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Capítulo 1: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL "ENTRE DOIS

1.6. Fechando parênteses

De volta aos corredores e prateleiras poeirentas da Biblioteca Nacional, Rubens Borba de Moraes, ao assumir seu posto, tomou a iniciativa de preparar um relatório detalhado descrevendo a calamidade em que se encontrava o acervo. Dividido em quatro itens – conservação das coleções, serviços, conservação do prédio e pessoal –, o relatório apontava, por exemplo, que a Biblioteca Real, trazida pela corte de D. João VI, estava praticamente perdida. "Os volumes, sujeitos à intempéries – chuva e sol – haviam se transformado em ‘tijolos’ ".169

As ricas encadernações estavam irremediavelmente perdidas e apenas poucos volumes poderiam ser restaurados. A poeira acumulada era tanta que mal dava para ler as lombadas. "Não há praticamente uma obra que não esteja bichada e cinquenta por cento se transformaram em verdadeiros rendados”170. A coleção de

168 HOLANDA, Sérgio B. Caminhos e Fronteiras. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp.

12-13. Importante mencionar que quando Sérgio Buarque começou a estudar esses assuntos, no limiar da década de 1940, já se podia falar de uma tradição historiográfica, que lidava com as entradas e bandeiras, à qual é lícito dizer, remonta à obra de Capistrano de Abreu.

169 BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 56.

170 MORAES, Rubens Borba. Relatório do Diretor da Divisão de Preparação da Biblioteca Nacional ao

Ministro da Educação e Saúde, março de 1945. Revista de Biblioteconomia de Brasília, Brasília, vol. 2, n.1, jan/jun., 1974. pp. 91-106.

folhetos, formada por Diogo Barbosa Machado171, embrião da Biblioteca Real,

estava em péssimo estado de conservação. A maioria sem condições de reparo, com danos irreversíveis. Amontoados pelos corredores da BN, muitos periódicos eram depósitos de lixo e sujeira. A coleção de gravuras e mapas, comparadas em seu valor às das melhores bibliotecas europeias, precisava ser urgentemente lavada ou restaurada.

No que tange ao conjunto bibliográfico, o relatório aponta que "as coleções se formavam a esmo", sem nenhum critério de seleção, sem métodos, nem planos, aleatoriamente. As coleções de periódicos, com assinaturas suspensas há três anos, estavam incompletas, as obras de referência desatualizadas e não se comprava nada do que era publicado desde 1900. A atualização de cada área não era, portanto, acompanhada pela biblioteca, prestando um desserviço aos usuários.

Na conclusão do relatório, Rubens Borba recomendava a completa reforma da instituição, no sentido de torná-la uma "verdadeira biblioteca nacional”, indicada ao aprofundamento de estudos e pesquisas. Ele sugeria a execução de um plano com três pontos principais: a mudança radical do pessoal existente; a construção de um novo prédio, e, a restauração em larga escala do acervo. Com o relatório em mãos, o ministro Gustavo Capanema resolveu acatar boa parte dos problemas elencados pelo relator, que contava com a experiência de ter posto de pé a Biblioteca Pública Municipal de São Paulo.172 Embora se diga que nessa época

que Sérgio Buarque intensificou muito "seus estudos e pesquisas”173, restam

dúvidas: em primeiro lugar, não seria um contra-senso, já que o relatório apontava para as péssimas condições de organização e conservação de parte do acervo? E ainda, com tanto trabalho e problemas para resolver, que tempo restaria a Sérgio Buarque, na rotina de seu expediente na BN, para se dedicar a estudos mais sistemáticos?

171 Além de presbítero secular católico, Diogo B. Machado (1682-1772) foi escritor e bibliógrafo, autor

da obra "Bibliotheca Lusitana", a primeira grande obra de referência editada em Portugal. Ao longo dos anos, reuniu uma impressionante coleção de livros, opúsculos e gravuras que ofereceu ao rei D. José I de Portugal, após a biblioteca real ter sido consumida pelo fogo durante o terramoto de 1755. Levada para o Brasil, quando a família real portuguesa ali se refugiou em 1808, a colecção de Barbosa Machado constitui hoje um dos mais preciosos fundos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

