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A Vida em Abrigo: um estudo sobre práticas sócio-educativas entre educadores e crianças abrigadas

O ACOLHIMENTO SÓCIO-EDUCATIVO DA CASA-LAR.

“Diretamente, eu só me recordo de um incidente dos primeiros anos. Talvez também te lembres dele. Eu choramingava certa noite sem parar, pedindo água, com certeza não por sentir sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois de algumas severas ameaças não terem adiantado, tu me tiraste da cama, me levaste para um ‘pawlatsche’ e me deixaste ali sozinho, por um bom momento, só de camisola de dormir, diante da porta trancada. Não quero dizer que isso foi errado, talvez na época não tivesse havido outro jeito de conseguir o sossego noturno, mas quero caracterizar através do exemplo teus recursos educativos e os efeitos que eles tiveram sobre mim. Não há dúvida que a partir daquele momento me tornei obediente, mas fiquei machucado por dentro devido ao fato. Conforme à minha natureza, jamais consegui entender a relação existente entre a naturalidade do ato insensato de pedir-por-água e o extraordinariamente terrível do ato de ser levado-para-fora. Mesmo depois de passados anos eu ainda sofria com a idéia torturante de que o homem gigantesco, meu pai, a última instância, pudesse vir quase sem motivo para me tirar da cama à noite e me levar à ‘pawlatsche’ e de que, portanto, eu era um tamanho nada para ele”. (Franz Kafka: ‘Carta ao Pai’)

‘Carta ao Pai’, um “re-trato” das lembranças de Kafka enquanto ‘si-mesmo’ criança, que os anos foram incapazes de apagar...

Leitura que ilustrou nossas discussões em sala de aula da Prof. Szymanski sobre as concepções de diálogo. Paulo Freire (2005) e Gadamer (2002) fundamentavam a investigativa do que “os pais compreendem por diálogo na relação com os filhos”64. A palavra circulava entre nós, questionando os autores de forma aberta, demarcando diferenças em nossas posições e identidades. Compreendi que Freire propõe um processo educativo pautado na prática

64 Primeiro semestre de 2007. Estávamos planejando um encontro com os pais de uma escola pública de

periferia de São Paulo, para verificar ‘o que os pais compreendem por diálogo’. Um estudo que faz parte de um estudo maior que visa acompanhar a implantação de uma proposta de relação dialógica em diferentes

dialógica como força de mudanças, baseado na experiência pessoal e relacional, capacidade de aprender e intervir, a partir de impressões retiradas do universo vivido, ou seja, na relação que os seres humanos estabelecem com o mundo. Propõe, também, a teoria da ação dialógica e da ação antidialógica, uma vez que busca uma crítica `a educação, como ela vem sendo feita nas instituições educativas.

O diálogo, para Gadamer, é um atributo natural do ser humano que exerce funções bastante diferenciadas em suas condições de vida, em relação. A “incapacidade para o diálogo” (já abordada nesse trabalho) não só nega essa faculdade humana, como impede os seres humanos de se relacionarem uns com os outros.

A “ação antidialógica, a ‘incapacidade para o diálogo’ é fortemente vivida, sentida e expressa em palavras por Kafka (2004) nessa obra, palavras - ele mesmo confessou -, que nunca conseguiu dizer diretamente ao pai, olhando-o nos olhos. Escreveu Carta ao Pai, na certeza de que o destinatário nunca iria recebê- la.

A presença do ‘homem gigantesco’, descrito no verbete acima,foi marcante aos olhos do menino que se via “um tamanho nada para ele”, seu pai;a presença do “eu” antidialógico, dominador” que “transforma o ‘tu’ dominado, conquistado, num mero “isto” (Freire, 2005, p. 166-167), emprenhado, não por um sentimento de conformismo e passividade, mas de denúncia de dor, de inconformidade, de sentir-se incompreendido, de medos, que marcaram o espírito de Kafta-criança.

Ambos os autores (Gadamer e Freire) salientam a importância de se ter disposição de abertura para o diálogo e que o saber ouvir requer uma convivência estreita e interativa. Mas, apontam, também, para as dificuldades de ocorrer um verdadeiro diálogo entre as pessoas. “Diálogo é, para nós, aquilo que deixou uma marca” diz Gadamer (p. 243); mas há situações de vida, como nos mostra Kafta, que marcam e que ficam ‘esquecidas’ embora nem sempre ocultas em nosso espírito.

