo é que percebi ter em mãos o registro de um encontro interpessoal com características de entrevista reflexiva. Nesse encontro face a face, a reflexividade ocorreu em duplo movimento: no texto, a expressão de minha compreensão como entrevistadora, do que ouvi da entrevistada, do que refleti e absorvi do seu contexto de vida. O ato de submetê-lo à compreensão da entrevistada, permitindo que ela acrescentasse ou modificasse livremente o texto, motivou-a a refletir sobre suas próprias ações e abrir-se para novas atitudes importantes ao processo educativo das crianças. Digo, sim ‘crianças’, no plural, porque de Anita, suas reflexões foram além, para a história de vida de Jonathan:

Sabe, Mercedes, vou te falar do caso do Jonathan. Quando ele chegou aqui, na hora do banho ele já ia dizendo que não ia tomar banho com ninguém, que ele só tomava banho de cuequinha. Os meninos da mesma idade vão tomar banho juntos, ele ficou assustadíssimo de ver aquilo, todo o mundo nu, tomando banho junto. Aí ele perguntou se podia ir sozinho, eu disse que sim, mas só tomou banho de cueca. E

pra trocar de cueca, vestir? Nooosssa! Que luta! Se enroscava todo na toalha”...

Diante do fato, a providência tomada,

...“aí eu falei para o conselheiro, veja o caso do Jonathan que tem ‘abuso’ aí. Um menino de sete anos não querer tirar a roupa, nem na minha frente, nem sozinho nem com ninguém! Alguma coisa tem! Não deu outra: ele sofreu abusos também”. E as atitudes que a entrevistada mesma ponderou que deveriam ser tomadas:

“Tem horas que a gente vê tristeza no rostinho dele. Quando ele chegou era muito deprimido, triste, ele está se soltando um pouquinho, mas ainda é um menino muito triste”.

- “Ele não passou pelo atendimento de Zuleika?” Perguntei-lhe.

“Sim, mas quando chegou aqui! Ele é bom menino, a gente relaxou, na verdade. Mas, como está a cabecinha dele? É uma criança! Como pode superar isso sozinho?”

Nessa afirmativa, a educadora explicita claramente o compromisso assumido no cuidar, do seu mundo, do mundo da criança, no ato educativo. Concluindo, ela pondera:

Vou falar com a Zuleika para atender ele também. Acho que eu mesma vou precisar de orientação pra cuidar desses dois!” Como nos diz Quintana (2009),

“As coisas que não conseguem ser olvidadas continuam acontecendo. Sentimo-las como da primeira vez, sentimo-las fora do tempo, nesse mundo do sempre onde as datas não datam. Só no mundo do nunca Existem lápides...” Ao examinar suas falas, a entrevistada não modificou o sentido de suas ideias centrais o que demonstrou certa coerência entre suas ações e modos de pensar. Ao refletir sobre suas ações, desvelou-se para ela a necessidade de “intervir” no processo vivencial e educativo das crianças, requerendo de si mesma

uma mudança de atitude mais condizente ao fenômeno que se mostrava ao seu olhar e sentir.

No que se refere à questão colocada no momento da entrevista sobre famílias acolhedoras, ela complementou:

“Mas existe uma outra realidade, também: muitas vezes, as famílias acolhedoras acabam por criar vínculos afetivos com a crianças e manifestam o desejo de adotá-la definitivamente. Embora o Nelson apresente ao juiz o pedido de adoção do casal, as habilitações e documentações necessárias, o juiz não autoriza a adoção sem consultar o ‘cadastro nacional’ de adoção para vem que está em primeiro lugar “na fila”, dependendo do perfil da criança. Isso já aconteceu muitas vezes. Casais, praticamente estranhos, virem retirar a criança, e o pior, pagando quantias elevadas para advogados. A criança sai aos berros daqui. Depois estranham se o número de “devolução” está alto. A criança não é mercadoria!

Se a preocupação do abrigo é encaminhar a criança a uma adoção respaldada em vínculos afetivos, nem sempre a indicação dos adotantes é aceita pelo juiz. Há uma situação de conflito que valeria a pena ser investigada e estudada, embora não seja nosso intento nesse trabalho: a de investigar “razões” determinantes a favor de um casal de adotantes escolhido “pelo cadastro nacional”, - ainda no dispositivo da Lei que ora entra em vigor, a 12.010 –, excluindo-se o apontado pelo abrigo, que já compartilha de laços afetivos com a criança. Se a criança após os doze anos tem direito a “ser ouvida”- como lhe garantem os dispositivos da Lei -, por que não há respeito às condições mais humanas de crianças de tenra idade que clamam por cuidados mais intensos e afetivos por parte dos adultos?