172 BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 58. 173 NICODEMO, Thiago Lima, op.cit., p. 114.

O próprio historiador deixou um registro de sua passagem pela BN e a partir de suas impressões é possível deduzir que não lhe sobrava muito tempo para tratar de “assuntos pessoais”. Como chefe de divisão, Sérgio Buarque elaborou um relatório de área, que compunha com as demais, o relatório final de atividades para o ano de 1944, enviado pelo diretor Rodolfo Garcia ao Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em fevereiro de 1945. A Divisão de Consultas era dividida em sete seções, cada qual contando com um servidor técnico responsável. Eram elas: 1) seção de leitura geral e referência; 2) seção de periódicos; 3) seção de manuscritos; 4) seção de belas artes; 5) seção de cartas geográficas; 6) seção de obras para cegos; e, 7) seção de conservação.

Sérgio Buarque nos informa que devido à reforma em curso na Biblioteca, a sua Divisão ficou mais “aliviada” de certas atribuições. As que envolviam, por exemplo, classificação e catalogação, passaram a cargo da Divisão de Preparação, dirigida por Rubens Borba. Em contrapartida, "houve a ampliação de atribuições já existentes, além da criação de três seções novas”. No balanço dos quatro primeiros meses de sua gestão e com vistas ao próximo ano, Sérgio Buarque afirmava que o programa de reforma em curso "só poderá ser executado inteiramente com novos recursos, inclusive de pessoal, material e instalações, que a Divisão de Consultas espera poder utilizar no correr do ano de 1945”.174

Em relação à seção de Leitura Geral e Referência o diretor assinalou que houve um "aumento apreciável” da consulta pública ao acervo, já que “a partir de 16 de outubro, o mesmo salão de referências que era franqueado ao público consultante, das 10 às 16 horas, passou a funcionar até às 22 horas”.175 Essas

pequenas atitudes que previam o aumento e um maior contato do público com esses órgãos de divulgação cultural, também foram tomadas por Sérgio à época em que passou a dirigir o Museu Paulista, a partir de 1946, como veremos mais à frente.

Em relação às obras raras, Sérgio Buarque informou que as mesmas "não dispunham de um lugar adequado para consulta e manuseio" e que o salão de leitura de microfilmes dependia, para que entrasse em funcionamento, da montagem de serviços de fotoduplicação, responsabilidade da Divisão de Preparação. A guerra em curso na Europa não passou despercebida aos olhos do diretor, que atribuía

174 Biblioteca Nacional em 1944, op.cit. 175 Idem.

parte da carência de servidores e a dificuldade em adquirir novas obras à beligerância. Mesmo assim,

A S.L.R continuou a organização e atualização de suas coleções de referências bibliográficas, bem como a relação do material bibliográfico próprio da Seção, a ser adquirido pela B.N. dentro das possibilidades da presente situação mundial. Serviços internos indispensáveis foram, de certo modo, afetados pela carência de funcionários, agravada, no mês de dezembro, com a convocação para as forças expedicionárias do bibliotecário Manuel Adolfo Wandeley, sub-chefe da S.R.L.176

Naquilo que interessava aos periódicos, a impressão de Sérgio corrobora o que foi apontado por Rubens Borba, já que o historiador também denunciava a defasagem na compra de exemplares, sobretudo estrangeiros: "a atualização das coleções que constituem o acervo da seção oferece algumas dificuldades, mormente no que se refere a publicações estrangeiras, muitas das quais deixaram de ser assinadas desde 1924 por falta de verba adequada". Outro ponto de convergência entre os relatórios refere-se à conservação das obras do acervo. Ao pontuar o trabalho realizado na seção de conservação, Sérgio destaca que graças ao empenho de funcionários, todos vêm desenvolvendo um grande esforço no sentido da limpeza, desinfeção e expurgo dos livros pertencentes ao acervo da BN. Trabalhos que, sobretudo o expurgo, "serão grandemente incentivados logo que esta divisão disponha de dois autoclaves e do pessoal necessário".177

