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Capítulo 1: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL "ENTRE DOIS

1.5. Abrindo parênteses: a "História do Brasil" de 1944

Antes, porém, de descrevermos o estado interno deplorável em que se encontrava a suntuosa Biblioteca, vale lembrar que 1944 é também o ano em que Sérgio Buarque lançou, em coautoria com Octávio Tarquínio de Sousa, um manual escolar, "História do Brasil". Pouco mencionado entre os estudiosos de sua obra, o material era destinado à 3ª série do curso secundário, ciclo ginasial, e foi publicado em edição única pela José Olympio. O livro, no entanto, não seria apenas outra aposta do inteligente editor no mercado de manuais escolares. Na avaliação de Márcia Gonçalves, o que mais pesava no jogo de interesses e motivações que envolvia editores, autores e leitores, era a circulação de "novas interpretações” sobre a formação histórica do Brasil155, acentuada ainda mais após a reforma Capanema.

O manual, dessa forma, enquadrava-se na reforma do ensino secundário promovida pelo Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em 1942. Nela instituiu-se a divisão do curso secundário em duas partes: o ciclo ginasial, composto de quatro séries e o ciclo colegial, com três. Dentre as mudanças curriculares, destaca-se a divisão entre "História do Brasil" e "História da Civilização”. Em âmbito geral, a reforma estabeleceu um lugar privilegiado para o ensino de História do Brasil e uma rígida determinação do seu currículo, obedecido à risca por Octávio Tarquínio e Sérgio Buarque e controlado pela Comissão Nacional do Livro Didático que velava pelo cumprimento dos programas oficiais.156

No que tange ao conteúdo da obra é possível perceber partes ensaísticas, entre outras de cunho épico, vistas, por exemplo, na ideia de “fronteira" retomada de "Raízes do Brasil” ou na descrição das lutas de expulsão dos holandeses do Nordeste, episódio transformado em uma "saga sangrenta e vitoriosa dos que pugnaram pela defesa do território brasileiro”.157 Mas em linhas gerais os

155 GONÇALVES, Márcia de A. Uma história de cruzamentos providenciais: o manual didático de

Octávio Tarquínio de Souza e Sérgio Buarque de Holanda. In: ROCHA, Helenice A. B.; REZNIK, Luís; MAGALHÃES, Marcelo de S. (orgs). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 116.

156 Idem, p. 117. No sumário da obra podemos ler as seguintes temáticas: I- O descobrimento; II- Os

primórdios da colonização; III- A formação étnica; IV- A expansão geográfica; V- Defesa do território; VI- Desenvolvimento econômico; VII- Desenvolvimento espiritual; VIII- O sentimento nacional; IX- A independência.

157 Ibidem, p. 118. Em relação ao que foi descrito ver: SOUSA, Octávio T.; HOLANDA, Sérgio B.

autores construíram uma abordagem culturalista na maneira de narrar a "formação" da sociedade e da nação brasileira.

Vale lembrar que o tema da "formação" foi constante na historiografia brasileira desde o século XIX, visto em autores como Von Martius, Francisco Adolfo de Varnhagen, Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Oliveira Lima, Manuel Bonfim, Pandiá Calógeras, etc. Assim, era comum que em meio à busca de explicações sobre a "brasilidade", se exaltassem aspectos selvagens e naturais de nossa terra, de modo a caracterizar uma nação em marcha rumo à civilização.158 Tão relevantes

foram essas temáticas, que mitos foram elaborados. O das três raças formadoras (brancos, índios, negros), por exemplo, legou à literatura e à história a imagem de um passado ancestral representado pela figura idealizada do índio inserido em natureza idílica. Ao longo do século XIX, os debates sobre o seu lugar na construção da nacionalidade foram marcados por dois tipos de representação: uma construída pelo romantismo, inspirada pelo modelo do "bom selvagem”, e outra, de viés evolucionista, que situava os naturais da terra, portadores do atraso e da desordem, no início de uma escala que ia da barbárie à civilização.159

Do mesmo modo o tema da ocupação territorial surgia na mesma época. Segundo Janaína Amado, as referências ao “sertão” e seus habitantes datam do período colonial. Inicialmente, o sertão era definido por sua distância em relação ao litoral, indicando um território imenso e desabitado longe da costa. Sertão e litoral tornaram-se categorias complementares. Nas letras da autora, (…) "como em um jogo de espelhos, uma foi sendo construída em relação à outra, refletindo a outra de forma invertida, a tal ponto que, sem seu principal referente (litoral, costa), sertão esvazia-se de sentido, tornando-se ininteligível, e vice-versa”. Com o tempo, o sertão

158 Dentre os aspectos naturais, até o clima tropical foi considerado, no século XIX, como um fator de

criação de um sentimento nacional. Sobre este assunto ver: BARBATO, Luis Fernando Tosta. Brasil, um país tropical: o clima na construção da identidade nacional brasileira (1839-1889). 2011. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