Hannah Arendt atribui à memória “o poder do espírito humano de ter presente aquilo que irrevogavelmente já passou, que está ausente dos sentidos, foi e sempre será o exemplo mais paradigmático e mais plausível do poder que o espírito tem de tornar presentes os invisíveis” (O Querer - a Vontade-, vol.2. In: A Vida do Espírito, p. 195). E, justamente porque tem esse poder, ela (a memória) parece ser até mais forte que a realidade, por recuperar e re-lembrar o que de outra forma estaria condenado ao esquecimento.

Como seres humanos adultos, somos referenciais e responsáveis pelos modos de cuidar de uma criança, principalmente em seus primeiros anos de vida. No convívio com elas, na leitura que fazemos do mundo nos preocupamos com as leituras que elas fazem do mundo, com as ‘marcas’ que deixamos em sua memória?...

É pertinente observar que, conforme expõem Berger e Luckmann:

“A criança não interioriza o mundo dos outros que são significativos para eles como sendo um dos muitos mundos possíveis. Interioriza-se como sendo ‘o’ mundo o único mundo existente e concebível. (...) É por essa razão que o mundo interiorizado na socialização primária65 torna-se muito mais firmemente entrincheirado na consciência do que os mundos interiorizados nas socializações secundárias” (1985, p.180). Atrevo-me a registrar aqui, uma outra situação de vida humana.

Por longos anos, testemunhei a espera interminável de um casal na “fila de adoção” por uma criança. Finalmente, vencidas todas as etapas burocráticas, no dia da assinatura de todas as documentações necessárias, que davam ao casal o direito pleno de guarda e paternidade da criança tão esperada ( três anos), ambos ouviram da mãe biológica, diante do juiz, não sem surpresa e tristeza: “meus vizinhos falaram que eu devia cobrar a senhora por isso!”

A única “resposta” a essas situações vividas - seja por Kafka, seja por pessoas de nosso relacionamento cotidiano - é a de que estes, como fatos

existenciais da vida humana, nos dão o direito de pensar: “o queleva as pessoas a agirem de uma maneira tão violenta com seus próprios filhos?

Não nos cabe aqui responder.

A realidade é que crianças que vivem em abrigos, passaram (e passam) por muitas situações semelhantes, difíceis, situações que as tornam vulneráveis diante da vida, de suas memórias, de medos, diante dos outros e de si mesmos.

4.1 – ADENTRANDO NA CASA-LAR: NOVOS ESPAÇOS, NOVOS MODOS DE SER, NA VIDA.

A casa que vou descrever não tem campainha; “é isso mesmo, gosto de ouvir aplausos” diz o Sr. Nelson, convidando-me a entrar. “Nunca gostei de campainhas, parecem toque de guerra, prefiro aplausos”, diz ele. Rimos.

Vamos, então, entrar, conhecer o Sr. Nelson, D. Alice e um número enorme de crianças (mais de 220 nesses últimos anos), que passaram e passam por seus cuidados. O primeiro passo é descrever a pesquisa realizada.

Por contato telefônico, havia agendado, previamente, duas entrevistas com ambos os cuidadores com o Sr. Nelson ocorreu na Casa das Atividades no dia 27/05; e com D. Alice ocorreu na Casa Residência no dia 12/06.

As primeiras informações colhidas sobre o Lar das Palmeiras é que se constitui, na realidade, de duas casas-lares: uma é utilizada como lar-residência e a outra como local de lazer e de múltiplas atividades e atendimentos profissionais com as crianças. A primeira está localizada em um bairro de classe média, é o local onde os educadores (D. Alice e Sr. Nelson) residem, com dois de seus filhos adotivos e as vinte e uma crianças que estão sob seus cuidados. Ali recebem suas principais refeições, dormem, enfim, habitam nela. O casal tem, também, três filhos biológicos que ora estão casados e residem em outros locais. D. Alice dirige o lar residência e é a responsável por toda a atividade que um lar exige. Na realidade, ela é a fundadora do Lar.

Na “Casa de Atividades” - como assim é chamada por seus ‘usuários’, as crianças, os cuidadores e demais profissionais - , está localizada em um bairro de

periferia não muito distante da primeira; ali as crianças têm atendimento psicológico, pedagógico, recebem aulas de canto, de dança, de ginástica e de informática.

4.2 – CONHECENDO A DINÂMICA DO ABRIGO E SEUS