A Biblioteca Nacional foi o último órgão em que Sérgio Buarque ocupou cargo enquanto esteve na capital federal. Antes, contudo, de voltar definitivamente para a Pauliceia e dirigir o Museu Paulista, a partir de 1946, o historiador participou ativamente do "I Congresso Brasileiro de Escritores”, promovido pela Associação Brasileira de Escritores-ABDE, no início de 1945. Esse evento, entretanto, não deve ser enaltecido como um marco único na luta contra o fim do Estado Novo. Embora tenha lugar importante na história intelectual do país, o manifesto dos escritores ecoou ao lado de outros movimentos políticos com o mesmo apelo sonoro. Ou seja, todos buscavam liberdade de expressão e a volta de eleições diretas.178

176 Ibidem. 177 Idem.

178 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello. Trad. Berilo Vargas. São Paulo:

Ao tratar apenas do caráter combativo da ABDE, corremos o risco de deixar de lado sua heterogeneidade nas articulações políticas e dinâmicas internas. O que estava em jogo não era apenas a tomada de consciência social de intelectuais e do seu papel de luta no caso do Estado Novo; antes, se debatia também os interesses dessa categoria como classe. A fundação da ABDE se daria em 1942, nos escritórios do jornal "A Manhã”, órgão oficial do governo, dirigido por Cassiano Ricardo, um de seus signatários e defensores de que a Associação não deveria ter caráter político. É momento também de entrada do Brasil na Segunda Guerra, portanto, numa esquizofrenia ideológica, como tão bem revelou Antônio Pedro Tota. Ou seja, em plena ditadura o governo enviava tropas à Itália para lutar ao lado dos aliados, ao mesmo tempo em que aderia à doutrina liberal norte- americana, sustentada pela política da boa vizinhança.179 Havia, portanto, um clima

no ar para discursos em torno da ampliação democrática, mas que, do lado institucional, não se concretizou.

Podemos acompanhar a dinâmica desse processo por meio do surgimento de diversas organizações e manifestos pedindo maior liberdade política. Em São Paulo, por exemplo, surge o "Grupo Radical de Ação Popular”, em 1942, depois chamado "Grupo Resistência”, do qual participaram intelectuais e estudantes, dentre eles Antonio Candido. Esse grupo foi o embrião da "Esquerda Democrática”, que depois deu origem ao Partido Socialista Brasileiro-PSB, em 1947, do qual Sérgio Buarque foi partícipe. Pelos lados cariocas, era fundada a "Sociedade Amigos da América", com a presença dos generais Manuel Rabelo, Horta Barbosa e Cândido Rondon e de líderes da futura União Democrática Nacional-UDN, como Afonso Arinos e Virgílio de Melo e Franco. Entre os estudantes, a UNE organizou em 1942, na capital federal, uma passeata a favor da entrada do Brasil na Guerra e no ano seguinte, o seu VI Congresso e a Semana Anti-Fascista.180

Escritores foi Carlos Guilherme Mota no capítulo 3 de seu livro, Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. 5.ed. São Paulo: Ática, 1985.

179 Livro importante de Antônio Pedro Tota que trata dessa aproximação no campo da cultura, entre

Brasil e Estados Unidos, sob a égide da política da boa vizinhança é O imperialismo sedutor: a americanizarão do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Em certa passagem o autor afirma: "O estado liberal, exigência mínima para a ‘americanização’ (…) estava longe da realidade do Brasil nos anos 1940. Apocalípticos ou integrados não chegam a levar em conta que a 'americanização' do Brasil tem sua gênese no estado não liberal de Vargas, das décadas de 1930 e 40. Uma ‘americanização paradoxal’”. p. 16.

180 MELO, Ana Amélia de Moura C. de. Associação Brasileira de Escritores: dinâmica de uma disputa.

Desse modo, receptora que foi das demandas do tempo, a ABDE abraçou em seus quadros uma variedade de tendências políticas, que incluía desde liberais conservadores até comunistas ligados ao PCB. Fora esse aspecto mais geral, ela também deve ser pensada em consonância com a ampliação do mercado editorial e com a prática de algumas editoras que antecipavam o pagamento de direitos autorais, possibilitando a alguns escritores dedicarem-se somente à literatura, mesmo que o Estado continuasse a ser o principal empregador dessa categoria social. Casos, por exemplo, de José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico Veríssimo.181