159 A ideia de brasilidade foi bastante divulgada a partir da publicação do livro do conde Afonso Celso,

Por que me ufano do meu país (1900), "servindo para indicar uma espécie de essência dos seres e das coisas do Brasil, capaz de inspirar o sentimento de amor à pátria”. GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano. Capistrano de Abreu: memória, historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. p. 69. As informações do parágrafo devem-se, além do citado livro, aos trabalhos de: ZILLY, Berthold. Minha formação (1898), de Joaquim Nabuco - a estilização do brasileiro ideal. In: DECCA, Edgar S; LAMARIE, Ria (orgs). Pelas margens: outros caminhos da história e da literatura. Campinas: Unicamp, 2000; NAXARA, Márcia R. C. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil. Brasília: UnB, 2004.

passou a ser visto como uma região inóspita e inabitada, por oposição ao mundo urbanizado das cidades litorâneas.160

Dessa maneira, tal como as representações indígenas que assolavam as mentes dos "homens de letras” de outrora, o sertão, região à margem do mundo histórico, também foi transformado em matéria central nos campos da literatura e da cientificidade. Duas vertentes somaram ao imaginário constituído a partir de fins do século XIX: uma ligada à literatura de ficção, que incluía novelas, contos, romances e peças de teatro e, outra, às expedições científicas, que abrangiam memórias e relatos de viagens anotados por estrangeiros, bem como por militares e funcionários do governo que percorriam o interior. O Brasil profundo se tornava, por consequência, a inspiração de um plano de escrita da história, “dedicado a recuperar ou inventar peculiaridades geográficas, humanas e culturais”.161O que pode ser

observado, por exemplo, na associação do sertanejo à "pureza" e à "honestidade" e do interior como um lugar de "tradições genuínas” e em vias de desaparecimento.162

Advindo dessa conjuntura, Capistrano de Abreu, a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda, nos ensinava que "a história dos caminhos antigos era a porta de acesso para a compreensão da ocupação territorial. Eram as vias que ligavam o sertão ao litoral, podendo ser terrestres ou fluviais”. Também podiam ser uma forma de compreensão do processo histórico de formação do Brasil, vista pelas lentes de um historiador-viajante, que conhece os espaços mediante o estudo de sua ocupação ao longo do tempo.163

Não seria, portanto, mera especulação deduzir que leituras de uma dada tradição historiográfica somadas às pesquisas desenvolvidas por Sérgio Buarque a partir de sua experiência nos Estados Unidos, em 1941 e cujos resultados estão em "Caminhos e Fronteiras"(1957), tenham sido antes, incorporadas em "História do Brasil”, mesmo que de forma parca. Ao discorrerem sobre o elemento indígena, por exemplo, os autores identificaram e diferenciaram os principais grupos encontrados e contatados pelos elementos brancos no decorrer da conquista e da colonização.

160 AMADO, Janaína. Construindo mitos: a conquista do Oeste no Brasil e nos EUA. In:_____ e

PIMENTEL, Sidney Valadares (orgs). Passando dos limites. Goiânia: UFG, pp. 51-78, especialmente pp. 63-67; idem. Região, sertão, nação, Estudos Históricos - Dossiê História e Natureza, Rio de Janeiro, n. 8, pp. 145-151. Apud: GONTIJO, O velho…op.cit. p. 71.

161 GONTIJO, Rebeca, op.cit, pp. 71-72. 162 Idem.

163 Aqui faz-se referência ao livro de Capistrano de Abreu, Caminhos antigos e povoamento do

Para eles, as migrações tupis foram favoráveis à conquista portuguesa em áreas litorâneas.

A importância singular dos povos tupis no estudo da história do Brasil está em que, de todos os grupos indígenas, foi esse o que verdadeiramente se incorporou à população de origem europeia, transmitindo-lhe muitos de seus costumes e de seu temperamento e caráter. (…) Pode-se quase dizer que as migrações tupis prepararam terreno para a conquista do Brasil pelos portugueses. Onde surgiram claros na dispersão dos tupis, também se interrompia, não raro, a obra colonizadora.164

Em outra passagem, os autores explicam não apenas a dinâmica da expansão territorial na colônia, como também os motivos da singularidade paulista, povo que, mesclado aos índios, se tornou vitorioso na ousada tarefa de levar aos inóspitos sertões a colonização.

