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A Vida em Abrigo: um estudo sobre práticas sócio-educativas entre educadores e crianças abrigadas

4.7 O CUIDAR QUE SE MOSTRA NO TRABALHO DE D ALICE

A entrevista com D. Alice ocorreu na casa residencial, no período da tarde do dia 12/06, período em que as crianças mais velhas se encontravam na escola. No momento de minha chegada, D. Alice estava cuidando de quinze (15) bebês. Segundo informações colhidas, para esse trabalho específico, ela conta com três auxiliares de enfermagem, que se revezam em folgas e horários alternados. Ela conta, também, com uma auxiliar para serviços domésticos e uma faxineira. Ela mesma se ocupa da elaboração das refeições da casa, o sr. Nelson insiste para que ela contrate uma auxiliar de cozinha, mas ela põe obstáculos, “por gostar de cozinhar”.

O Sr. Nelson me recebeu. Comenta que “estava em casa por aqueles dias devido à reforma do telhado da ‘Casa de Atividades”.Entramos pelo corredor lateral da casa, que dava acesso à cozinha. Sentamo-nos à mesa, havia um computador ligado. O Sr. Nelson justifica que havia conduzido as crianças até a escola poucos minutos antes, retornara ao Lar para realizar alguns relatórios, pois, “a reforma da Casa de Atividades está brava, muito pó, inclusive reformando telhado”, dizia-me.

A casa-Lar residência é um sobrado espaçoso, bastante ensolarado apesar de ser cercado por muros nas laterais. Suas paredes externas e os muros são pintados de amarelo. Localiza-se em um bairro de classe média em Santo André, não muito distante da “Casa de Atividades”.

Ao fundo, há uma espécie de edícula, separada do corpo da casa por um quintal quadrado de piso em lajotas; no momento em que cheguei, estava sendo lavado por uma senhora, que me cumprimentou, sorrindo. Trata-se de uma auxiliar doméstica de Dna. Alice.

Após algum tempo, o Sr. Nelson manifestou o desejo de me mostrar as dependências da casa, enquanto aguardava D. Alice que, com uma de suas auxiliares, estava cuidando dos bebês no andar de cima.

A cozinha é ampla, formada por dois ambientes separados por um balcão. De um lado, alguns armários, geladeira, fogão e, no centro, uma mesa quadrada e alguns banquinhos; de outro, uma mesa retangular com várias cadeiras, armários e uma máquina de costura em um dos cantos.

Sobre esta mesa retangular, havia vários papéis, um computador. O Sr. Nelson comentou que estava terminando um relatório sobre o recém-chegado’ um bebezinho que lhes fora encaminhado dois dias antes pelo Conselho Tutelar.

Da cozinha, nos dirigimos até a sala por um corredor, passando por dois banheiros localizados nas laterais do mesmo.

A sala, também, é dividida em dois ambientes. Três crianças estavam dormindo em dois sofás, cobertas por mantas. Aquela tarde do mês de junho estava muito fria; a televisão ligada em um programa infantil, com pouco volume.

Este casalzinho de irmãos está ha duas semanas aqui, estão se adaptando, na semana que vem vão à escola”, cochichou –me ele, para não acordá-las. “Estão fazendo o sono da tarde”!

Suas fisionomias estavam tranquilas naquele sono reparador.

Mais à frente, havia uma mesa de sala de jantar, oito cadeiras. À direita, via-se uma escada e, sob esta, mais um sofá de dois lugares.

- “Mercedes, olha aqui!, disse-me o Sr. Nelson. Olha para esta sacola. O que você vê aí?

Ele passou-me a sacola. Era de papel, quadrada, nas laterais a foto estampada do planeta Terra sob uma pomba branca abrindo suas asas. Acima, do lado esquerdo, as palavras escritas: “Tudo posso Naquele que me fortalece!” Não entendi o que ele queria me passar, de imediato.

-“Você sabe, não é? É um salmo bíblico, Agora vamos subir, você vai ver o que tinha dentro desta sacola, o que tinha aí dentro!

Subimos as escadas até um pequeno hall. Do lado esquerdo, o quarto com três beliches, era dos meninos. As paredes estavam pintadas de azul claro e suave, camas arrumadas e sobre as mesmas, alguns brinquedos chamavam a atenção pela diversidade de cores, dando bastante colorido ao ambiente.

-“Este quarto é dos meninos”, disse-me ele. Mais à frente, um outro quarto, presumi ser das meninas. Havia, também, beliches com colchas coloridas estampadas, bonecas, estojos e demais utensílios infantis.

- Minha filha menor também dorme aqui com elas..Ela não gosta muito, queria ter um quarto só para ela.

Ambos os quartos são arejados, limpos, eu diria, bem organizados.

Dna. Alice nos chama de um terceiro quarto, para lá nos dirigimos. Este é mais amplo, arejado. Havia ali vários berços, alguns bebês dormiam, enquanto Dna Alice fazia a higiene em um deles, acabara de banhá-lo.

Cumprimentamo-nos, seu sorriso era franco, olhar de certa doçura. Havia um aroma no ambiente, típico de quem tem nenê dentro de casa. Um misto de sabonete e óleos especiais. Ela entregou a criança aos cuidados de sua auxiliar, dirigimo-nos a um outro quarto, do casal. O Sr. Nelson aponta para um bebezinho

que, possivelmente, deveria ter nascido prematuro, e estava dormindo bem tranqüilamente em uma cadeira para bebês sobre a cama de casal.