Mas até que se consolidasse definitivamente como "figura heróica”, o escritor não teve vida fácil. Desde a década de 1880 eram frequentes as opiniões acerca do baixo status de seu ofício. A vida intelectual daquela época tinha que lidar com a falta de um público leitor, com baixas remunerações e com as dificuldades de publicação, já que em um país de analfabetos as principais editoras preferiam investir nas traduções de romances franceses, mais aceitos, do que arriscar com autores desconhecidos. Mas por outro lado, foi esse quadro que estimulou a construção da imagem sublime dos escritores que, "apresentados como honestos e abnegados, procuravam superar todos os infortúnios, (…) em defesa de uma arte mais ‘sincera’, ‘genuína’ e, portanto, ‘verdadeira’".182

Contudo, mais do que talento, o que garantia aos escritores prestígio junto ao público, ascensão social ou memória póstuma, eram as redes de sociabilidade em que estavam envoltos. Detentores ou não de diploma ou de recursos financeiros, era "importante que obtivessem o apoio de ‘padrinhos’ com prestígio suficiente para arrumar-lhes alguma colocação". Ambicionavam, assim,

detalhada da Esquerda Democrática ver: HECKER, Alexandre. Socialismo sociável: história da esquerda democrática em São Paulo (1945-1965). São Paulo: Unesp, 1998. Nesse livro, vale destacar, Sérgio Buarque de Holanda é personagem secundário. Referências a ele aparecem apenas em duas breves notas de rodapé: uma, na página 93, nota 11, que atesta sua participação no PSB paulista ao lado de Sérgio Milliet, Paulo Emílio Salles Gomes, Paul Singer, Oliveiros Ferreira, Maurício Tragtember, Perseu Abramo, entre outros; e outra, na página 187, nota 182, como indicação de leitura (imagina-se que "Raízes do Brasil") aos militantes do partido, que, além dos estrangeiros, como Rosa Luxemburgo, Kautsky, Plekanof, Weber, deveriam estudar os brasileiros Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda, entremeados de Oliveira Vianna, João Ribeiro, entre outros.

181 MELO, ibidem. p. 717.

182 GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória,

empregos públicos na burocracia estatal, vislumbrando a possibilidade de ganho fixo que lhes garantisse tempo para escrever.183

Como bem nos lembra Rebeca Gontijo, uma vez no local certo, no momento certo, o próximo passo era integrar ou reunir os grupos certos. Assim, a tecitura de relações em torno de figuras-chave ou de locais referenciais, como redações de jornais ou revistas, salões, clubes literários, partidos políticos, universidades, livrarias, etc., constituíam grupos de apoio mútuo chamados à época de "igrejinha, panelinha ou coterie". O convívio em meio a essas redes estimulava o hábito da conversa, das discussões, estreitava laços e demarcava diferenças, quando não desenvolviam o culto a determinados escritores, que ainda em vida, podiam ser transformados em referência e venerados como autoridades. É em suma, o que Afrânio Coutinho já chamava de um "sistema bem montado de permuta e fogo cruzado de elogios, às vezes de auto-elogio, que construiu a fama de muitos nomes e obras".184

Isso posto, as palavras de ordem contra a ditadura da época não devem fugir dessa complexa relação. Assim, afirmar um papel decisivo de "Sérgio Buarque de Holanda na resistência ao Estado Novo", sobretudo na sua fase final, como é atestado, pode soar pouco exagerado. É atribuir a ele uma supervalorização dentro de um movimento coletivo e heterogêneo. É ainda, desvencilhar sua trajetória intelectual do aparelho do estado, o qual sempre serviu até então, por meio de redes de sociabilidade e apadrinhamentos que lhe garantiram postos de trabalho, viagens oficiais ao exterior e tempo de pesquisa, sem que tivesse preocupação com perseguições políticas ou mesmo com o exílio, tal como ocorreu a Graciliano Ramos, Paulo Duarte, Caio Prado Júnior, entre outros.185

Exemplar nesse sentido, a exaltação panegírica de Antonio Candido, até hoje sustenta a imagem de que Sérgio Buarque de Holanda foi sempre um intelectual de esquerda. Versa a esse respeito como testemunha de uma geração,

183 Idem, p. 48.

184 Ibidem, pp. 48-49. COUTINHO, Afrânio. No hospital das letras. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1962. pp. 21-22.