A mistura com os índios, o isolamento no planalto, separado do litoral por alcantiladas serras, o influxo do sangue estrangeiro, sobretudo espanhol, tinham desenvolvido no paulista uma turbulenta ousadia, uma tenacidade indomável e um espírito independente de que deu constantes provas. A expulsão dos jesuítas, o episódio de Amador Bueno, aclamado rei de São Paulo contra a própria vontade, as lutas entre as famílias rivais dos Pires e Camargos, os desafios insistentes à autoridade dos delegados da administração régia, constituem exemplos do ânimo irrequieto e impávido de tais homens. Mas, é precisamente esse traço de caráter o que os faz aptos a enfrentar os perigos e incômodos das ásperas jornadas ao sertão remoto, desprezando fomes, feras, frechas e febres.165

Quando o processo da marcha para o oeste é deflagrado na trama, surgem com ele os relatos das dificuldades enfrentadas pela "raça de gigantes”. Fossem nas trilhas mata adentro ou nos rios caudalosos, o triunfo da conquista e da sobrevivência só foi possível graças à incorporação de técnicas e práticas autóctones, que atenuavam as intempéries do meio natural.

Nessas jornadas, em lugar de marchar de sol a sol, caminhavam apenas da madrugada ao meio-dia, quando muito até às duas horas da tarde. Em seguida, arrachavam-se, pescado, mel de pau ou frutos e raízes agrestes. Graças a esse sistema que passou a ser conhecido pelo nome de "marcha à paulista", conseguiram aturar grandes fadigas e trabalhos, sem precisar transportar muitos víveres. Conhecendo todos os segredos da floresta faziam suas viagens ordinariamente à pé. Quando muito construíam balsas ou canoas de casca para transpor rios mais caudalosos. Nas longas viagens

164 SOUSA; HOLANDA, op.cit., pp. 84-85. 165 Idem, p. 108.

fluviais utilizavam-se também de embarcações de madeira inteiriça, semelhantes em tudo às do gentio.166

Expostos esses exemplos, indicam com alguma clareza que de fato "História do Brasil” apresentava, em algumas de suas páginas, conteúdos pormenorizados por Sérgio Buarque nos seus livros seguintes. Todavia, nos chama atenção o silêncio de Sérgio em relação à sua obra didática, quando expõe em setembro de 1956 no prefácio de "Caminhos e Fronteiras”, o seu universo de pesquisas e publicações anteriores. De modo que, temas expostos no manual escolar - os perigos dos sertões remotos, as viagens fluviais, as técnicas de construção de embarcações, a extração do mel de pau, as andanças nas matas, etc. - que tratavam da cultura material e da dinâmica colonial paulista, resultantes da adaptabilidade dos adventícios ao universo indígena, só foram enumerados pelo autor a partir de "Monções".

Nas primeiras páginas de “Monções" (1945), portanto, os argumentos utilizados por Sérgio, sobretudo às questões de adaptabilidade e legado indígena aos propósitos adventícios e à especificidade paulista, serão quase idênticos aos do seu compêndio escolar. Vejamos:

A sociedade constituída no planalto da capitania de Martim Afonso mantém- se, por longo tempo ainda, numa situação de instabilidade ou imaturidade, que deixa margem ao maior intercurso dos adventícios com a população nativa. Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não na grande propriedade rural que forma indivíduos sedentários. (…) Mas a lentidão com que no planalto paulista vão se impor costumes, técnicas ou tradições vindos da metrópole (…) terá profundas consequências. Desenvolvendo-se com mais liberdade e abandono do que em outras capitanias, a ação colonizadora realiza-se, aqui, por uma contínua adaptação a condições específicas do meio americano. Por isso mesmo não se enrija logo em formas inflexíveis. Retrocede, ao contrário, a padrões primitivos e rudes: espécie de tributo pago para um melhor conhecimento e para a posse final da terra. Só aos poucos, (…) consegue o europeu implantar num país estranho algumas formas de vida que trazia do Velho Mundo. Com a consistência do couro, não a do ferro ou do bronze, dobrando-se, ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do meio.167

Para concluir esse breve parêntese, o que tentamos demonstrar foi o fato de que, pouco lembrado tanto pelo autor quanto pela fortuna crítica, "História do Brasil", além de um meio didático de divulgação da moderna historiografia, já

166 Ibidem. O termo “raça de gigantes” é atribuído por Sérgio Buarque e Octávio Tarquínio ao viajante

francês Auguste de Saint-Hilaire. p. 109.

continha em algumas páginas de seu conjunto, um indicativo do que Sérgio Buarque definiu como “fronteira". Resultante de sua estadia americana em 1941, de suas pesquisas documentais em curso e da leitura das teses de Frederick Turner, esse conceito-chave se tornou, pouco depois, síntese de uma tradição historiográfica que examinava a especificidade do paulista, bem como a expansão dessa população ao extremo oeste do território colonial, contrapondo-se, portanto, ao modelo explicativo estático da colonização litorânea. Nesse caso,

Fronteira, bem entendido, entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirma-ser ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos ou melhor equipados.168