- “Veja, Mercedes, o conteúdo da sacola que eu te mostrei! Esta criança foi abandonada dentro dela, na calçada do prédio do Conselho Tutelar! Veja que tamanhinho! Tem um mês e meio!”

Não pude conter o meu espanto e certo inconformismo diante da triste realidade já vivida por esta criança, em seu primeiro mês e meio de vida. Olhei-a, longamente, reparando em seus traços delicados, mãozinha muito pequena, dormia tranqüilamente. Aparentava fragilidade, ...será?

Estávamos em uma tarde fria de inverno; havia um “ar” de paz e “isolamento” contagiante naquele quarto. Convidava-nos ao silêncio. D. Alice se aproximou do bebê, ajeitou o pequeno cobertor que o envolvia, acariciando-o suavemente no rosto, num gesto de acalento. Observei aquele gesto e nos retiramos, sem trocar palavras.

Antes de descer as escadas, a cuidadora faz algumas recomendações sobre o “recém-chegado” à sua auxiliar, encostou a porta e nos dirigimos ao local onde deveria acontecer nossa entrevista: a cozinha.

Quando ali chegamos, o Sr. Nelson recolheu seus materiais, levou-os até a mesa da sala para continuar os afazeres administrativos do Lar, os relatórios das crianças, deixando-nos “livres” para nossa conversa.

Sentamo-nos à mesa. Gentilmente, D. Alice nos serve um cafezinho, quando, então, um pequeno movimento de pés ressoa no chão. As três crianças que estavam dormindo na sala passam por nós. Eram dois meninos e uma menina, que não tinham mais que quatro ou cinco anos. Sorri às crianças, dizendo-lhes um “oi!” Fui logo interrompida pela cuidadora:

- “Gente, como é que se diz? Vocês não vão dizer boa tarde?”

Um “boa tarde!” muito tímido “soou no ar”, quase como um sussurro. Um dos meninos, bastante parecido com a menina, procurava se esconder por trás dela, sem deixar, porém, de nos olhar.

- “Estes são irmãos, Mercedes. Chegaram aqui há uma semana”. A cuidadora comenta, e voltando-se para as crianças: “Sentem aí na mesa pra tomar seu lanche”. As crianças se sentam à mesa contígua, a auxiliar as serve de leite, café, fruta, pão, manteiga.

Adoto com a entrevistada os mesmos procedimentos descritos na entrevista anterior. Peço permissão para gravar a nossa fala, apresentando-lhe o termo de consentimento da entrevista para que assinasse. Falo sobre a finalidade de estar no abrigo, os motivos e o interesse da pesquisa, nos termos:

“A finalidade de estar aqui é fazer uma pesquisa que estou desenvolvendo; pretendo verificar o que você considera importante para a educação das crianças que estão sob seus cuidados, como você interage com elas para educá-los, como elas se cuidam. A finalidade é desenvolver um estudo voltado a destacar a importância da privacidade familiar como um fator de preservação e qualidade vital para todo o ser humano. Seu depoimento é importante, pois, cuidando de crianças por tantos anos,você tem muita coisa para nos passar, muita coisa que você descobriu. Gostaria que você falasse, então, como são as crianças sob seus cuidados.”

Aos poucos, sinto a descontração da entrevistada; ela inicia sua fala, descrevendo um pouco dos cuidados seus em relação às crianças, as condições de como as crianças são estimuladas a se cuidarem e adquirir hábitos de higiene:

“a gente cuida da alimentação, com muito cuidado, eu mesma cozinho; cuida da higiene, procura trabalhar com alguns hábitos adquiridos, alguns a gente tem que reforçar, ensinar pra elas e mudar”... “a gente trabalha primeiro ensinando a elas se cuidar. (...), porque quando elas vêm pro abrigo, elas passam por um processo reeducativo; porque os conceitos de higiene não vêm, educação, zero, de tudo. Não há higiene, postura, disciplina. Com os pequeninos, a gente educa os maiores a gente reeduca mesmo!”

O olhar da entrevistada sobre “aquele que chega” tem múltiplas percepções:

“Cada criança que chega, chega em várias situações. Tem criança que chega agressiva, tem aquelas que vêm passada por muitos maus tratos, geralmente, elas têm comportamentos

muito diferentes. Não vêm, assim, igual, tá?Mesmo em caso de irmãos. A gente tem três, quatro irmãos aqui, um é calminho, outro é revoltado, outro é agitado... onde aí tem atritos.”

A tarefa educativa consiste em cultivar ou adquirir novos hábitos e regras. Mas estas são distribuídas de acordo com a idade cronológica das crianças, acompanhadas por orientação aos deveres e cuidados necessários com a higiene pessoal e com os objetos de uso:

“As crianças, a partir dos três anos, são orientadas para que devem forrar sua cama, não importa que faça mal, mas façam. Têm que chegar, esticar o lençolzinho, forrar a sua cama, depois, na hora que eles estão tomando o café, vou lá em cima, dou uma puxadinha, estico aqui, arrumo ali, e deixo as coisas mais organizadas.. Eles forram a cama, põem o bichinho que eles querem,, põem o chinelo no lugar certo, põem a roupa usada depois do banho no lugar certo..”

Os adolescentes têm outras regras e deveres:

“ As adolescentes são orientadas para lavar sua calcinha na hora que tiver tomando banho; os meninos adolescentes, para lavar suas cuecas, porque ninguém tem obrigação de ficar esfregando cueca “freada”75 nem calcinha “freada”. A gente orienta quando a gente percebe quando uma criança não está sabendo se limpar direito. Aí, eles passam por essa orientação.”