185 Graciliano Ramos ficou preso entre 1936 e 1937, período mais tarde retratado em Memórias do

Cárcere (2 volumes), postumamente publicado, em 1953; Caio Prado Júnior ficou preso entre 1935 e 1937, partindo em seguida para o exílio e regressando ao país em 1939; o jornalista Paulo Duarte foi exilado por duas vezes: a primeira em 1932, após o levante paulista e a segunda em 1938, durante o Estado Novo.

projetando a figura do amigo a tempos imemoriais de um passado mitologizado. Para ele,

Sérgio Buarque de Holanda nunca foi militante político propriamente dito, mas teve desde moço consciência política e posições ideológicas definidas para o lado da esquerda, e como tal sempre foi tido. (…) De volta ao Brasil no final de 1930, posicionou-se contra a ditadura de Getúlio Vargas (…). Mais tarde, em 1942, participou da fundação da Associação Brasileira de Escritores, a famosa ABDE, que visava ostensivamente a defender os interesses profissionais, (…) mas se dispunha também a lutar (…) pela volta das liberdades democráticas.186

Percebe-se nesse trecho o apagamento necessário da trajetória de Sérgio Buarque no serviço público, sobretudo durante o Estado Novo, assim como das suas posições conservadoras da juventude vistas em análises críticas a respeito de seu livro de estreia. O salto temporal de 1930 para 1942 projeta ao leitor uma imagem alva, de um intelectual pronto desde a juventude para tecer a crítica a qualquer forma de autoritarismo que se impunha à sociedade, fosse ela de esquerda ou de direita. Essa é a moldura anacrônica que enquadra Sérgio como o primeiro historiador que aludiu à necessidade de despertar a iniciativa das massas, manifestando, assim, um radicalismo democrático raro naquela altura fora dos pequenos agrupamentos de esquerda.187

Outro exemplo nessa linha é o prefácio de Laura de Mello e Souza ao livro "Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950”, publicado por Thiago Nicodemo, em 2008. Nele, a historiadora reporta-se à vida de Sérgio como um homem exemplar:

É sabido que Sérgio Buarque de Holanda foi homem de seu tempo: na década de 1920, ainda muito jovem, aderiu ao modernismo; como correspondente jornalístico na Alemanha, assistiu à ascensão do Terceiro Reich; foi socialista durante toda a vida, tendo lutado contra o Estado Novo, se aposentando da Universidade de São Paulo em protesto ao AI-5 e contando entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores.188

Não resta dúvida de que Sérgio Buarque foi um "homem de seu tempo”, como foram tantos outros, intelectuais ou não, de sua geração. O que talvez

186 CANDIDO, Antonio. A visão política de Sérgio Buarque de Holanda. In: _____. (org.) Sérgio

Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 81-82.

187 Idem, p. 86.

188 SOUZA, Laura de M. Prefácio. In: NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e

diferisse Holanda dos demais fosse o fato de que, como "grande homem”, dotado de livre arbítrio para pensar, se posicionar e escrever, escapasse do reino da necessidade, onde vivia a maioria dos mortais.189

Desse modo, ao enaltecer de forma sublime a vida do historiador, escolhendo apenas cores de combate para pintar sua biografia, Laura de Mello e Souza reforça uma mística oficiosa, monumentalizada por textos celebrativos a exemplo das práticas do século XIX, onde se buscavam nos campos da política ou das letras os vultos exemplares da nação. Assim, a etiqueta de "socialista a vida toda", encobre um personagem muito mais complexo e propenso, pelo menos em parte da juventude, a modelos sociais nem tão progressistas, como sugere a autora. A famosa aposentadoria, de 1969, por exemplo, é atenuada pelo próprio Sérgio. Numa conversa entre amigos, na casa do historiador, em 26 de junho de 1977, Paulo Duarte relembrava o episódio: "Quando nós fomos expulsos da universidade em 1969, o Sérgio não foi". Na sequência, Sérgio toma a palavra: "Mas no dia seguinte eu pedi demissão!" Paulo Duarte completa: "Dá licença, deixa eu falar (…). No dia seguinte, ele pediu a sua aposentadoria em sinal de protesto pela